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Dinastia Amazônia – Parte II

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Dinastia Amazônia – Parte II

REPORTAGEM

Dinastia Amazônia – Parte II

China se alastra por infraestrutura brasileira e impõe seu modelo de “civilização ecológica” de crescimento

Por André Borges

REPORTAGEM

Dinastia Amazônia – Parte II

China se alastra por infraestrutura brasileira e impõe seu modelo de “civilização ecológica” de crescimento

Por André Borges


Há exatamente dez anos, em junho de 2014, a companhia chinesa State Grid dava um passo inédito dentro da Amazônia. De mãos dadas com a Eletronorte, os chineses se metiam na floresta fechada, como nunca tinham feito, até então. Haviam vencido o leilão para construir o primeiro grande linhão da hidrelétrica de Belo Monte. A rede de 2,1 mil quilômetros de extensão sairia da barragem erguida nas águas do rio Xingu, em Altamira, no Pará, para rasgar a mata até chegar ao interior de Minas Gerais, na fronteira com São Paulo.

À parceria selada com um cheque de R$ 5,6 bilhões, chineses e brasileiros deram o nome de Belo Monte Transmissora de Energia, a BMTE. Não era exatamente a estreia dos asiáticos no setor elétrico brasileiro. Desde 2010, quando chegou ao Brasil, a State Grid já vinha se enfronhando nas concessões do setor elétrico. Mas nada se igualava àquele que seria o maior projeto nacional de transmissão, um projeto baseado em uma tecnologia ainda inédita no país, a chamada “ultra alta tensão”, e erguido sobre as copas da maior floresta tropical do planeta, com toda a complexidade socioambiental que o cenário carrega. Era preciso ter um parceiro nacional, alguém que já entendesse do traçado. Foi onde entrou a sociedade com a Eletronorte.

Um executivo brasileiro do alto escalão da concessionária BMTE e que atuou por anos na empresa, se lembra bem do período. E conta que não foi nada fácil para os chineses. Acostumados com uma gestão verticalizada, onde a ordem parte de cima para baixo e tudo é rapidamente executado, os funcionários da State Grid se perdiam no emaranhado de leis, regras e burocracias para tocar o projeto no Brasil.

“As dificuldades de transportar torres e erguer cabos de aço na floresta eram turbinadas pela complexidade do licenciamento, as condicionantes ambientais, os prazos rígidos e, principalmente, a dificuldade cultural, de língua”, diz esse executivo.

Um dia, a falta de entendimento descambou na sede da concessionária, um escritório instalado no Rio de Janeiro. Diretores chineses vociferavam entre si, trocavam acusações em Mandarim, até que partiram para os finalmentes e saíram no tapa. Funcionários tiveram que dar fim à confusão. “A briga acabou levando à queda daquela diretoria. Uma outra chefia, com mais experiência internacional, foi colocada no lugar, e a situação começou a melhorar”, diz o executivo.

No meio da mata, os chineses também travaram. Reconhecidos mundialmente pela habilidade em tocar rapidamente qualquer tipo de empreendimento, os asiáticos estancaram, em plena floresta, sem conseguir se entender com as equipes brasileiras e a pressão social que enfrentavam no caminho. A gigante chinesa Sepco, empreiteira que tinha a responsabilidade de construir um trecho de 780 km da malha, chegou a ser multada em R$ 8 milhões pela própria BMTE, inconformada com os atrasos. Por fim, a Sepco teve de fazer as malas e voltar para casa, para que empreiteiras nacionais mais tarimbadas em construções na Amazônia entrassem em campo.

“Só depois, a situação melhorou e conseguimos ganhar ritmo. No fim, entregamos toda linha funcionando em dezembro de 2017, dois meses antes do prazo oficial”, comenta o executivo. “Mais que um projeto, aquilo foi uma escola para os chineses, que aprenderam rápido.”

De fato. Um ano depois de vencerem o leilão em parceria com a Eletronorte, a State Grid decidiu agir sozinha, e num projeto ainda mais ambicioso. Enquanto construía sua primeira linha de Belo Monte com o parceiro brasileiro e encarava todo tipo de perrengue, a estatal chinesa vencia, sozinha, outro leilão, desta vez para construir o segundo bipolo da hidrelétrica, uma rede com 2.543 km de extensão, o mais extenso sistema de ultra alta tensão do mundo.

