Em uma cidade ainda abalada pelas consequências da maior enchente de sua história, a maioria dos eleitores de Porto Alegre optou, no primeiro turno, por não renovar o mandato do atual prefeito, Sebastião Melo (MDB). Isso pode ser um recado ao qual devemos dar muita atenção.
Dos 694.685 votos válidos, mais da metade (349.265) optou por outros candidatos, por anular o voto ou por votar em branco. O número de abstenções (345.544) é levemente maior do que o número de pessoas que votaram no atual prefeito (345.420). O que significa exatamente esse alto índice de abstenção ainda não está claro e pode ser resultado de uma série de situações.
Um fator que pode ajudar a identificar isso é a diminuição da população de Porto Alegre. Conforme dados do último Censo do IBGE, a capital gaúcha perdeu mais de 76 mil moradores na última década. Cabe ressaltar que em 2020, durante a pandemia, a abstenção também foi alta. No entanto, isoladamente, isso não explica a situação, pois teríamos que ter acesso a mais dados, como regularização de domicílio eleitoral, óbitos, desmotivação etc.
Entretanto, esses dados reforçam a incoerência das propostas dos grupos que governam Porto Alegre nas últimas duas gestões, com visão política alinhada ao mercado, para facilitar o avanço da especulação imobiliária e sem levar em conta o declínio da população e os direitos das comunidades de baixa renda. Ao mesmo tempo que estimulam a construção de imóveis de luxo, relaxando o licenciamento ambiental, faltam moradias para a população economicamente mais sufocada, a que mais sofre com o processo de gentrificação que está sendo levado a cabo em Porto Alegre.
O investimento em saneamento básico e no sistema de proteção contra cheias ficou em último plano, mesmo com o caixa da prefeitura fechando superavitário. Sem dúvida, isso é uma questão de decisão política e projeto de governo. A extinção do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), órgão municipal que poderia ter atuado para amenizar muito os impactos das enchentes, é até hoje defendida pelo prefeito, mesmo a cidade permanecendo desprotegida, como continua ainda.
Se novas chuvas atingirem hoje a região com a mesma intensidade das de final de abril e início de maio, Porto Alegre pode ser submetida à mesma situação novamente. Falta proteção, mas sobra discurso e propaganda política.
Falta proteção, mas sobra discurso e propaganda política.
Com maior tempo de rádio e televisão, o grupo do atual prefeito vende uma imagem de gestão eficiente e de um candidato “gente do povo”, que usa chapéu de palha e chinelo de dedo. O velho marketing político populista, ao estilo “varre, varre, vassourinha”, utilizado pelo grupo conservador de Jânio Quadros nos anos 1960, parece alegrar alguns que se submetem ao continuísmo de uma situação social bastante complicada. No entanto, há um cenário eleitoral aberto o suficiente para oferecer possibilidades de virada no segundo turno.
Somando abstenções e votos em outras opções no turno inicial, temos um total de 694.809 que não votaram pela reeleição do atual prefeito. Desse total, 182.553 elegeram a candidata Maria do Rosário (PT), que vai disputar o segundo turno com Melo. Considerando que os eleitores que votaram em Melo e Maria no primeiro turno optem por manter suas preferências, ainda resta mais de meio milhão de votos a serem disputados, que sugerem que o segundo turno pode ser realmente uma nova eleição.
Insegura e sob ataque
Além das enchentes e do sistema de proteção ainda avariado, Porto Alegre vem sofrendo com uma onda de destruição da vegetação nativa (da pouca que resta), com a derrubada sistemática das árvores urbanas. Nunca vimos tamanha agressão ambiental por aqui. O mais perto que chegamos disso foi em 1975, quando um grupo de estudantes que participavam das reuniões da Agapan subiu em uma árvore em frente à Faculdade de Direito da UFRGS para protegê-la (a Tipuana resiste até hoje na Avenida João Pessoa). No próximo ano, pretendemos comemorar 50 anos desse feito. Não contem ao prefeito.
Nas últimas duas gestões municipais – a de Melo (2020/2024) e, antes, a de Marchezan Jr. (2016/2020) –, a sanha destrutiva tem avançado sobre parques, calçadas e sobre a orla do Guaíba, onde propagandeiam “revitalizar” com concreto o que deveria ser mata nativa de uma Área de Preservação Permanente.
Tentam privatizar os parques – destruindo áreas com a pouca natureza que ainda resta – para construir estacionamentos, rodas gigantes e estruturas para eventos com fins lucrativos dos parceiros da iniciativa privada. É uma festa atrás da outra. Voam para longe os pássaros, dando lugar a motores e equipamentos sonoros com músicas de gostos até duvidosos.
Parte da população aplaude e comemora, inebriada, essa congestão, imersa em um modelo social ecocida, sem se dar conta do que vem acontecendo, de fato, na cidade e no mundo em relação ao meio ambiente. O que dizer, então, da consciência sobre a crise climática que afeta o mundo todo e apresenta suas consequências por aqui. Isso não faz parte da realidade de muitos eleitores de Melo, um negacionista inconsequente, que aposta na desinformação de parte da população.
O problema de Porto Alegre se consolida na Câmara de Vereadores, onde a maioria eleita é da base do atual prefeito. Dos 35 eleitos, apenas 12, em princípio, tendem a votar favoráveis às pautas ambientalistas. Caso Melo seja reeleito, teremos mais alguns anos de disputas em desvantagem para a proteção ambiental.
Se resta alguma esperança para mudar o rumo da Capital – que já foi a cidade com melhores índices ambientais do Brasil e, portanto, a que estaria melhor preparada para a crise climática, até 20 anos atrás, quando começou a destruição – essa esperança está na atitude dos mais de 345 mil eleitores que não votaram no primeiro turno, no voto de quem optou por outros candidatos e até quem sabe daqueles que retomarem a consciência e mudarem suas escolhas iniciais.
Essa insegurança e tristeza que dominam Porto Alegre podem ser remediadas pela tomada de consciência e atitudes de uma população que deve e já provou que pode fazer suas escolhas de forma crítica para mudar o rumo sem medo.
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