Home Meio-Ambiente Entre buracos e tremores de terra, povoados enfrentam o avanço da mineração na Bahia

Entre buracos e tremores de terra, povoados enfrentam o avanço da mineração na Bahia

0
Entre buracos e tremores de terra, povoados enfrentam o avanço da mineração na Bahia

A Bahia é um dos estados brasileiros com maior quantidade e variedade de comunidades tradicionais e indígenas, incluindo uma vultosa população quilombola. Não raro, essas pessoas são alvo de conflitos ligados à disputa por terras, reconhecimento de direitos e recursos naturais. 

Um desses palcos é o centro-norte baiano, onde esses povos tentam fazer frente ao avanço descontrolado da mineração. Entre os principais problemas estão o assoreamento e poluição de rios, a seca de nascentes, o desmate e ameaças de expulsão de seus territórios.

A extração inclui pedras ornamentais, calcário, ouro, ferro, quartzito e cobre – ambos com alta demanda para a transição energética – e tem deixado marcas visíveis na paisagem, como crateras espalhadas ao norte da Serra do Espinhaço, a maior cordilheira do Brasil. 

Municípios como Andorinha, Campo Formoso, Curaçá, Juazeiro, Uauá, Jacobina e Senhor do Bonfim estão entre os mais afetados, segundo o movimento de voluntários Salve as Serras (SAS).

“Aqui tá virando uma buraqueira em todo o lugar”, resume uma fonte ligada a uma prefeitura regional que pediu para não ser identificada, para não se tornar alvo de retaliações. 

Pilotada por empresas brasileiras e internacionais, a exploração põe em xeque o futuro de comunidades quilombolas, indígenas e rurais, como as de fundo e fecho de pasto – quase exclusivas do estado –, que criam animais, plantam alimentos e ervas medicinais em territórios coletivos.

Conforme Antônio Célio de Castro, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a região é palco da invasão de territórios e da intimidação de pessoas que, muitas vezes, desconhecem seus direitos e os impactos gerais da mineração. 

Segundo ele, explosões e escavações estressam e tiram o sono de moradores, matam nascentes e poluem águas – usadas pelo agro e pequenos produtores –, provocam doenças respiratórias e forçam pessoas a deixar o campo rumo às cidades. “Daqui a pouco, não teremos mais gente nas comunidades”, desabafa.

A mineração foi liberada inclusive perto de um rio e de uma cachoeira usados por residentes e turistas próximos ao povoado dos Betes. Lá – diz o Salve as Serras – é produzido o alfenim, um doce baseado em açúcar de cana e água, moldado em formas de animais, flores e pessoas.

Conforme uma liderança comunitária que não será nomeada, para sua segurança, a degradação de nascentes e rios pode tirar água de muitos municípios. Segundo a fonte, a degradação socioambiental se agrava, mas as autoridades públicas não agem. 

“Tá tudo esbagaçado e destruído pelas mineradoras. Todo mundo faz corpo mole onde tem dinheiro”, diz.

O cenário é reforçado pelo vereador José Rodrigues dos Santos Neto (PC do B), o mais votado nas últimas eleições em Antônio Gonçalves. Ele alerta que a mineração desregrada prejudica nascentes que mantêm o Rio Itapicuru, que cruza 51 cidades até desaguar no mar. “Os danos serão estaduais”, alerta.

Produção do alfenim na comunidade dos Betes, entre as baianas Jaguarari e Senhor do Bonfim. Foto: Movimento Salve as Serras / Divulgação

Negativa atropelada

Um dos maiores polos da mineração no centro-norte baiano é Jaguarari. Grande parte dos moradores depende da atividade, o que abafa reclamações e denúncias sobre danos socioambientais. Só uma empresa no município tem 3,2 mil colaboradores, de diretos a terceirizados.

“Prefeitura e vereadores só favorecem as mineradoras”, afirma a fonte regional que pediu anonimato. “Comunidades tradicionais não são consultadas para os empreendimentos e nem têm ações de proteção. É assustador”, reclama.

Ameaças como essas seriam ligadas à precariedade dos licenciamentos. Atento ao problema, o Ministério Público Estadual (MP/BA) acompanha o cumprimento de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para regularizar esses procedimentos em Jaguarari. 

Contudo, em junho o MP/BA identificou “indícios de descumprimentos do acordo por parte do município” e fixou prazo – até 11 de julho deste ano – para ajustes no licenciamento municipal, incluindo a estruturação do órgão ambiental e uma “atuação efetiva do Conselho Municipal de Meio Ambiente”.

As medidas resultam de uma ação civil, já concluída, na qual o Ministério Público acusou a Mineração Jaguarari e a prefeitura de violar a lei em autorizações para mineração sem licenciamento adequado e plano de recuperação ambiental.

A companhia afirmou desconhecer licenças com desvios legais, que todos os documentos, projetos, planos e taxas foram apresentados e pagos ao órgão ambiental, e ainda que áreas degradadas serão recuperadas após o fim da extração, “conforme critérios e responsabilidades solicitadas”.

A empresa diz atender medidas de controle ambiental e sustentabilidade e salienta que sua atividade é “extremamente regulada, fiscalizada, e no caso da mineração de rocha natural, ela pode compreender tanto baixo quanto médio impacto, não podendo ser comparada com outras espécies de mineração de maior porte”. 