Se os chineses aprendiam com as dificuldades do primeiro projeto na Amazônia, evitavam os mesmos problemas com o segundo. Em agosto de 2019, dentro do prazo, a State Grid já havia cruzado, sozinha, 81 municípios de cinco Estados das regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste do país, com cabos de aço pendurados em 4.448 torres, respondendo por 70% do consumo de energia do Estado do Rio de Janeiro.

A saga amazônica dos chineses no setor elétrico ajuda a entender o movimento crescente e acelerado que fez da China a maior dona de projetos de transmissão e distribuição de energia do Brasil, processo que tem se expandido por todos os setores da infraestrutura nacional.

Na primeira parte da reportagem especial “Dinastia Amazônia”, ((o))eco mostrou como a demanda da China sobre o agronegócio brasileiro tem impactado na preservação da floresta, mas também pode moldar o futuro da produção, a partir da imposição de novas exigências ambientais. Nesta segunda parte da reportagem, ((o))eco mergulha nos investimentos que os chineses têm feito em solo brasileiro e quais as implicações desses negócios para a preservação e um futuro mais sustentável.

Se a China é, há 14 anos, o maior parceiro comercial do Brasil, com negócios puxados pelas commodities agrícolas e minerais, também passou a ser um dos mais ambiciosos investidores em empreendimentos locais, o que passa diretamente pela verticalização de seus principais mercados e interesses. O objetivo é, sempre, controlar a operação de ponta a ponta.

Os dados compilados pelo Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC) apontam que, entre 2007 e 2022, empresas chinesas investiram US$ 71,6 bilhões no Brasil, por meio de 235 projetos. O histórico também aponta uma profusão de novos empreendimentos na última década.

Se em 2013 foram anunciadas 13 grandes operações chinesas no mercado nacional, em 2022 esse número mais que triplicou, chegando a 40 novos anúncios. Desses 40 projetos, conforme levantamento do Conselho, 32 efetivamente saíram do papel.

O perfil das iniciativas também sinaliza que o interesse tem sido marcado por novas operações. De 2007 a 2022, os projetos iniciados do zero, os chamados “greenfield”, responderam por 49% dos negócios chineses anunciados para o Brasil, enquanto a outra parte esteve atrelada a fusões e aquisições. Em 2022, oito de um total de 22 empresas chinesas que investiram ou anunciaram aportes no Brasil eram estreantes, sem atividades produtivas no país.

Gigante elétrico

O setor de eletricidade, puxado por companhias como a State Grid e a China Three Gorges (CTG), liderou os negócios nos últimos anos. Em 2022, respondeu sozinho por 50% dos empreendimentos chineses no Brasil, seguido pelas áreas de Tecnologia da Informação (25%), fabricação de veículos automotores (6%), obras de infraestrutura (6%), agricultura e serviços relacionados (6%), fabricação de têxteis (3%) e fabricação de materiais para uso médico e odontológico (3%).

A entrada dos chineses em território brasileiro, porém, tende a não seguir o mesmo tipo de desenvolvimento a qualquer custo, como se viu no país asiático nos idos dos anos 1970 a 2000. Hoje, a China é o país que mais emite CO2 no mundo, com 28% do total de emissões globais.

“A China é o maior poluidor do mundo, reconhece isso. O governo chinês tem essa consciência, fez muitos projetos naquele momento de crescimento de dois dígitos, e foram projetos irresponsáveis, do ponto de vista ambiental”, diz Tulio Cariello, diretor de conteúdo e pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC). “Hoje, no geral, existe uma preocupação muito grande em relação ao assunto. Isso é algo que nunca foi agenda prioritária para a China até o início dos anos de 2000, mas que, de uns dez anos para cá, tornou-se uma bandeira, um alicerce da política doméstica e externa chinesa.”

Cariello faz referência àquilo que o governo de Xi Jinping batizou de “civilização ecológica”. O termo, que apareceu em discussões e documentos do governo chinês em meados de 2007, está hoje no centro da estratégia de desenvolvimento da China. O propósito, segundo o Ministério de Ecologia e Meio Ambiente da China, é compartilhar com outros países “o conceito e a prática da civilização ecológica”, orientado a um desenvolvimento mais verde, baseado em infraestrutura e tecnologias que busquem a preservação ambiental.

Hoje, a meta da China é ser neutra em carbono até 2060. Haveria um pico de emissão até 2030, para começar a reverter esse quadro. Já se fala, porém, que é possível antecipar esse pico e tentar puxar o resultado em alguns anos.

“É verdade que o chinês adora um rótulo, como fizeram com a tal ‘nova rota da seda’, que já estava acontecendo há pelo menos uma década, nas relações comerciais. Mas é fato que a questão ambiental está hoje dentro do plano estratégico do governo. A civilização ecológica não é, definitivamente, um simples slogan. Eles estão realmente colocando a mão na massa”, diz Tulio Cariello.

