Construída no topo do Morro do Corcovado, de onde descortina-se uma das melhores vistas do Rio de Janeiro, a estátua do Cristo Redentor se tornou um símbolo da cidade. Nem tudo, entretanto, são belas paisagens. Nos bastidores do cartão-postal, a sobreposição do templo religioso com o Parque Nacional da Tijuca carrega uma disputa histórica da igreja com o órgão ambiental para tentar assumir o controle total do ponto turístico mais visitado do Brasil. No mais recente capítulo desse embate, foram apresentados dois projetos de lei – um na Câmara dos Deputados e outro no Senado – que buscam tirar oficialmente a área do Alto Corcovado de dentro da unidade de conservação e passá-la integralmente para a Mitra Arquiepiscopal do Rio de Janeiro, órgão responsável por templos católicos da cidade. Em repúdio às propostas, o conselho consultivo do parque destaca a importância da área como bem público e que a transferência para igreja representa “a privatização do Corcovado em favor de uma entidade religiosa”.
No Senado, a proposta de desafetação (Projeto de Lei n° 3.490/2024), apresentada em setembro, é assinada pelos senadores Flávio Bolsonaro (PL-RJ), Romário (PL-RJ) e Carlos Portinho (PL-RJ), este último é líder da bancada do Partido Liberal. O texto é direto ao ponto e “exclui a área do Alto Corcovado dos limites do Parque Nacional da Tijuca”, o equivalente a 6.771,73 m².
A desafetação está em consulta pública no Portal do Senado. Até o momento do fechamento desta matéria (23/10/2024 às 22:00), os votos contrários à proposição lideravam por 861 x 183.
Já na Câmara dos Deputados, o projeto de lei (nº 3.208/2024) foi apresentado em agosto pelo deputado federal – e recentemente eleito prefeito de Maricá – Washington Quaquá (PT-RJ).
A proposta de Quaquá na Câmara usa de um eufemismo para desafetação ao estabelecer que “fica a União autorizada a transferir para a Mitra Arquiepiscopal Do Rio De Janeiro – Arquidiocese De São Sebastião, a área e as edificações e bens outros relativas ao entorno do monumento do Cristo Redentor, denominada Alto Corcovado, local edificado localizado no Parque Nacional da Tijuca, sendo o terreno do seu estacionamento até o Platô superior onde se encontra o Cristo Redentor”.
Apesar de terem origens diametralmente opostas no que diz respeito à identidade política e partidária de seus autores, as propostas possuem o mesmo objetivo: retirar qualquer possibilidade de gerência do Parque Nacional da Tijuca e do ICMBio sobre o Alto Corcovado e o acesso ao Cristo Redentor.
“Assim, a Mitra Arquiepiscopal do Rio de Janeiro terá liberdade para administrar o complexo sem as amarras burocráticas que envolvem a gestão de uma unidade de conservação de proteção integral”, defende o texto do projeto de lei encabeçado por Flávio Bolsonaro, Romário e Portinho.
Procurada por ((o))eco, a entidade religiosa aponta uma “expertise secular” para gestão do monumento e esclarece que “as áreas de floresta permanecerão sob a gestão do ICMBio”.
Fontes ouvidas por ((o))eco criticam os projetos por promoverem a privatização do bem público, abrirem um precedente perigoso de desafetação de unidades de conservação para benefício de interesses privados e enfraquecerem a própria gestão do ICMBio e do parque, que perderia seu maior ponto turístico e fonte de receita.
Na última quinta-feira (17), o Conselho Consultivo do Parque Nacional da Tijuca endereçou aos parlamentares moções contrárias às duas propostas, que seriam inconstitucionais e contra o interesse público e ambiental.
“Ceder território protegido a uma entidade privada, mesmo que esta possua vínculos religiosos, não se justifica à luz da supremacia do interesse público , sendo ainda mais alarmante quando a entidade em questão carece de expertise em gestão ambiental e turística”, critica texto da moção contra o PL 3.490/2024, que tramita no Senado.
Após a divulgação da moção, a Mitra, que era, ela própria, conselheira do parque e ocupava a vaga dedicada à entidade religiosa, anunciou sua saída do conselho.
