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O que a mais ambiciosa legislação americana para recreação ao ar livre tem para nos oferecer?

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O que a mais ambiciosa legislação americana para recreação ao ar livre tem para nos oferecer?

Em um de seus últimos atos como presidente dos Estados Unidos, Joe Biden sancionou, em 4 de janeiro, a EXPLORE Act, transformando-a oficialmente em lei. A sigla EXPLORE deriva das iniciais, em inglês, de “Expandindo a Recreação e Experiências ao Ar Livre em Terras Públicas” (Expanding Public Lands Outdoor Recreation Experiences Act) – e de um pouco de boa vontade também para formar o acrônimo perfeito. 

Essa legislação vinha sendo amplamente aguardada e incentivada pela comunidade de vida ao ar livre dos EUA. E não é por menos: a lei busca resolver uma série de problemas do setor, desde a ampliação do acesso de jovens e veteranos de guerra até a regulamentação do uso de ancoragens fixas em escaladas realizadas em áreas naturais pristinas, passando pela otimização para celebração de parcerias, incentivos para o desenvolvimento do entorno de Áreas Protegidas e regulamentação de estandes de tiro em florestas nacionais.

A lei foi aprovada tanto no Senado quanto na Câmara com apoio bipartidário. Conseguir uma aprovação em que republicanos e democratas concordam, especialmente em 2024, ano da última eleição, não foi uma tarefa simples. Especialmente quando consideramos que o setor de recreação ao ar livre nos EUA movimenta mais de um trilhão de dólares por ano e emprega cerca de cinco milhões de pessoas. Os interesses em jogo são muitos. Esse consenso foi cuidadoso e desafiadoramente costurado pelas entidades que apoiaram a lei. 

Apesar de apresentar inúmeros avanços de maneira geral, não é uma panaceia. Vale nota, por exemplo, sua tímida ambição para endereçar questões como a baixa visitação de áreas protegidas por negros e latinos, comparativamente à seus compatriotas brancos. 

De todo modo, não só seu conteúdo, como seu processo de aprovação, oferecem a oportunidade de reflexões e inspirações importantes ao Brasil de como uma legislação pode funcionar tanto para estabelecer uma agenda de políticas públicas coerente quanto como seu processo de formação pode ajudar não só na sua aprovação, mas também na fiscalização daquilo que foi aprovado, criando grupos de pressão em prol das áreas protegidas. O momento, inclusive, é oportuno, afinal, tramita atualmente no Congresso brasileiro o Projeto de Lei 4.870/24, que, à seu modo, também busca fortalecer a recreação nas nossas Unidades de Conservação.

O conteúdo da lei

Mas afinal, o que essa lei aborda?

Ao todo, a EXPLORE conta com 64 seções aprovadas. Algumas alteram leis existentes, outras criam novas políticas públicas e outras ainda simplesmente renovam programas já existentes em poucas linhas. Basicamente todas as agências federais que gerem alguma terra pública são citadas, especialmente o Departamento do Interior, ao qual está vinculado o National Park Service, e o Departamento de Agricultura, que por sua vez conta com o Forest Service – os departamentos de lá seriam os ministérios daqui. Algumas disposições são para uma agência específica, outras para algumas delas e outras valem para todas. 

Sim. É uma grande confusão. Mas se você já chegou até aqui, detestaria perder seu interesse com uma tediosa explanação jurídica. 

Assim, em linhas gerais, podemos segmentar todo o conteúdo da lei em quatro principais dimensões:

  1. Aprimoramento de atividades recreativas:
    Muito influenciada por grupos de usuários das áreas protegidas, como ciclistas, escaladores e atiradores, a lei fortalece essas práticas, dispondo, por exemplo, a obrigação de consolidação de 10 trilhas de longo curso para bicicletas distribuídas o melhor possível pelo país ou a implementação de 27 áreas de camping na Floresta Nacional de Ouachita. 
  1. Desenvolvimento do território:
    Há uma grande preocupação com as comunidades localizadas nas entradas das áreas protegidas, de modo que a lei traz diversas disposições para que as agências gestoras das unidades possam assumir um papel de protagonismo no território, lidando com desafios que vão de moradia à maior oferta de atividades de lazer em seu entorno. 
  1. Melhoria de processos administrativos:

Um importante ponto da lei é a simplificação de uma série de processos, como a emissão de autorizações (permits), parcerias comerciais, filmagens e o fortalecimento da cooperação entre agências e governos locais. A ideia é, ao final, tornar o trabalho dos órgãos públicos mais eficiente, ao mesmo tempo em que melhores serviços sejam oferecidos aos visitantes.