Não por acaso, o país já lidera a produção de tecnologias voltadas a menos emissões. Hoje, a China é o maior produtor de painéis fotovoltaicos, da indústria eólica e de carros elétricos. “É uma agenda muito forte e que está se refletindo no investimento chinês no exterior, neste processo de transição energética.”

A China criou uma estação de produção de energia solar com formato de Panda gigante. Foto: CMNE/Divulgação.

O professor Fabiano Escher, autor do livro “Agricultura, alimentação e desenvolvimento rural na China e no Brasil: uma análise institucional comparativa”, publicado em 2020, avalia que a nova fase da social e econômica da China impõe um novo tipo de relação com os demais países.

“A China passou por uma civilização agrária, depois industrial, e agora entra numa civilização ecológica. O país se posiciona de uma forma em que estaria não apenas compreendendo, mas liderando esse processo. É uma narrativa de alto nível de política pública. A tese é a de que a construção da civilização ecológica, e não da industrialização em si, seja o mote deste novo estado”, diz Escher.

Os reflexos mais recentes e práticos sobre essa mudança de postura e de relações com o Brasil ficaram mais evidentes na última agenda da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), que acaba de completar 20 anos. 

Em 2023, a Cosban ganhou, pela primeira vez, uma Subcomissão de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas. O anúncio foi feito após a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China, em abril do ano passado.

Neste ano, em que o estabelecimento de relações diplomáticas entre o Brasil e a China chega a 50 anos, há sinais de que a questão ambiental deixou de ser mero protocolo político.

O vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic), Geraldo Alckmin, que teve encontro com o presidente da China, Xi Jinping, durante a missão oficial, declarou que os chineses anunciaram R$ 24,6 bilhões em concessões de crédito para o Brasil.

Os recursos serão destinados a obras de infraestrutura, incluindo projetos para a reconstrução do Rio Grande do Sul, destroçado pelas enchentes de maio. Um dos acordos assinados entre o Ministério da Fazenda e o Banco Asiático de Investimentos e Infraestrutura (AIIB) prevê até R$ 5 bilhões para apoio emergencial ao estado gaúcho. Foi formalizado, ainda, o financiamento de R$ 5,7 bilhões do New Development Bank (NDB), o banco do Brics, para o Rio Grande do Sul. O acordo foi assinado pelo vice-presidente e pela presidenta do NDB, Dilma Rousseff.

A cúpula brasileira também saiu de Beijing com o compromisso de que mais de R$ 4 bilhões em crédito serão concedidos pelo Banco de Desenvolvimento da China (CDB) ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), voltados a projetos relacionados à mudança do clima e à economia verde.

Alinhados com os chineses, os brasileiros também trataram de rebatizar o BNDES. Ao apresentar o “Seminário Econômico Brasil-China”, em Beijing, o diretor de Planejamento e Relações Institucionais do banco, Nelson Barbosa, disse que o BNDES, que começou na década de 1950, como uma instituição industrial, evoluiu para um banco de infraestrutura, se transformou em um banco de comércio exterior para empresas, é, agora, passou a ser “o Banco da transição ecológica”.

À ((o))eco, Barbosa disse que ainda há outros R$ 5 bilhões em negociação com os bancos chineses e que esses recursos estão, de fato, carimbados com uma série de compromissos e protocolos de preservação ambiental.

“Todos os empréstimos são acompanhados de condicionantes que contribuem para uma transição energética justa. Há projetos em que estamos usando, por exemplo, os dados do MapBiomas para qualificar o tomador do crédito”, afirmou Barbosa.

A entrada de dinheiro chinês em infraestrutura verde do Brasil, segundo o diretor do BNDES, não só é bem-vinda, como é necessária. O BNDES tem ativos que totalizam 7% do PIB da economia brasileira e financia, diretamente, 5% de todo o investimento feito no Brasil.

Nelson Barbosa afirma, porém, que há necessidade de se ampliar as linhas de crédito. A Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústria de Base (ABDIB) estima que o recurso para infraestrutura nacional deveria chegar a 4,31% do PIB, ou quase R$ 470 bilhões, mas a média de investimento foi de apenas 1,96%, ou R$ 213 bilhões, em 2023.

