Quem caminha pelas ruas da cidade de São Paulo pode já ter se deparado com um de seus mais de 350 jardins de chuva sem notá-lo. Com aparência de um canteiro comum, essa Solução Baseada na Natureza (SbN) é um tipo de infraestrutura verde capaz de aumentar a resiliência climática dos centros urbanos, ao reduzir as inundações por meio da infiltração da água no solo, melhorar a qualidade da água infiltrada, regular o microclima e de aumentar a biodiversidade.
Em 2016, um grupo de moradores da Vila Jataí, no Alto de Pinheiros, zona oeste da capital paulista, construiu o primeiro jardim de chuva da região e um dos mais antigos da cidade. A iniciativa se deu pelo incômodo da população com a força e velocidade das águas das chuvas e da lama que se arrastava pelas ruas.
O projeto, feito de modo pro bono pelo escritório de empreendimentos Incriatório, foi proposto pelo coletivo e aprovado pelo Conselho Regional de Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Cultura de Paz (Cades), garantindo a execução por meio da Subprefeitura.
“Essa foi uma experiência interessantíssima principalmente pela participação social”, afirma o ativista pelas águas urbanas Maurício Ramos, morador da região, integrante do coletivo das Vilas Beija – Beatriz, Ida e Jataí – e membro do Cades da Subprefeitura de Pinheiros. “O planejamento urbano tem que ter como base o plano de bairro feito em conjunto com a sociedade civil.”
((o))eco visitou o jardim de chuva localizado no cruzamento da rua Livi com a rua Padre Cerda. A localização escolhida é estratégica: em uma altitude intermediária do relevo. Desse modo, a estrutura retarda a velocidade das águas da chuva, garantindo que as áreas mais baixas da cidade não inundem.
Segundo Maurício, as infraestruturas verdes devem ser pulverizadas pela cidade e combinadas entre si e são capazes de mitigar impactos para as chuvas menos volumosas e mais frequentes. “Um desse tira, sei lá, 12 mil litros d’água, mas precisamos de que seja permeável milhões de litros de água. Por isso, precisamos de um conjunto de soluções baseadas na natureza de forma descentralizada.”
Essas infraestruturas dependem de materiais simples e baratos de construção civil, como areia e pedras, ao contrário dos piscinões, cujos contratos historicamente já chegaram à cifra do bilhão apenas nos últimos anos.
Além do custo mais baixo, os jardins de chuva têm como principal característica a melhoria da qualidade das águas que chegam aos lençóis freáticos ou ao sistema urbano de captação. “[A estrutura] limpa a poluição difusa, um dos piores tipos de poluição. Um carro solta CO2, que fica no asfalto. Quando a chuva vem, ela lava tudo. A água fica tóxica. Vai pro piscinão e fica pior que um caldeirão de bruxa, porque além dessa água tóxica, tem animais mortos, que acabam morrendo afogados e são carregados”, explica o ativista.
O armazenamento de água no sistema hídrico por meio de soluções baseadas na natureza também é um caminho não apenas para as inundações, mas também para o outro lado da moeda: a escassez hídrica dos períodos secos. Maurício afirma que, com uma gestão de águas urbanas pensada para estruturas descentralizadas, a região poderia ter uma segurança hídrica maior, diminuindo a dependência e sobrecarga do Sistema da Cantareira.
Como funciona
A diferença do jardim de chuva para um comum está sobretudo no planejamento de suas camadas: na superfície, está a vegetação, plantadas no substrato em um solo rico em nutrientes. Logo após a superfície, vem uma camada de partículas finas, como areia, e depois uma faixa de brita. Em seguida, há uma manta geotêxtil para separar a camada anterior da próxima, onde estão os agregados graúdos, pedras maiores, como matacão, que permitem a retenção da água nos espaços vazios entre elas.
“Essas pedras com o tempo começam a ser revestidas de um biofilme, com organismos que trabalham ali no tratamento da água. Todo esse design da própria estrutura depende muito do fim que se quer alcançar”, explica a engenheira ambiental Maria Cristina Santana Pereira, fundadora do Grupo de Interação à Pesquisa em Soluções Baseadas na Natureza (GIP-SbN) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). “Além da melhoria da água, que é um ponto chave desses sistemas, há um pequeno abatimento superficial, que a gente chama de pico de vazão, atrasando que a água chegue ao sistema de drenagem, ajudando na redução de alagamentos”, explica.