  1. Diversificação do perfil dos visitantes:
    Por fim, vale nota o esforço de se incluir mais diversidade no perfil dos visitantes, com exigências como a implementação de trilhas e atividades recreativas para pessoas com deficiência, o mapeamento de barreiras e soluções para incluir grupos sociais marginalizados ou a renovação do programa Every Kid Outdoor – que permite o acesso gratuito por estudantes do 4º ano às áreas protegidas. 

O contexto norte-americano é claramente distinto do Brasil, de modo que não devemos copiar e colar soluções encontradas por eles. Mas não podemos deixar de fazer a pergunta: o que pode nos servir de inspiração? 

O Parque Nacional das Badlands possui cerca de 982 km² e está localizado em Dakota do Sul, nos EUA.

Formação de coalizões diversas, mas com um objetivo em comum

Uma das lições mais marcantes da EXPLORE Act, e talvez a que mais chama a atenção, foi seu poder de conseguir unir diversos grupos em torno de um objetivo comum: a melhoria da recreação em áreas públicas. Sua aprovação foi comemorada por organizações de ciclistas, escaladores, montanhistas, ambientalistas, fabricantes de barco e até até pela famigerada National Rifle Association, infame por seu lobby pró-armas.

É claro que não é no uso de armas de fogo em áreas protegidas que devemos nos inspirar, mas sim, nesse objetivo em comum que fez com que entidades tão diversas, com agendas que, à princípio, parecem não ter um único ponto convergente, conseguissem colaborar e alcançar um resultado que, ao final, todos puderam comemorar. 

Emprestando as ideias de Ignacio Jiménez no livro Produção de Natureza, se quisermos, de fato gerar processos benéficos à conservação, devemos não só falar e atuar com aqueles que compartilham nossos valores, mas buscar incluir soluções que atendam às variadas necessidades da sociedade, o que demanda atrair os que são diferentes.

Criar amplas coalizões não é simples, mas talvez seja um caminho interessante para que possamos não apenas avançar na agenda, mas expandir as fileiras da conservação.

Metas claras, tangíveis e realistas

Ainda que muito de seu conteúdo seja a regulamentação de processos administrativos e burocráticos, um destaque da EXPLORE é a definição de metas específicas, com prazos, responsáveis e resultados esperados. Por exemplo, no que diz respeito à implementação de trilhas para pessoas com deficiência, a lei estipula que em até um ano deverão ser selecionados locais para implementação de trilhas acessíveis, e que, em até sete anos, as mesmas deverão ser implementadas. 

Outro exemplo é a elaboração de planos para aumentar o número de visitas de veteranos de guerra e jovens, os quais devem ser construídos com participação da sociedade, com a apresentação de objetivos, metas quantificáveis e previsão de custos, e realizados em até um ano.

Esse é o padrão de muitos dispositivos da lei: mapear oportunidades, planejar e implementar, com envolvimento de todas as partes interessadas. Ao deixar claro quais são as entregas necessárias e seus prazos, cria-se um importante instrumento de priorização de políticas públicas para fiscalização do cumprimento dessas metas. 

Mas é preciso tomar cuidado, pois o feitiço pode virar contra o feiticeiro, especialmente na realidade brasileira onde nossos órgãos ambientais precisam ser fortalecidos. Colocar muitas exigências e prazos exíguos pode sufocar os já poucos servidores que precisam se dedicar a outras funções essenciais, às quais talvez tivessem que deixar de lado para não estar em desacato com a lei. 

Programas pilotos: testando em menor escala para soluções complexas

Em um país de dimensões continentais, com profundas variações regionais, criar políticas públicas nacionais pode ser um desafio gigantesco. Começar em menor escala, de modo a se testar, corrigir erros, aprimorar o programa e gerar conhecimento do que funciona e o que não, é uma boa ideia para a elaboração e implementação de políticas públicas. 