“Precisamos complementar esses recursos com fonte internacional além do Tesouro Nacional. Não pegamos empréstimo lá fora pela alegria de pegar. É necessário. Então, se esses recursos entram no país, e orientados por uma política socioambiental, é ainda mais interessante”, disse. “O Fundo Clima, por exemplo, que foi retomado no ano passado, recebeu R$ 10,4 bilhões do Tesouro, mas só as consultas que recebemos até agora já chegam a R$ 32 bilhões.”

A comitiva brasileira voltou da China com oito instrumentos intergovernamentais anunciados, além de uma série de acordos assinados entre representantes do setor privado. Para João Cumarú, mestre em Política e Diplomacia Chinesa na Sirpa, da Fudan University, na China, as sinalizações dos acordos são positivas quanto aos compromissos ambientais.

“Temos elementos que apontam para um novo momento, de fato. Para além da pauta do comércio, vemos ainda uma discussão sobre o avanço de algumas estruturas produtivas de maior complexidade tecnológica, com troca de conhecimento entre os países”, afirma o especialista.

O Ministro Geraldo Alckmin em audiência com o Presidente da República Popular da China, Xi Jinping. Foto: Divulgação / Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços

Pesquisador do instituto Plataforma Cipó e estudioso das relações com a China desde 2012, Cumarú também pontua uma mudança de diálogo sobre as prioridades industriais. “A relação sustentável está nos documentos, nos protocolos, ainda não estão traduzidas em muitos projetos concretos. Um encontro como o da Cosban tem essa intenção de criar um ambiente político para que isso aconteça, na prática.”

Em novembro deste ano, está marcada a visita de Xi Jinping ao Brasil, no âmbito da Cúpula do G20, que acontecerá no Rio de Janeiro. Paralelamente, porém, há previsão de outra visita de Estado ser feita pelo presidente chinês, conforme informou o chanceler Mauro Vieira.

“Essa questão de risco climático pesa muito para China, principalmente sobre como esse tema pode mexer com sua economia no futuro próximo. A sustentabilidade não é uma questão de marketing. Para o chinês, é saber o que será dos negócios daqui a 30 anos”, avalia Leonardo Gava, gerente-sênior de transição agrícola da Climate Bonds Initiative, entidade do Reino Unido, sem fins lucrativos, especializada em certificar títulos sustentáveis.

Para a deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR), que esteve em abril na China, participando de encontro entre a delegação do PT e o Partido Comunista da China (PCCh), a postura da China, historicamente, parte de uma orientação vertical do governo, que orienta todas as práticas no país.

“Sabemos que a China está fazendo um reposicionamento nesta questão ambiental. Como passaram a ter uma importância muito grande no jogo internacional, os chineses colocaram a pauta ambiental como tema central, não só para fora do país, mas para dentro de suas cidades”, disse Gleisi à ((o))eco. “Tudo aquilo que o povo chinês organiza e decide, como já sabemos, é algo que ele vai realizar. Então, eu acredito que esse crescente rigor da China com a questão ambiental tende a ser muito positivo para o Brasil.”

Na 15ª Conferência de Biodiversidade da ONU (COP15), realizada em 2022, sob o comando do Ministério de Ecologia e Meio Ambiente da China, Xi Jinping aproveitou para hastear a bandeira da “Civilização Ecológica: construindo um futuro compartilhado para toda a vida na Terra”. Foi mais um passo concreto dentro de um planejamento costurado pelo partido comunista.

O “futuro compartilhado” continua a expandir suas operações no Brasil. Como fez dez anos atrás, a estatal State Grid segue em sua trilha de expansão de negócios do setor elétrico nacional. Em dezembro do ano passado, mais uma vez, os chineses foram os grandes vencedores do maior leilão de transmissão já realizado no Brasil.

Sozinha, arrematou 1.468 quilômetros de linhas de transmissão entre Maranhão, Tocantins e Goiás, com prazo 72 meses para entregar a obra, o mais longo já concedido, devido à complexidade do empreendimento. Os investimentos são estimados em R$ 18 bilhões.

“Os chineses têm um modelo de planejamento e de desenvolvimento do país, sabem onde querem chegar, tem caminhos e metas para isso, com planos quinquenais. Eles tinham a meta de industrializar e fizeram. Tinham a meta de acabar com a pobreza e fizeram. Queriam urbanizar a China e fizeram”, comenta Gleisi Hoffmann. “Agora, estão com a meta da tecnologia e da transição energética para uma nação ecológica. Não há dúvidas de que vão fazer e ocuparão um espaço ainda mais relevante no mundo. Se estivermos bem-posicionados, temos uma oportunidade enorme de seguir juntos”.