Na concepção do jardim de chuva, são necessários também critérios técnicos de hidráulica, como uma borda livre. A técnica requer um espaço entre a terra do jardim e o pavimento da área urbana para que a água seja armazenada e comece a infiltrar no solo, conforme é possível notar na imagem abaixo.
O GIP-SbN implantou dois jardins de chuvas na USP para desenvolver as pesquisas, ambos são conectados ao sistema da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), por meio de tubos acoplados à boca de lobo.
Uma das estruturas está localizada no estacionamento da Poli, campus da USP no Butantã, zona oeste de São Paulo, e conta com 12 espécies de plantas para a filtragem de água.
Tanto Maurício quanto Cristina destacam o papel dessas estruturas na biodiversidade das cidades e na regulação do microclima, a partir da vegetação. O uso de espécies nativas é capaz de atrair insetos – inclusive abelhas, essenciais para a polinização – e pássaros. “As áreas vegetadas são mais frescas, o que faz com que ajude na questão das ilhas de calor também”, afirma a pesquisadora.
Política pública
Para Maurício, a participação da sociedade civil é a chave para o sucesso de projetos como o das Vila Beija. No entanto, o ativista afirma que não houve mais interlocução nas gestões posteriores à iniciativa local – responsáveis inclusive pela implementação em massa das estruturas pela cidade sem a conexão mais direta com os moradores do entorno.
Em 2017, a Secretaria Municipal das Subprefeituras incorporou os jardins de chuva como estratégia para conter as inundações e alagamentos e oferece suporte técnico para as 32 subprefeituras. Até o início de dezembro de 2024, havia 357 obras concluídas em todas as regiões, de acordo com informações concedidas pela assessoria de imprensa do órgão.
A reportagem obteve uma lista da localização das estruturas existentes no ano de 2022 e solicitou os dados atualizados – o que foi negado pela Secretaria. Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a pasta afirmou que não há dados geolocalizados específicos para o projeto e informou a possibilidade de visualização por meio do programa “Adote uma praça”, cuja usabilidade dificulta a percepção dos dados públicos de quais são os jardins de chuva.
Quanto ao monitoramento da eficiência das estruturas instaladas, Luiz Jamil Akel, arquiteto da SMSUB e assessor da secretaria adjunta, afirmou em entrevista a ((o))eco que os jardins de chuva possuem uma absorção mínima de 30% do volume excedente, compatível com sua dimensão e com a topografia. “A gente monitora no seguinte sentido: a partir do momento que ele recebe um determinado volume em um período crítico de verão, a gente consegue ampliar a quantidade naquela região”, explica.
O aumento dos jardins de chuva está relacionado ao Programa de Metas estabelecido para o município entre 2021 e 2024, como um objetivo relacionado à Meta 64 – “Atingir mais de 50% de cobertura vegetal na cidade de São Paulo”. O documento não diz quantos jardins de chuva seriam instalados, tampouco regionaliza sua necessidade.
Segundo os dados de 2022, esquematizados no mapa abaixo, os jardins de chuva se concentram sobretudo na área central do município, historicamente afetada por alagamentos e inundações. As informações dessas ocorrências indicam uma tendência de redução proporcional à localização das estruturas e revelam também a ausência nas periferias da cidade também impactadas pelas chuvas, sobretudo na zona sul e no extremo leste. Akel atribui as diferenças regionais ao orçamento de cada subprefeitura.
As periferias de São Paulo se distinguem de outros municípios brasileiros, como o Rio de Janeiro, por não necessariamente estarem nas encostas de morros. Embora existam, há também comunidades em partes planas do relevo, que são suscetíveis a alagamentos e inundações, como mostra o mapa de ocorrências.
“A gente acredita que aumentando a quantidade e de uma forma apropriada para cada região seja possível melhorar esse número [de infraestrutura verde], mas acredito que seja difícil conseguir substituir [a infraestrutura cinza, como os piscinões]. Ainda estamos um pouco longe disso”, conclui Akel.
Acostumados com o cinza e a poluição urbana, os moradores da capital paulista, aos poucos, veem o verde dos jardins de chuva se espalhar, mesmo sem saber sua função para além de um canteiro comum.