Para a efetividade da Justiça Ambiental no planeta, um dos aspectos fundamentais em nossa visão, é garantir que as fontes de energia renovável sejam instaladas próximas às comunidades que delas se beneficiarão. Dessa forma, minimiza-se o risco de injustiça ambiental, pois os impactos ecológicos serão vivenciados por aqueles que usufruem da energia gerada, e não por terceiros que não compartilham de seus benefícios.
A prática de obtenção de energia em países em desenvolvimento para abastecer países desenvolvidos é conhecida como neocolonialismo energético e significa dar continuidade a relações econômicas desiguais, onde países ricos financiam e exploram os recursos naturais de países mais pobres sem trazer benefícios proporcionais às populações locais. Outra expressão desse fenômeno é green colonialism, que aponta para a apropriação de recursos naturais (como sol, vento e terras) de países do Sul Global para atender às demandas energéticas dos países ricos sob o pretexto da transição para energias renováveis. Um termo mais neutro seria extrativismo energético, usado para descrever um modelo em que a extração de recursos naturais (incluindo energia) ocorre para exportação, sem fortalecer a autossuficiência energética ou econômica do país de origem.
Durante viagem ao Marrocos, em março de 2023, a caminho do Deserto do Saara, um foco luminoso extraordinariamente intenso chamou minha atenção. Mesmo sob a plena claridade de um dia ensolarado, seu brilho se assemelhava a um pequeno sol de luz branca. Intrigado, perguntei ao guia do que se tratava, e ele me explicou que era o Complexo Solar Noor, localizado na região de Ouarzazate. Essa estrutura, uma das maiores usinas de energia solar concentrada (CSP) do mundo, não foi concebida para suprir prioritariamente as demandas energéticas do Marrocos, mas sim para exportar eletricidade, sobretudo para o Reino Unido.
O complexo marroquino utiliza espelhos parabólicos para concentrar a luz solar em receptores, gerando calor que é convertido em eletricidade. A tecnologia permite o armazenamento de energia térmica, possibilitando a produção de eletricidade mesmo após o pôr do sol. O complexo foi construído por um consórcio liderado pela ACWA Power (Arábia Saudita), com a participação da MASEN – Agência Marroquina para Energia Solar (Agência Governamental), a Aries Ingeniería y Sistemas (Espanha) e o Grupo TSK (Espanha), além da NOMAC (Arábia Saudita). O financiamento veio do Banco Mundial, do Banco Europeu de Investimento (EIB), do Banco Africano de Desenvolvimento (AfDB) e do Clean Technology Fund (CTF) [1].
O Marrocos estabeleceu meta para gerar 52% de sua eletricidade a partir de fontes renováveis até 2030 e projetos como o de Noor desempenhariam um papel fundamental nesse objetivo. Contudo, um relatório do Greenpeace divulgado em fevereiro de 2025 analisou o impacto dos investimentos europeus em energia renovável e agronegócio no Marrocos, destacando questões ligadas ao modelo extrativista e suas consequências sociais e ambientais e acusando a União Europeia de greenwashing. O Complexo de Noor Ouarzazate, de acordo com o relatório, constitui a maior usina de energia solar concentrada do mundo. Apesar do alto custo do projeto (US$ 2,5 bilhões), a usina gerou apenas 60 empregos permanentes. A exportação de energia renovável para a Europa, assim, ocorre sem priorizar as necessidades energéticas locais. [2]
A questão transborda para temas conexos. Assim, no que diz respeito à energia renovável e hidrogênio verde, o Marrocos busca se consolidar como exportador de energia renovável para a Europa, com destaque para projetos de energia solar e eólica. Ocorre que a produção de hidrogênio verde é impulsionada por investimentos europeus e compromete grandes áreas de terra e volumes significativos de água, com 92 milhões de metros cúbicos alocados para esses projetos. O Xlinks Morocco-UK Power Project visa o fornecimento de eletricidade renovável ao Reino Unido por meio de cabos submarinos, reforçando a dependência da exportação de energia.
E, no que concerne ao investimento europeu no agronegócio, o Greenpeace destaca que o setor agrícola marroquino é fortemente voltado para a exportação de produtos como tomate e frutas cítricas, enquanto há desafios para a soberania alimentar da população. O Plano Marroquino Verde (Plan Maroc Vert) incentivou a privatização de terras agrícolas e a expansão da agricultura intensiva para exportação, impactando negativamente pequenos agricultores. Pequenos produtores enfrentam dificuldades devido à falta de acesso a terras e recursos hídricos, que são direcionados para grandes corporações financiadas por investimentos europeus.
Em resumo, trata-se de clara hipótese de dependência econômica e neocolonialismo. O Marrocos mantém uma estrutura econômica dependente da exportação de recursos naturais, reflexo de políticas impostas por programas de Ajuste Estrutural no passado. A dívida externa marroquina chegou a 50% do PIB em 2022, com grande parte dos investimentos externos sendo direcionados a projetos voltados para os mercados europeus. O relatório do Greenpeace apresenta os investimentos europeus no Marrocos como parte de um modelo econômico extrativista, no qual energia renovável e produtos agrícolas são majoritariamente direcionados para exportação, enquanto impactos ambientais e sociais são externalizados para a população local.
Podemos estabelecer um paralelo entre a distribuição desigual do poder econômico e político no cenário internacional, concentrado em poucos países, e a concentração fundiária no plano local. Essa desigualdade frequentemente está associada à irresponsabilidade ambiental. Nas economias industriais avançadas, a adoção de modelos ecologicamente insustentáveis resulta na externalização dos impactos ambientais para países mais pobres. De maneira análoga, proprietários rurais que desrespeitam a legislação ambiental obtêm uma vantagem desproporcional sobre aqueles que a seguem — especialmente quando são beneficiados por anistias e marcos temporais.