O documento destaca a importância da arrecadação advinda das visitas ao Corcovado para gestão e manutenção de todo o Parque Nacional da Tijuca. Em paralelo, hoje R$6,00 de cada ingresso vendido vão para a Mitra Arquiepiscopal, para fins de apoio ao Projeto Amigos do Cristo Redentor, que ajuda a manter o Santuário do Cristo Redentor – que inclui uma pequena capela no pé da estátua.
Em 2023, o Parque Nacional da Tijuca registrou um total de 4,4 milhões de visitantes. Mais da metade deles no Setor Serra da Carioca, onde está o Corcovado, com 2,3 milhões de turistas.
Do lado do ICMBio, as receitas vêm dos ingressos, dos contratos com as concessionárias e com as lojas instaladas na área edificada do monumento. Do lado da Mitra, além da contribuição dos ingressos, a entidade fatura com a realização de eventos, tanto religiosos (como casamentos e batizados), quanto comerciais no platô do Cristo, e com a iluminação da estátua.
Em nota enviada à ((o))eco pela assessoria da arquidiocese, a Mitra nega o impacto financeiro da desafetação e afirma que a exclusão da área edificada do Alto Corcovado “não tem nenhum impacto financeiro negativo para o ICMBio. Pelo contrário, toda a receita das concessionárias dos modais de transporte é mantida (trem e vans) e o ingresso para acesso ao Parque, cobrado junto com o transporte, também é mantido. A receita obtida pelo ICMBio deve ser direcionada exclusivamente para a gestão da Floresta da Tijuca”.
Em paralelo a visitação, gerida pelo parque e pelas duas concessionárias, a Mitra possui autonomia para realização de eventos privados e até ações publicitárias, alugando o espaço do Santuário Cristo Redentor e a iluminação da estátua – que já foi usada de diferentes formas, inclusive para promover festivais de música – por valores que são mantidos sempre sigilosos. Nem mesmo o ICMBio sabe quanto é cobrado – e não recebe qualquer repasse dessas receitas.
A arquidiocese defende que “toda receita da Igreja Católica é revertida para conservação de seu patrimônio religioso, histórico e cultural, bem como a manutenção das ações e trabalhos sociais desenvolvidos”. De acordo com dados de uma reportagem de O Globo em 2020, a manutenção do Cristo e dos funcionários do Santuário custava, à época, cerca de R$5 milhões anuais.
Conforme o último Termo de Compromisso firmado entre as partes, a Mitra tem o direito de desenvolver livremente as atividades religiosas, culturais, econômicas, comerciais e sociais na área do Santuário Cristo Redentor, que se encontra no platô do morro do Corcovado. Sendo a entidade obrigada a seguir as normas e restrições do plano de manejo do parque, assim como não impedir acesso dos turistas ao platô superior no horário de funcionamento e operação do Parque Nacional da Tijuca no Corcovado (todos os dias de 8:00 às 19:00).
“A Mitra faz uso comercial do espaço e não presta contas disso. Ela reivindicou e tem direito a parte da bilheteria, mas ela realiza cerimônias de casamento, arrecada com projeções no Cristo e eu gostaria de saber quanto recebe por isso, simplesmente não está disponível. Soa para mim que ela faz um uso comercial e não religioso de um espaço público e sem prestar contas”, pontua Jaime Fernando Villas da Rocha, professor da UNIRIO e um dos conselheiros do parque.
O termo, que foi renovado em abril de 2022 com vigência de dez anos, tem como objetivo regular e delimitar as responsabilidades de cada um dos entes na gestão, garantindo a adequada manutenção do Santuário Cristo Redentor.
Na prática, entretanto, notas técnicas do ICMBio obtidas por ((o))eco trazem denúncias de descumprimento, por parte da Mitra, das obrigações que constam no termo, como a realização de eventos que impedem o acesso de turistas em partes do platô, instalação de estruturas sem autorização do ICMBio e do IPHAN, e acesso de veículos de prestadores de serviço para manutenção e instalação de estruturas no horário de visitação.
O professor, que faz parte do conselho desde 2015, ressalta que o atual termo de uso do Cristo Redentor – mais permissivo que o anterior, que exigia análise e autorização do ICMBio para eventos e ações no platô –, foi aprovado sem nenhuma transparência e sequer foi apresentado previamente aos conselheiros. “Veio de cima e foi imposto ao parque. O conselho e a própria direção do parque foram atropelados”, conta.
