Movidos pelas fortes reações e manifestações contrárias ao Termo de Compromisso celebrado entre a comunidade Mbya Guarani Kuaray Haxa e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para estabelecer condições de uso e manejo das terras e dos recursos naturais de parte de seu território em sobreposição com a Reserva Biológica (REBIO) Bom Jesus, no Paraná, trazemos, por meio desta nota, um outro entendimento sobre a questão.
Nossa abordagem inclui o direito territorial, o papel histórico e atual dos povos indígenas na conservação ambiental, e nas regras de uso de recursos naturais, especialmente sobre a caça de animais silvestres. Também nos embasamos na legalidade e na pertinência do instrumento Termo de Compromisso, estabelecido pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação, como um meio de promover a gestão participativa e colaborativa de áreas protegidas sobrepostas, como é o caso. Argumentamos que a conservação da fauna nativa é compatível com a interação que os povos indígenas estabelecem com os animais, o que inclui o uso para a alimentação, medicina e rituais, desde que seus direitos sejam respeitados. Destacamos, ainda, como as estratégias indígenas de cuidado e manejo da biodiversidade podem ser aliadas da conservação ambiental e recuperação de áreas degradadas, áreas estas desmatadas e poluídas por um modo de produção depredatório oposto ao dos povos indígenas.
Diante da histórica exploração insustentável dos recursos naturais e da devastação da Mata Atlântica, as Unidades de Conservação (UCs), as Terras Indígenas (TIs) e os Territórios Quilombolas (TQs) correspondem às áreas essenciais para garantir a conservação do que ainda resta da biodiversidade. Modelos de conservação inclusivos que combinam a proteção ambiental com o uso sustentável dos recursos naturais pelos povos indígenas, quilombolas e tradicionais têm apresentado resultados muito positivos, aliando conhecimentos desses povos ao conhecimento técnico-científico que convergem a uma mesma direção: a conservação e o manejo da biodiversidade. Bons exemplos não faltam, como são os casos na Amazônia da recuperação de todo o estoque pesqueiro em lagos de várzea, onde foi implementado o manejo do pirarucu (espécie altamente ameaçada que teve o seu status de ameaça reduzido pelo manejo), junto com comunidades locais, indígenas e não-indígenas; e as dezenas de experiências que incluem manejo de quelônios amazônicos e também de fauna terrestre, quando as atividades de caça são desenvolvidas sob protocolos de manejo participativos entre comunidades, gestores e cientistas e acompanhados por sistemas de monitoramento colaborativo. Portanto, o reconhecimento das territorialidades indígenas e o direito de uso dos recursos naturais de acordo com os costumes tradicionais não deve ser visto como um obstáculo ou uma ameaça para a conservação, mas sim como uma solução complementar e sustentável aos esforços realizados para tal fim.
Precisamos ter clareza que, na Mata Atlântica, o desafio atualmente não é somente de se proteger o que restou da biodiversidade deste bioma, mas também de se garantir os direitos dos povos indígenas, ameaçados e marginalizados por séculos nesta área que foi justamente a primeira fronteira da colonização. Ainda hoje, quando não são expulsos de seus territórios por empreendimentos agropecuários ou imobiliários, são vistos como inimigos da agenda conservacionista, justamente em territórios que os próprios indígenas têm ajudado a proteger.
Na nota técnica que elaboramos coletivamente, abordamos também a relação histórica, cultural e territorial do povo Mbya Guarani com a região, que já está em processo de reconhecimento pela Funai, como TI Kuaray Haxa, localizada no litoral do Paraná. O texto destaca como as comunidades Guarani sempre habitaram essa região, resistindo à expulsão e destruição de suas terras desde a colonização. Apesar dos desafios impostos, das constantes expulsões e inúmeros assassinatos, as comunidades Guarani mantiveram um vínculo profundo com a região, especialmente por meio de narrativas e trajetos tradicionais. Sua vital conexão com a Mata Atlântica foi o que permitiu que sobrevivessem ao genocídio imposto pela sociedade não-indígena. A TI Kuaray Haxa é considerada um território sagrado para o povo Guarani, que possui uma relação histórica e espiritual ininterrupta com esse lugar. Procuramos desenvolver essa argumentação abordando a tradicionalidade da ocupação indígena na TI Kuaray Haxa, refutando a tese inconstitucional do marco temporal, que sugere que os direitos territoriais indígenas dependeriam da sua ocupação contínua após a Constituição de 1988.
É importante ter clareza plena de que, se hoje a Mata Atlântica nesta área é um fragmento que sobrou em uma paisagem completamente degradada, os Guarani representam o modo de viver e produzir que havia antes e que possibilitou a sua existência como tal nos dias de hoje. Se atualmente restam algo em torno de 10% de floresta no bioma da Mata Atlântica, essa devastação insana ocorreu diante de forte resistência indígena, o que levou muitos povos ao total desaparecimento. Para os povos indígenas, entre eles os Mbya Guarani, lutar para proteger a floresta sempre foi o mesmo que lutar pela sua própria sobrevivência física e cultural. Causa espanto que diversas instituições e pessoas do movimento ambientalista e da ciência da conservação possam argumentar o contrário, e enxergar os indígenas como uma ameaça. A maior ameaça é justamente o modo de vida não-indígena, baseado em um modelo de desenvolvimento agroextrativista, que só deixa destruição. Enfatizamos a importância de se garantir os direitos territoriais indígenas, reconhecendo sua contribuição para a proteção ambiental e territorial e refutando ainda interpretações que visam enfraquecer esses direitos em nome de uma falsa dicotomia entre conservação e uso tradicional.
A caça ritualística e de subsistência praticada pelos Mbya Guarani, como suas lideranças explicam, não é praticada cotidianamente e nem é focada em espécies ameaçadas, assim como não está atrelada à dinâmica de mercado, nem visa a exploração intensa ou o lucro, mas sim manter a coerência sociocultural, o que inclui a relação respeitosa com todos os seres que habitam a floresta, humanos e não-humanos. O relato apresentado por Verá Popyguá, liderança do povo Guarani, mostra que a caça atualmente tem um aspecto predominantemente simbólico naquela comunidade, não sendo mais uma fonte expressiva de alimento pelos indígenas como era no passado. Popyguá enfatiza que o manejo que os Mbya Guarani fazem do território é baseado no cuidado com a natureza, altamente ameaçada por não-indígenas invasores, como caçadores urbanos e palmiteiros, e pelo desmatamento ao redor da área protegida. Infelizmente.
A ameaça à fauna da Mata Atlântica não está nas práticas de caça dos povos indígenas, mas sim na destruição de habitat e na expansão da pecuária, da agricultura, da malha viária e da urbanização, ou seja, de um modo de viver e produzir que não é o das famílias indígenas que vivem na região. As onças e outras espécies ameaçadas de extinção não são caçadas pelos Mbya Guarani; pelo contrário, são protegidas dentro do contexto de sua cosmovisão e relações equilibradas com a natureza. Portanto, o território onde atualmente foi estabelecida a REBIO Bom Jesus, tradicionalmente também pertencente aos Mbya Guarani, continuará sendo protegido e cuidado com o mesmo respeito e veneração.
O Termo de Compromisso em questão é um grato exemplo de como a gestão ambiental pode reconhecer o papel fundamental dos povos indígenas na proteção do meio ambiente, de forma a permitir que suas práticas culturais e tradicionais sejam incorporadas aos instrumentos legais de conservação e garantir uma convivência harmoniosa entre conservação e uso sustentável dos recursos naturais. A colaboração entre governança indígena e as estruturas de conservação pode resultar em modelos de gestão mais eficientes e integrados, protegendo tanto os direitos territoriais dos povos indígenas quanto o patrimônio natural do Brasil.
Esperamos, através da nossa nota técnica, demonstrar que a conservação ambiental na REBIO Bom Jesus está fortalecida com o Termo de Compromisso, formalizando um acordo com um poderoso aliado, o povo Mbya Guarani. Os indígenas brasileiros têm dado suas vidas, ao longo dos últimos cinco séculos, pela defesa dos seus territórios e da sociobiodiversidade associada aos mesmos. Nós, da Rede de Pesquisa em Diversidade, Conservação e Uso da Fauna da Amazônia (REDEFAUNA) e da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), nos dispomos a colaborar com a comunidade Mbya Guarani Kuaray Haxa e com a FUNAI e o ICMBio para desenvolver um programa indígena de manejo e monitoramento ambiental e territorial, conciliando o conhecimento ancestral com o acadêmico, que avaliará de forma continuada as práticas do uso dos recursos naturais na TI Kuaray Haxa e na REBIO Bom Jesus. Esperamos poder contar com o apoio de todo o movimento ambientalista e dos cientistas da conservação em prol da conservação da Mata Atlântica e que esta experiência seja somada às demais em curso também em outros biomas brasileiros na construção de um Sistema Nacional de Conservação realmente eficaz e participativo.
Leia a nota técnica na íntegra:
Assinam institucionalmente a nota técnica:
Rede de Pesquisa em Diversidade, Conservação e Uso da Fauna da Amazônia (RedeFauna), formada por um grupo de pesquisadoras e pesquisadores ligados a diversas instituições acadêmicas, governamentais e não-governamentais no país, com reconhecida atuação no tema da conservação e manejo de fauna e na defesa do direito à caça de subsistência a povos indígenas e comunidades tradicionais.
Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização indígena que congrega coletivos do povo Guarani nas regiões Sul e Sudeste do Brasil na luta pela terra.
Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (CEPEDIS), vinculado ao Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PPGD/PUCPR).
Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado (OPCPLI), vinculado ao Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PPGD/PUCPR) e ao Programa de Pós-Graduação em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGFDH/UFGD).
Grupo de Pesquisa Conflitos Socioambientais, vinculado ao Curso de Direito da Unidade Naviraí, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).
Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, um dos centros de excelência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e singular em sua atuação na interface entre pesquisa, conservação da biodiversidade, desenvolvimento social, fomento de cadeias extrativas e produtivas com base na biodiversidade, manejo e gestão no Bioma Amazônico.
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