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Uma reflexão pessoal sobre a missão cristã em territórios indígenas

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Uma reflexão pessoal sobre a missão cristã em territórios indígenas

Quando eu era adolescente, no começo dos anos 2000, fazia parte de uma comunidade evangélica no bairro de Pirituba, na zona oeste de São Paulo. Naquela época, já era comum nas igrejas evangélicas o discurso da “missão” de evangelizar os povos que ainda não haviam conhecido o Deus cristão. Uma das vozes mais presentes nesse movimento é o da cantora Fernanda Brum, que à época lançava o álbum “Profetizando às Nações”, que dedicava arrecadações ao envio de missionários à Amazônia para traduzir a Bíblia às línguas indígenas.

Naquela época, esse discurso parecia natural para mim. Havia até mesmo músicas e encenações que glorificavam histórias de missionários que se entregavam como escravos para pregar o evangelho. Em cultos especiais de missões, escutávamos pastores afirmando que indígenas estavam queimando Bíblias – uma narrativa que justificava ainda mais urgência em “salvar” essas almas. Tudo isso parecia coerente para quem, como eu, acreditava estar cumprindo um papel de fé.

Duas décadas depois, visitei a Aldeia Yawanawá Nova Esperança, no Acre, como parte da preparação para uma expedição do projeto CreatorsAcademy. Lá ouvi o cacique Isku Kua relatar o que eles chamam de processo de retomada: o retorno às tradições após um período de intensa influência evangélica. Seu pai, Biraci Yawanawa, que havia deixado a aldeia quando a presença missionária se intensificou, decidiu retornar no começo dos anos 2000 e reverter os danos causados.

Segundo ele, os missionários proibiram o uso da língua indígena, deslegitimaram as medicinas tradicionais (como a ayahuasca), e condicionaram o acesso a alimentos e remédios à frequência nos cultos. As mulheres indígenas, muitas vezes casadas com missionários, eram agredidas ou silenciadas. Foi nesse contexto que todas as Bíblias da aldeia foram recolhidas e queimadas numa grande fogueira. O gesto, potente, não era contra a fé cristã em si, mas uma reação ao uso da fé como instrumento de dominação.

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Expedição visitou a Aldeia Yawanawá Nova Esperança, no Acre. Foto: Edgar Azevedo

Essa história se encontrou com aquela memória antiga – o tempo em que eu, ainda adolescente, levantava ofertas em minha igreja para justamente apoiar esse tipo de missão. A contradição entre a intenção e o impacto me atingiu em cheio.

Em 2019, vivi outra experiência marcante ao voluntariar numa comunidade já evangelizada na RDS do Rio Negro em Manaus. Ali, vi chegar um grande barco da Jocum (Jovens com Uma Missão), que promovia um culto obrigatório antes de distribuir cestas básicas – que vinham acompanhadas de Bíblias. Aquilo me incomodou profundamente. Jesus multiplicou o pão e o peixe antes de pregar. Ali, a comida vinha depois da conversão. Era impossível ignorar a chantagem simbólica por trás dessa prática.

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Kamila Camilo durante um culto evangélico na adolescência. Foto: Acervo Pessoal

Hoje, com o crescimento das redes sociais, vemos missionários exibindo com orgulho seus feitos nas aldeias. Muitos aprendem os idiomas nativos para traduzir a Bíblia, enquanto, aos poucos, as pinturas corporais desaparecem, os rituais tradicionais são substituídos por cultos e até mesmo o modo de vestir é importado. A dieta também muda – o excesso de açúcar nas cestas básicas, por exemplo, tem elevado os índices de diabetes em comunidades onde antes prevalecia uma alimentação tradicional.

Há dados que confirmam esse impacto. Segundo levantamento do ISA (Instituto Socioambiental), há registros de que mais de 13 dos 28 povos isolados da Amazônia já foram alvo de tentativas de evangelização, mesmo com a Constituição Federal de 1988 proibindo o contato com povos em isolamento voluntário. A organização Missão Evangélica aos Índios do Brasil (Meib), criada em 1967, continua ativa e agrega dezenas de frentes missionárias com foco exclusivo na conversão indígena.

O discurso de que “o Reino de Deus está acima de todos os reinos” ainda hoje é usado para justificar esse apagamento. Mas não é o Reino de Deus – é o reino de uma única leitura sobre a fé, a cristã. Uma leitura que não dialoga, apenas substitui. Que não soma, apenas apaga.

Hoje, olho para essas experiências com um outro senso de responsabilidade. A fé pode ser um lugar de cura, de comunidade, de força. Mas também pode ser usada como ferramenta de opressão, quando imposta sem escuta, sem respeito, sem reciprocidade. 

Essa não é uma realidade de agora, de 1500 para cá, dos jesuítas aos jovens evangélicos, uma inicial pregação, a tentativa de “salvar almas” esconde exploração e uma série de abusos. É urgente repensar o papel das missões religiosas em territórios indígenas. É urgente reconhecer que cultura não é algo a ser “consertado” ou evangelizado – mas respeitado, celebrado e protegido. 

Esse tema é abordado no filme Evangelho da Floresta: O Reencontro do Povo Puyanawa, um mergulho na história de resistência, reconexão e cura de um povo indígena que se reinventou após décadas de apagamento cultural. Através da história e liderança do Cacique Joel e de anciões do povo Puyanawa, o documentário mostra como sua jornada pessoal reflete a transição da comunidade Puyanawa: da influência evangélica imposta ao reencontro com as medicinas e saberes ancestrais.

Produzido pelo Instituto Oyá, em parceria com a Tear Filmes e o povo Puyanawa, Evangelho da Floresta propõe um novo olhar: de respeito, escuta e reconexão. E talvez a maior missão, hoje, seja essa: a de ouvir. E não a de converter.

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