Nas moções de repúdio, o conselho consultivo rebate as alegações dos projetos de lei de má gestão do Alto Corcovado, com abandono e problemas estruturais e de manutenção, assim como de acessibilidade – hoje o único equipamento de apoio ao acesso da base do monumento são escadas rolantes. Elevadores levam apenas até uma base inferior.
“O principal argumento da proposta baseia-se em críticas à gestão do ICMBio e da concessionária atual, apontando dificuldades burocráticas e uma suposta ineficácia na preservação do local. No entanto, é imperativo questionar se a solução adequada para tais problemas seria a concessão a uma entidade que não possui experiência comprovada na gestão de áreas de conservação ambiental ou na administração de fluxos turísticos de alta demanda”, aponta trecho da moção.
Nota técnica elaborada pelo próprio ICMBio sobre os projetos de lei também rebatem a ideia de que a Mitra possui experiência para a gestão do ponto turístico. “Uma mostra disso é a permanente estrutura de andaimes ao lado do pedestal do monumento do Cristo Redentor. Ela só foi removida por 15-20 dias no advento do aniversário de 90 anos do monumento em outubro de 2021. Isto não deveria ser considerado adequado”, exemplifica o texto do órgão ambiental.
Em resposta à reportagem, a Assessoria de Imprensa do Santuário Arquidiocesano Cristo Redentor defende que “a área do Santuário Arquidiocesano Cristo Redentor é de titularidade da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Diante da ineficiência do ICMBio, os projetos de lei buscam devolver à Arquidiocese a gestão da área do alto do Morro do Corcovado, por ela construída e gerida até o ano de 2007”.
O ano em questão corresponde ao nascimento do ICMBio, autarquia criada dentro do Ministério do Meio Ambiente com o intuito de fazer a gestão das unidades de conservação federais. Antes, entretanto, o parque, criado em 1961, e a área do monumento já eram geridos pelo Ibama e pelo seu antecessor, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF).
“Se faz importante frisar, que a área NUNCA foi administrada pela Mitra Arquiepiscopal do Rio de Janeiro”, ressalta trecho da nota técnica elaborada pelo ICMBio. “Jamais coube à Mitra Arquiepiscopal do Rio de Janeiro administrar o Alto Corcovado, mas sim a porção referenciada no Decreto n° 55.936 de 19 de abril de 1965, revogado pelo Decreto s/n de 15 de fevereiro de 1991, a manutenção do monumento (estátua) e da capela Nossa Senhora de Aparecida”, detalha.
De acordo com a arquidiocese, o Santuário do Cristo Redentor poderia fazer a gestão com parcerias privadas, “garantindo conservação, limpeza e segurança decentes”, com foco na “preservação e administração do patrimônio arquitetônico e religioso, sem impacto econômico e ambiental”.
A nota afirma ainda que foi a Mitra quem implementou, “sempre com parcerias privadas e doações dos fiéis, as escadas rolantes e os elevadores”. O que a afirmação não conta é que a instalação das estruturas, inauguradas em 2003, foi feita entre os parceiros estavam o próprio Ibama (gestor na época), além da Prefeitura do Rio, da Fundação Roberto Marinho e da iniciativa privada.
Atualmente, conforme consta no contrato do ICMBio com a concessionária Trem do Corcovado – firmado em 2014 – cabe a empresa que gere o transporte ferroviário realizar toda a manutenção, recuperação e operação dos elevadores e escadas rolantes de acesso ao Alto do Corcovado para garantir o funcionamento dos equipamentos de forma ininterrupta durante todo o horário de visitação.
Além disso, de acordo com a Nota Técnica do ICMBio, foi elaborado um projeto de revitalização e modernização do Alto Corcovado, e também aumentar a acessibilidade e conforto dos visitantes no monumento. Não há previsão, entretanto, de quando o projeto seria tirado do papel.
Procurado por ((o))eco para um posicionamento sobre a desafetação e os conflitos de uso no Corcovado, o ICMBio ressaltou apenas que: “O Instituto Chico Mendes (ICMBio/MMA) é contra qualquer iniciativa de diminuição de áreas das nossas unidades de conservação”.
A reportagem tentou entrar em contato com todos os parlamentares envolvidos em ambos os projetos de lei, mas nenhum retornou o contato de ((o))eco até a data de fechamento desta edição. O espaço segue aberto.
Quem manda no Corcovado?