A Prefeitura de Jaguarari não atendeu aos nossos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem. O canal segue aberto.

Contudo, no período de vigor do TAC com o Ministério Público, entidades civis e ativistas identificaram ao menos uma licença para mineração de quartzito emitida – para outra empresa – mesmo após uma negativa do Conselho Municipal de Meio Ambiente.

Episódios como esses fizeram o vereador José Rodrigues dos Santos Neto (PC do B) avaliar que há um alinhamento entre mineradoras, interessadas em explorar o máximo de recursos, e prefeituras, dispostas a engrossar a arrecadação de impostos e os financiamentos de campanhas.

“Temos um cenário regional de muita falta de fiscalização, de licenciamento da mineração pelos mesmos órgãos públicos que fazem vista grossa aos prejuízos que ela causa à população e ao meio ambiente. A atividade poderia ser mais controlada”, ressalta.

Outro caso averiguado é a extração ilegal de quartzo verde para a China. O crime era cometido por locais e estrangeiros, numa fazenda no mesmo município. “As investigações continuam visando identificar os principais receptadores e eventuais financiadores da atividade ilícita”, afirma a Polícia Federal na Bahia.

“Ouro por vezes encontrado junto com quartzito é separado com mercúrio, aumentando as chances de contaminação de ambientes e de rios”, alerta o vereador Santos Neto. A substância causa uma série de doenças, inclusive neurológicas.

A Bahia é um dos líderes nacionais na produção de minérios, junto com estados como Minas Gerais e Pará. De acordo com a Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM), ao menos 240 municípios já foram alvo de projetos minerários – ou 58% dos 417 municípios no estado.

Em 2023, a produção mineral baiana comercializada faturou R$ 9,74 bilhões. Além do consumo interno, as exportações desses produtos alcançam países como Estados Unidos, China, Canadá, Itália, Coréia do Sul, Finlândia, Suíça e Emirados Árabes, apontam dados do governo estadual. 

Diante dos altos lucros da mineração, o vereador Santos Neto, do município de Antônio Gonçalves, afirma que as cidades e suas gentes recebem poucos retornos. “Não têm uma estrada que preste”, diz. “Quando o ciclo econômico dos minérios acabar, ficará só o estrago”. 

Cenários da mineração em municípios do centro-norte baiano. Fotos: Thomas Bauer / CPT/H3000

Maior abalo 

Décadas de profundas e longas escavações – algumas galerias se espalham por quase 150 km – podem estar sacudindo a terra na Caatinga baiana. Em meados do ano passado, um tremor de 3,6 na escala Richter abalou um distrito de Jaguarari, junto a uma extração de cobre. O evento foi o maior já registrado no estado.

O episódio e a disparada da atividade sísmica – os tremores são quase diários nos últimos anos, diz o movimento Salve as Serras – fez a Sociedade Brasileira de Geologia e as universidades Federal da Bahia e estadual de Feira de Santana defenderem a paralisação das atividades em áreas mais sensíveis.

“As escavações (…) podem fragilizar ainda mais o terreno e a ocorrência de sismos é comum, potencializando ainda mais a ocorrência desses acidentes”, destaca uma nota técnica das entidades.

Isso compõe um cenário de ameaças crescentes a trabalhadores e moradores numa região com solos naturalmente frágeis. Além disso, Jaguarari tem a maior barragem de rejeitos secos de mineração da América Latina.

Belezas regionais como a Serra do Piancó, em Jacobina (BA), fazem parte da grande Serra do Espinhaço. Foto: Relatório Técnico para criação da Apa das Nascentes das Serras De Jaguarari / Movimento Salve as Serras / Univasf / UNEB / Sema/Jaguarari

Proteção emperrada

A mineração desregrada avança mesmo que grande parte do centro-norte da Bahia tenha alta prioridade para conservar a biodiversidade, como mapeou o governo federal, e esteja dentro da Reserva da Biosfera da Caatinga, reconhecida pelas Nações Unidas em 2001.

Tentando mudar esse cenário e aquecer economias alternativas à predominância das atividades agropecuária e mineral, entidades civis, comunidades tradicionais e moradores tentam implantar uma trilha para ecoturismo, através de 5 municípios regionais. 

A rota para caminhadas e pedaladas, todavia, enfrenta resistências de fazendeiros e de empresas da mineração e da geração de energia eólica. 

Rio poluído por resíduos da mineração no centro-norte da Bahia. Vídeo: Movimento Salve as Serras / Divulgação 

Barreiras similares foram erguidas contra o desenho de uma Área de Proteção Ambiental (APA), a menos restritiva a atividades humanas dentre os tipos de unidades de conservação. Ela seria a primeira reserva ecológica de Jaguarari, com 6,7 mil hectares.

Além de organizar usos humanos, ela abrigaria dezenas nascentes – que mantêm os rios regionais –, cenários naturais, espécies animais e de plantas. Sem isso, populações rurais e tradicionais e a biodiversidade da Caatinga serão ainda mais prejudicadas. 

A área de proteção ambiental também poderia frear o desmate naquele epicentro nordestino da mineração. