Um ano após as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul no primeiro semestre de 2024, o estado ainda reergue infraestruturas e tenta curar feridas emocionais, enquanto medidas que ajudariam a amenizar novas tragédias ficam para o futuro.
Em julho passado, contamos o drama de Carla Martins e o marido, ambos professores aposentados, com as enchentes na cidade de Montenegro, a 60 km da capital Porto Alegre. Com a casa tomada pelo Rio Caí, foram resgatados por Bombeiros e Defesa Civil.
Entramos novamente em contato com eles agora, cerca de um ano após a tragédia. Estavam prestes a se mudar, pela segunda vez. Primeiro, trocaram de residência com a filha. Nos últimos dias, alugaram uma casa maior, com pátio para seus gatos e cachorros.
“Essa é bem longe do rio. Não gosto nem de passar perto”, disse Carla. “Depois da enchente, não conseguia mais ficar na casa, pois lembrava de tudo que passamos. Até hoje tenho ansiedade”, conta a ex-professora da rede pública.
Segundo ela, a tragédia deixou sequelas físicas e emocionais. “Fiquei com um problema nos braços de tanto lavar paredes imundas e tirar barro. Móveis e eletrodomésticos dá para comprar de novo, mas fotos dos filhos e outras memórias se perderam”, lamenta.
A desvalorização ainda emperra a ideia de vender a casa atingida pelo aguaceiro. Outros vizinhos já deixaram de vez a área de risco. “Praticamente todos saíram da rua e, quem puder, não volta. Só ficou quem não pôde comprar ou alugar outro imóvel”, relata Carla..

Cicatrizes climáticas
O casal de aposentados é uma fração dos que seguem sofrendo impactos das enchentes que cobriram o estado após os poderosos temporais do fim de abril ao início de maio de 2024. Em poucos dias, choveu o esperado para meses.
O saldo incluiu mais de 100 mil casas destruídas ou avariadas, 81 mil pessoas desabrigadas, mais de 180 mortas e quase 30 desaparecidas. No fechamento desta reportagem, um painel do governo gaúcho mostrava quase 400 ainda sem abrigo.
Famílias afetadas recebem pagamentos mensais e moradias temporárias. Casas definitivas para desalojados estão previstas para Porto Alegre, Canoas e Eldorado do Sul, três cidades das mais atingidas, disse por email a Secretaria da Reconstrução Gaúcha (SERG).
Na reparação de estruturas, 13 mil km de estradas, rodovias e pontes atingidos já estariam quase todos transitáveis. A distância é similar à do voo São Paulo – Dubai, nos Emirados Árabes. Diques ao longo de rios são elevados e reconstruídos.
O dinheiro empenhado em ações como tais vem do Fundo do Plano Rio Grande (Funrigs), criado com recursos que pagariam a dívida do Rio Grande do Sul com a União. No fechamento da reportagem, por volta de R$ 3 bilhões estavam na conta. Outros R$ 11 bilhões devem chegar em até 3 anos.
Mas, projetos e aplicação do dinheiro deveriam ser acelerados, pois muitas estruturas permanecem no chão e a população segue vulnerável a novos desastres. Bairros na capital gaúcha, como Sarandi, e sobretudo municípios na sua Região Metropolitana, acumulam escombros.
Além disso, a reconstrução poderia desde já reduzir as chances de novas tragédias investindo para conter a força das águas, recuperar bacias hidrográficas e em outros arranjos ecológicos e preventivos, avaliam as fontes ouvidas por ((o))eco.
“É lógico que virá outra enchente, a mudança climática está aí”, diz a professora Carla Martins. “Mas estamos vendo e sentindo pela mídia que não estão pensando e agindo desde já para enfrentar as próximas cheias”.
Isso pode arriscar ainda mais perdas econômicas e humanas frente à nova realidade do clima, lembra José Marengo, coordenador-geral do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).
“A Região Sul tem sido marcada por recorrentes episódios de extremos climáticos, que se alternam entre fortes estiagens e chuvas excessivas”, destaca o pesquisador, um dos mais citados na área de Ciências Ambientais.

Ações adiadas
Consultada pela reportagem, a Secretaria da Reconstrução Gaúcha (SERG) afirmou por email que obras e outras ações em curso e planejadas visam “tornar o RS uma referência em resiliência para o país”.
O órgão afirmou que um novo radar meteorológico “já está operando” e outros três estão em contratação, para cobrir todo o estado. O sistema alertará sobre eventos climáticos extremos. Mas, ainda mais pode ser necessário.
“Não adianta termos a melhor tecnologia de previsão se a população continuar a morrer, por exemplo por falta de protocolos para evacuação e outras medidas preventivas”, avalia José Marengo (Cemaden).
Além disso, a SERG não informou quando serão apresentados e executados projetos para reorganizar cidades, reestruturar a Defesa Civil, mapear rios e relevo gaúchos, para aumentar as defesas contra enchentes.
“Intervenções de maior porte, como os sistemas de proteção de cheias, por exemplo, demandarão mais tempo para serem realizadas, assim como um maior aporte de recursos públicos”, relatou.
O planejamento gaúcho inclui investir em “soluções baseadas na natureza”, mas a Secretaria da Reconstrução não detalhou se municípios já apresentaram projetos para receber esses recursos.
Tais soluções envolvem construir e manter reservatórios, áreas verdes e pisos permeáveis para infiltrar e frear a velocidade da água da chuva, recuperar a vegetação nas cidades e margens de rios.
Ainda frente à tragédia gaúcha, José Marengo (Cemaden) reforça ser preciso investir ainda mais em antecipação. “Prevenir, melhorar e monitorar condições ambientais é caro, mas reduz perdas pessoais e materiais”.
Ele avalia que caminhos mais seguros para o estado passam por não permitir ocupações humanas em áreas de risco, reduzir os impactos das águas e respeitar os avisos científicos.
“Se você faz pouco em previsão e gasta tudo em reconstrução, virá outro evento e se gastará muito mais. Se isso não for feito, vamos falar das mesmas situações no próximo extremo climático”, projeta..


Efeitos turbinados
Enquanto medidas preventivas ficam para depois, obras de engenharia e outras ações da administração e legislativos estadual e de municípios gaúchos podem ter reforçado os efeitos do aguaceiro.
A letargia em aplicar políticas públicas para reforçar a população contra a crise climática, desarticulação entre instâncias de governos e a falta de planejamento diante de enchentes anteriores fragilizaram o estado.
Enquanto isso, em áreas atingidas pelos alagamentos avançam atividades como a dragagem de rios e canais. Contudo, elas são criticadas porque não atacariam as reais causas do assoreamento.
“Cabeceiras de rios e bacias hidrográficas são desmatadas para cultivos como o da soja. Isso escoa água e sedimentos muito mais rápido e causa alagamentos que se concentram na Região Metropolitana”, descreve Paulo Brack, doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e professor-titular do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Além disso, contribuições de especialistas são desprezadas. Um caso é o do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Caí, cujas recomendações para amenizar a força das águas e proteger a população não foram incorporadas nos planos oficiais contra enchentes.
“Os Comitês têm atribuições legais quanto à gestão de água e de eventos extremos, mas até o momento não fomos contatados [pelo estado ou prefeitura] para qualquer reunião ou pedido de informações”, diz Rafael Altenhofen, presidente do Comitê e mestre em Biologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). .

Na prática, os prejuízos humanos e materiais crescem com as chuvas intensas e concentradas pela crise climática, mas também pela expansão desregrada das cidades, desmate e ocupação de beiras de rios, morros e banhados.
“Isso tudo aumenta a vulnerabilidade e a exposição das pessoas”, ressaltou José Marengo (Cemaden).
Ele também é parte de um Comitê Científico que proporá medidas para melhorar a proteção estadual contra efeitos climáticos, como a chuvarada de 2024. A primeira reunião do grupo aconteceu apenas no início de abril.
Enquanto isso, a exposição gaúcha a eventos extremos seria reforçada também por mudanças legais que reduziram a proteção da Mata Atlântica e do Pampa, os dois biomas no estado.
“Nas cidades e no campo não há recuperação da mata ciliar e nem fiscalização sobre danos ambientais”, acrescente Paulo Brack, também membro da ong Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá), dos conselhos estadual e municipal de Meio Ambiente e vereador suplente pelo PSOL de Porto Alegre.
Segundo ele, outra vítima são os banhados, que ajudam a conter cheias. Um deles, em área vizinha do Rio Gravataí, é aterrado para servir como um aterro sanitário.“Tudo é facilitado para destruir áreas com funções estratégicas. Isso só fragiliza a situação estadual”, denuncia o pesquisador.
Procuradas por ((o))eco, a Casa Civil da Presidência da República e a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS) não concederam entrevista até o fechamento da reportagem.