“Não pode mais subir [pro Cristo], é ordem da igreja”, disse um funcionário na frente da porta fechada da bilheteria do Centro de Visitantes da Paineiras Corcovado, concessionária que gere as vans que dão acesso ao Cristo Redentor. A frase foi ouvida pela repórter de ((o))eco na última segunda-feira (14), às 16h10. A última van havia subido às 16h, uma hora mais cedo do que o horário oficial de fechamento das bilheterias, que seria às 17h, como informa o próprio site da concessionária. Em nenhum lugar constava o anúncio de que naquela segunda-feira seria diferente. Nem mesmo os funcionários sabiam explicar e pareciam, eles mesmos, terem sido surpreendidos com o fechamento precoce da operação das vans.
Mesmo turistas com ingressos já comprados e válidos para o dia foram barrados e orientados a solicitar reembolso por um canal de Whatsapp ou comprar o ticket do trem, gerido por outra concessionária, que seguia com o funcionamento normal.
“Somos de Belo Horizonte, chegamos aqui, as crianças super animadas para conhecer o Cristo. E quando a gente chegou aqui, simplesmente falaram que não podíamos entrar, com ingresso válido até as 17 horas, mas falaram que hoje encerrou mais cedo. E ninguém avisou nada”, reclama Cinara, uma das turistas barradas com quem a repórter conversou durante o episódio. “E não dão explicação nenhuma”.
“É uma briga aqui, quem manda e quem não manda. ICMBio, Paineiras [concessionária], a igreja… mas é a primeira vez que vejo uma situação dessas, se eles avisassem [com antecedência] pelo menos teria algum tipo de controle”, pontua um guia de turismo que leva visitantes pro Corcovado há anos e preferiu não se identificar por medo de represália ao seu trabalho.
Um dos funcionários com quem a repórter conversou chegou a dizer que “a Mitra não deixou subir mais ninguém, vai ter evento, é ordem da igreja”. Ao ser confrontado sobre o fato de que o parque é gerido pelo ICMBio e não pela igreja, o funcionário não soube responder. “Eles devem ter autorizado”, supôs.
Questionado por ((o))eco, a administração do Parque Nacional da Tijuca negou que houve permissão e informou que “foi indeferida a solicitação de autorização para fechamento antecipado da visitação no Alto Corcovado para realização de evento de “renovação de votos” nesta segunda-feira, 14 de outubro de 2024” e que foi dada a sugestão de que o evento fosse realizado antes ou depois do horário de funcionamento do Corcovado, que ocorre todos os dias das 8h às 19h.
O evento em questão era a renovação de votos de casamento do cantor sertanejo Michel Teló. Os valores pelo aluguel do espaço, como em outros eventos negociados com a Mitra, não foram divulgados.
Ainda segundo a nota, o indeferimento foi dado porque o requerimento não se enquadrou em nenhum dos casos previstos pelo Ministério do Meio Ambiente para suspensão de visitação em unidades de conservação, como situações de risco e emergência.
Em nota, a Mitra nega que houve qualquer ordem de suspensão de visitação no dia 14 de outubro de 2024 por parte do Santuário. “Nesta data, foi realizada uma celebração religiosa às 20h no Santuário, após o horário de visitação turística, sem qualquer impacto na visitação”.
Procurada por ((o))eco, a concessionária Paineiras Corcovado negou qualquer irregularidade, afirmando que a visitação ao Cristo Redentor “ocorreu normalmente, sem pedidos de reembolso e seguindo o cronograma regular”. Uma versão que não corresponde aos fatos presenciados pela própria repórter de ((o))eco. A reportagem questionou a resposta da concessionária, mas não obteve retorno. O espaço segue aberto.
A reportagem voltou a procurar Cinara, uma das turistas prejudicada pela decisão de suspender as vans mais cedo, para saber se ela já havia sido reembolsada. Até a quarta-feira (19) de tarde a turista ainda aguardava o ressarcimento dos ingressos.
Há três formas de acessar o platô onde fica a estátua mais famosa do Rio de Janeiro. As vans, operadas pela concessionária Paineiras Corcovado, que saem dos bairros do Largo do Machado e de Copacabana, e também do Centro de Visitantes das Paineiras. E o trem, operado por outra concessionária, a Trem do Corcovado, com uma estação principal no Cosme Velho e outra também nas Paineiras. Há ainda a opção de subir a pé por uma trilha que começa no Parque Lage.
A visitação ao monumento ocorre todos os dias das 8h às 19h. A última van sobe às 17h e o último trem às 18h.
Diferente das vans, os trens – responsabilidade de outra empresa – continuavam a operação normalmente. Na bilheteria do trem das Paineiras, a repórter comprou o ticket sem nenhum impedimento às 16:45.
Conforme esclarecido pela própria concessionária Trem do Corcovado, “em relação à segunda-feira (14), o trem é uma concessão e não teve autorização do ICMBio para parar as operações”.
Enquanto isso, no platô do Cristo Redentor, um zumzumzum diferente regia a multidão que tradicionalmente visita o ponto turístico numa cacofonia de visitantes e trabalhadores que montavam o evento que aconteceria mais tarde.
Turistas disputavam o espaço da selfie com dezenas de funcionários que carregavam cadeiras, arranjos de flores brancas, cabos e luzes e coordenavam a montagem da cerimônia de renovação dos votos do cantor sertanejo Michel Teló.
No corredor central – o favorito para as fotos tanto da paisagem quanto da estátua – um plástico preto nada fotogênico cobria parte do chão para proteger o carpete branco embaixo. Nas laterais, cadeiras empilhadas e instrumentos de uma banda ainda por vir ocupavam o espaço.
A movimentação incomodava alguns dos turistas, principalmente na hora de tirar fotos com o monumento e na circulação pelo platô, em alguns pontos parcialmente obstruída pelos equipamentos. Outros se divertiam por estarem vendo os bastidores do evento de uma celebridade.
Perto do encerramento do horário formal de visitação, às 18:40, a repórter presenciou a chegada das vans adesivadas do parque – que identificam os veículos da Paineiras Corcovado – trazendo convidados do evento matrimonial.
Histórico de conflitos
De acordo com duas notas técnicas elaboradas pelo ICMBio em setembro deste ano, e as quais ((o))eco teve acesso, não é a primeira vez que a realização de um evento fere os acordos da Mitra com o órgão ambiental.
Os documentos do ICMBio, que analisam os projetos de lei recentemente apresentados no Senado e na Câmara, listam inúmeras ocasiões em que a realização de eventos, tanto religiosos quanto comerciais, desrespeitaram o estabelecido no Termo de Compromisso.
Num destes episódios, por exemplo, uma marca de energético instalou tendas na “varanda” do platô do monumento, impedindo o acesso de visitantes ao ponto com a vista mais cobiçada da Baía de Guanabara e da cidade do Rio durante o evento, realizado de forma ininterrupta por 24 horas entre os dias 9 e 10 de agosto deste ano.
“O evento privou o acesso ao Platô principal do Alto Corcovado; privou o acesso à sombra e à vista em frente à loja 06; privou o acesso à vista panorâmica da e na “varanda” do Platô principal; privou o visitante do direito ao silêncio durante todo o período de visitação do dia 09 de agosto de 2024”, pontua trecho do documento.
A loja “06” citada é outro ponto de conflito. Situada logo abaixo do platô principal, a loja, antigo restaurante que estava desocupado, foi convertida em capela e base da Mitra, com espaço interno maior do que a que fica aos pés da estátua. De acordo com informações apuradas por ((o))eco, a entidade ocupou o imóvel em junho de 2023 com a justificativa fazer uma campanha do agasalho e não saiu mais, conquistando o direito a permanência, de forma provisória, até que seja feito um novo processo licitatório para os pontos comerciais no monumento.
Ao todo, existem sete lojas no Alto Corcovado. Dessas, seis estão ocupadas (sendo uma delas a capela) e uma está vazia. O direito pela concessão aos lojistas também foi objeto de disputa entre a igreja e o órgão ambiental, que desde 2021, após uma decisão judicial, passou a ser oficialmente do ICMBio e não mais da arquidiocese.
A moção do Conselho Consultivo também critica a crescente exploração comercial por parte da Mitra associada a interesses privados e que “distorce o propósito original do monumento”.
“Eles [da Mitra] querem que seja 24 horas [a visitação no Cristo]. É interessante para a floresta? Claro que não, tem bichos noturnos. Pros moradores do Cosme Velho é interessante? Não, você vai estar dormindo e vai estar passando trem e van subindo pro Cristo. Não podemos tornar o ponto 24 horas, tem um limite e aí são os jogos de interesse econômicos. Tem que ter uma norma. Quem dá a norma é o ICMBio e o Parque”, reflete Antonio Guedes, da associação de moradores VIVA Cosme Velho e também conselheiro do Parque Nacional da Tijuca.