É imensa a disparidade nos padrões de consumo entre diferentes nações. Um exemplo emblemático é a distância abissal entre Etiópia e Japão: em 1990, a renda per capita de um etíope era 175 vezes menor do que a de um japonês.[3] Para que economias altamente industrializadas, como as do Japão, Estados Unidos, Alemanha, França, Itália e Reino Unido, mantenham seus elevados padrões de consumo, faz-se necessário restringir o acesso a esse nível de prosperidade para grande parte do mundo. Essa dinâmica não decorre de uma escolha arbitrária ou de um desejo deliberado de aprofundar as desigualdades entre o Norte e o Sul globais, ou mesmo dentro das próprias sociedades, entre uma elite privilegiada e uma massa empobrecida. Trata-se, antes, de uma consequência inevitável da finitude dos recursos naturais, insuficientes para universalizar o padrão de consumo predominante nas economias capitalistas avançadas.
A recusa dos Estados Unidos em aderir ao Protocolo de Kyoto, em 2005, ou sua saída do Acordo de Paris, decorridos apenas quatro anos de seu ingresso em 2021, é inteiramente lógica sob a perspectiva do capitalismo nacional e protecionista: reduzir a emissão de gases do efeito estufa implicaria limitar os padrões de consumo vigentes, sobretudo no que se refere à dependência de combustíveis fósseis.
Em 1964, Herbert Marcuse iniciava sua obra One-Dimensional Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society com a seguinte indagação: “A ameaça de uma catástrofe atômica, que poderia exterminar a raça humana, não servirá, também, para proteger as próprias forças que perpetuaram esse perigo?” [4]
Essa reflexão ressoa na política externa norte-americana, que há décadas delega ao resto da humanidade o gerenciamento das externalidades indesejadas de sua própria economia nacional.
Há 20 anos, eu afirmava que essa estratégia se configurava como um jogo de braço de ferro. Isolados, os EUA forçavam os demais países do mundo a reduzirem suas emissões, sob o risco de antecipar a catástrofe climática. Ao mesmo tempo, não lhes interessava assumir a liderança ideológica dessa política, pois o planeta não suportaria a pressão caso todas as nações adotassem os padrões norte-americanos de produção e consumo. [5]
Duas décadas depois, verifica-se um paradoxo: nenhum país parece disposto a assumir esse ônus. Guiana, Venezuela e Brasil sinalizam uma disposição crescente em seguir a mesma política antiambiental do governo Bush, avançando na exploração de petróleo na Amazônia. Se antes a ausência de compromisso climático era vista como um privilégio das potências industrializadas, agora parece se consolidar como um modelo replicável por qualquer nação que busque maximizar seus interesses econômicos a curto prazo, independentemente das consequências globais.
O panorama aqui delineado evidencia como a lógica extrativista continua a moldar as relações internacionais e as políticas ambientais, perpetuando desigualdades históricas sob novas roupagens. A externalização dos custos ambientais pelas economias industrializadas não apenas compromete a justiça climática global, mas também aprofunda a dependência econômica dos países que fornecem recursos energéticos e agrícolas sem que suas próprias populações colham benefícios proporcionais.
Esse cenário se agrava à medida que a transição energética, embora necessária, é conduzida sob paradigmas que reproduzem dinâmicas neocoloniais. Em vez de promoverem autonomia energética e desenvolvimento sustentável nas nações fornecedoras, os investimentos internacionais frequentemente reforçam a subordinação econômica e a precarização ambiental. A exploração do hidrogênio verde e a exportação de energia renovável para a Europa são apenas exemplos mais recentes desse modelo, que já se manifesta há séculos em setores como o agronegócio e a mineração.
O caso do Complexo Solar Noor, no Marrocos, ilustra com clareza essa contradição. Apresentado como um símbolo da transição para fontes limpas, o projeto, na prática, desvia recursos naturais essenciais – como terra e água – para abastecer mercados estrangeiros, deixando a população local à margem dos benefícios. Mais do que um exemplo isolado, Noor Ouarzazate é um reflexo de um sistema global em que os impactos socioambientais da expansão energética continuam recaindo sobre aqueles que menos usufruem de suas vantagens.
Se a transição energética quiser realmente romper com o passado extrativista e promover um futuro sustentável, será essencial redefinir suas premissas. Investimentos em renováveis não podem ser apenas mecanismos de descarbonização a serviço das economias do Norte Global, mas devem garantir soberania energética e justiça ambiental para os países onde são implantados. Caso contrário, a promessa de uma economia verde permanecerá refém das mesmas desigualdades que historicamente estruturam a exploração dos recursos naturais no planeta.
Notas
[1] Fontes: https://www.reuters.com/world/africa/moroccan-solar-plans-hampered-by-dispute-over-technology-2024-02-27/ . Relatório do Greenpeace, além do Banco Europeu de Investimento (EIB), indica outras fontes: o Banco de Desenvolvimento KfW da Alemanha e a Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD). Não cita, porém, o Banco Mundial, o Banco Africano de Desenvolvimento (AfDB) e o Clean Technology Fund (CTF).
[2] Disponível em https://www.greenpeace.org/static/planet4-mena-stateless/2025/02/ce97182f-beyond-extractivism_-towards-a-feminist-and-just-economic-transition-in-morocco-and-egypt-report-eng.pdf – Acesso em 24.fev.2025.
[3] Banco Mundial, 1990, apud ALTVATER, Elmar, O Preço da Riqueza. São Paulo : Editora da UNESP, 1995. p. 210 e ss.
[4] MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial, 3ª ed. Rio de Janeiro : Zahar, 1969. P. 13.
[5] FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A Propriedade no Direito Ambiental, 4ª Ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2010. P. 330.
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