São diversos os programas piloto estabelecidos. Da contratação de veteranos à implementação de trilhas e monitoramento da visitação em tempo real. Um exemplo é o programa piloto de parcerias Pay-for-Performance, um modelo relativamente comum em alguns países, mas não no Brasil, no qual, de forma bastante simplificada, o governo paga ao parceiro de acordo com o resultado das entregas estabelecidas. Outro são as autorizações temporárias para operadores de serviços turísticos, que, caso desempenhem de forma satisfatória, podem passar a ser permanentes.

Essas iniciativas permitem testar ideias, avaliar os resultados e, caso sejam bem-sucedidas, ampliar sua implementação. Se der errado, o custo de cancelar não é tão alto. 

Parque Nacional Wind Cave, localizado em Dakota do Sul.

Planejamento e informações

Há um grande destaque ao monitoramento da visitação, exigindo que todas as agências adotem um sistema único para reportar dados, padronizem categorias de atividades recreativas e estimem o número de visitantes por essa segmentação. Essa padronização é crucial para entender os visitantes, seus padrões de uso e as atividades mais demandadas, permitindo um planejamento mais eficiente das áreas protegidas. 

Mais do que isso, deverá ser criado um amplo inventário das atividades recreacionais disponíveis e aquelas em que  há oportunidade de desenvolvimento.

O conjunto de informações sobre os visitantes e o levantamento das oportunidades de recreação existentes e possíveis é, de certa forma, uma avaliação constante da oferta e demanda da recreação em áreas protegidas, permitindo aos gestores um planejamento ancorado em evidências. 

Esse é, inclusive, um desafio por aqui. Olhando  além do governo federal,  para os estados, são poucos os que mensuram e divulgam os dados de visitação. Muitos mensuram, mas guardam as informações internamente e outros ainda nem sequer sabem o número de visitantes de suas UCs. Para expandirmos a visitação com qualidade, é essencial conhecermos esses números, para avançar e cada vez mais ampliar a oferta de oportunidades de recreação e a demanda por elas.

Fortalecer Comunidades Locais é Fortalecer a Conservação

O turismo em áreas protegidas pode gerar benefícios significativos para as comunidades locais, mas também pode trazer desafios, como aumento do custo de vida, pressão sobre serviços públicos e mudanças na dinâmica social. Reconhecendo o papel de protagonistas que as áreas protegidas possuem em seu território, a EXPLORE estabelece que as agências responsáveis devem colaborar com governos locais, sociedade civil e outras entidades para identificar e atender às necessidades das comunidades afetadas pela visitação, como moradia, demanda por serviços locais, como água e coleta de lixo, e a gestão sustentável da visitação como um todo.

A lei vai além, criando condições para que se possam pensar em usos para as áreas recreativas na baixa temporada, mitigando a diminuição do número de visitantes no período e criando condições para o aumento das oportunidades de recreação, com apoio da gestão das áreas protegidas, para além dos limites de seus territórios. Cria ainda possibilidades de envolvimento de populações indígenas em atividades recreativas, colocando-as como possíveis beneficiárias da maioria dos programas criados pela lei.

São inspirações para que nossas unidades de conservação possam também, cada vez mais, não só possibilitar o envolvimento de comunidades locais na cadeia do turismo, mas também fortalecer a prática de atividades recreativas ao ar livre. 

Conclusão

A recreação e o turismo em áreas protegidas tem um potencial transformador imenso, mas para que o mesmo se torne realidade precisamos implementar políticas públicas assertivas e eficazes. A EXPLORE mostra a importância de construir consensos entre diversos grupos de interesse, estabelecer metas claras e viáveis, e de se inovar, com programas pilotos, por exemplo. Não que não estejamos fazendo isso, mas as boas iniciativas em andamento precisam ganhar escala e força.

Mas nem a aprovação da lei em consenso de democratas e republicanos garante a preservação das áreas protegidas norte-americanas. Em seu primeiro mandato, Donald Trump reduziu o tamanho de dois importantes monumentos naturais, Bears Ears and Grand Staircase-Escalante, ambos no estado de Utah, no que foi a maior redução do tipo na história americana. Tanto lá, quanto aqui, os desafios são muitos, e podem ser ainda maiores num futuro não tão distante. Que esse texto possa servir como um convite para a reflexão e a ação do lado de cá do continente.

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