Tampouco é a primeira vez que um projeto de lei busca tirar o Alto Corcovado do Parque Nacional da Tijuca.
Em 2021, o deputado federal Helio Lopes (PSL-RJ) apresentou proposta para desafetação do Cristo Redentor do Parque Nacional da Tijuca, que ficou parada na Câmara.
Quase quinze anos antes, em 2007, o então deputado Otávio Leite propôs, sem sucesso, a municipalização do Alto Corcovado e o projeto foi arquivado. Mais recentemente, em 2021, em outra tentativa de passar a área do Cristo para o município do Rio, o prefeito Eduardo Paes chegou a publicar um decreto municipal com a “regularização fundiária” da área do Cristo, em que reconhecia a Mitra Arquiepiscopal como legítima dona da área. O decreto, entretanto, foi invalidado judicialmente, já que a área pertence à União e não ao município.
Parte das justificativas por trás dos projetos de lei estão na data de construção da estátua, erguida trinta anos antes da implementação do parque nacional. A cronologia, entretanto, também é um duelo de narrativas.
A estátua e o Corcovado
O projeto da estátua do Cristo Redentor começou a sair do papel em 1921, assinado pelo arquiteto Heitor da Silva Costa, como parte dos preparativos para a comemoração do Centenário da Independência do país. A construção, entretanto, teve seu início apenas em 1926. Feito de concreto armado revestido com pedra-sabão e 38 metros de altura, o Cristo levou cinco anos para ser concluído e foi oficialmente inaugurado em 12 de outubro de 1931.
A obra foi financiada através de uma campanha de arrecadação de fundos liderada pela arquidiocese. Uma curiosidade que o professor e conselheiro Jaime Villas da Rocha não deixa passar despercebida. “Se você pensar, o Cristo Redentor não é da Mitra desde a sua construção, porque ela nem sequer tirou dinheiro do bolso, ela fez uma campanha de arrecadação, então começa aí”, pontua. O professor afirma ainda que há usos religiosos do local que são anteriores à construção do Cristo e “que não são sequer da matriz cristã”.
Trinta anos depois de construída a estátua, em 1961, foi oficializada a criação do então Parque Nacional do Rio de Janeiro, renomeado posteriormente como Parque Nacional da Tijuca, cujo perímetro sempre incluiu o Corcovado e, por consequência, o Cristo Redentor.
A ordem cronológica da estátua e do parque nacional é um dos pontos usados pelos parlamentares como justificativa para a suposta titularidade, por direito, da igreja sobre o monumento, já que a área teria sido “cedida pela União à Mitra Arquiepiscopal”, como afirmam as justificativas das propostas.
A história, entretanto, não é tão simples quanto essa linha do tempo.
Setenta anos antes da inauguração da estátua, as florestas da Tijuca e das Paineiras – que fazem parte da Serra da Carioca – já haviam sido declaradas por Dom Pedro II como “Florestas Protetoras”. Junto com o título, o então imperador começou em 1861 a desapropriação de propriedades particulares na serra para promover o reflorestamento pioneiro da área, com o objetivo de garantir o abastecimento de água da capital do império.
“A preocupação pela preservação da área precede o Cristo”, enfatiza o diretor de Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente, Pedro da Cunha e Menezes, que foi gestor do parque nacional entre 1988 e 2000. “Dom Pedro II abriu a trilha para o Corcovado em 1815. E já era um ponto fundamental da visitação no Rio de Janeiro, muito antes da estátua”, completa.
A estrada de ferro que até hoje leva aos pés da estátua, por exemplo, e o antigo Hotel Paineiras – local em que hoje é o centro de visitantes operado pela concessionária – foram inaugurados em 1884. E em 1885, foi inaugurado o “Chapéu do Sol”, uma estrutura com mirante para receber os visitantes que ficava onde hoje está a estátua.
Ou seja, quase meio século antes do Cristo Redentor ser construído no topo do Corcovado, o morro e a sua vista privilegiada que faz jus à Cidade Maravilhosa já atraíam pessoas de todo mundo para passeios e piqueniques.
“Sempre foi o melhor mirante da cidade, por isso colocaram a estátua ali. O Corcovado é um mirante que vale a visita com ou sem Cristo. A entrada da baía, com o Pão de Açúcar. As pessoas vão até pelo Cristo, mas o grande motivo da visita não é religioso”, afirma o conselheiro e professor da UNIRIO.
Curiosa para testar a afirmação, perguntei para um grupo de turistas do Espírito Santo que visitava o Corcovado o que eles preferiam: a vista ou o Cristo Redentor. “Só a estátua, sem a vista, é Colatina”, respondeu bem-humorado um dos turistas capixabas fazendo referência à cidade do Espírito Santo que possui, como outras no Brasil, seu próprio Cristo.
“Tem vários outros cristos no mundo e alguém fala deles? Não. Porque é a vista. O que fascina as pessoas ali é a vista, não o monumento”, arremata Jaime.
O diretor de áreas protegidas e ex-gestor reforça ainda o ICMBio e os órgãos ambientais que o precederam sempre foram os principais responsáveis por cuidar do Alto Corcovado. “E sempre incluindo a igreja, para manter a questão religiosa. Tanto o MMA quanto o ICMBio estão abertos para conversar porque não tem valor só religioso, mas turístico, histórico e ambiental”, afirma. “Ver o valor ambiental só pelas árvores é míope. O turismo de massa nesses espaços de intersecção com a natureza tem um valor fundamental para aproximar as áreas protegidas da sociedade”, reforça Pedro da Cunha e Menezes.
O ex-presidente do ICMBio, Cláudio Maretti, concorda e acrescenta que o Parque Nacional da Tijuca, apesar de pequeno se comparado a outras unidades de conservação, é um gigante por estar inserido no meio urbano.
“Além de uma biodiversidade importante perto da cidade, o que é difícil, ele tem suas funções potencializadas justamente por estar próximo da sociedade. Ele oferece excelentes condições para promoção da saúde, bem-estar, lazer, exercício físico, e convivência social além do significativo contingente de turistas que recebe”, pontua Maretti. “Embora o Cristo faça referência a religiões cristãs, em particular a católica, ele é um patrimônio paisagístico e artístico nacional. E faz sentido esse patrimônio cultural estar inserido dentro de um parque nacional”.
Em resposta, a assessoria da Mitra Arquiepiscopal afirma que: “Apesar de há alguns anos o ICMBio tentar relativizar a presença da Igreja Católica no Santuário Arquidiocesano Cristo Redentor, adotando uma postura de secularização e intolerância religiosa, não há nenhum conflito. Pelo contrário, a Mitra entende que o objetivo da proposta do Congresso busca delimitar as responsabilidades de cada entidade, evitando que recursos sejam desperdiçados e que a experiência do visitante seja prejudicada, assim proporcionando um ordenamento à altura do maior cartão-postal do Brasil para o mundo”.
No meio da disputa: as concessionárias
Atualmente, o Parque Nacional da Tijuca possui dois contratos de concessão na área do Corcovado, ambos preveem não apenas investimentos em estruturas e manutenção, mas também em ações sociais no entorno.
Um deles com a empresa Trem do Corcovado LTDA, firmado em 2014, que prevê a modernização e manutenção do transporte ferroviário de passageiros que leva do Cosme Velho ao Alto Corcovado.
O outro com a empresa Paineiras-Corcovado LTDA, que pertence ao Grupo Cataratas, firmado em 2021, que prevê a prestação de serviço de controle de acesso rodoviário e transporte de turistas em vans, além de cobrança de ingresso, lojas, restaurante e centro de visitantes.
Sávio Neves, presidente da empresa Trem Corcovado, concessionária responsável pelos trens que dão acesso ao monumento, defende a proposta e acredita que devolver a gestão da área à igreja é um “resgate”.
“Na verdade, o monumento do Cristo Redentor por estar dentro de uma unidade de conservação ambiental, administrada pelo ICMBio, ele tem uma regra única do Brasil todo que restringe a visitação. É o principal atrativo turístico, o maior cartão-postal do Brasil, mas com horário de visitação de unidade de conservação ambiental. Então sou totalmente de acordo a retirar o monumento do Cristo Redentor fora da unidade de conservação ambiental porque ele tem outras regras, outros horários, outro fluxo, que não são os mesmos interesses de uma unidade de conservação ambiental”, defende o presidente da Trem Corcovado.
A concessionária Paineiras Corcovado, também foi procurada para se posicionar sobre o projeto, mas não respondeu.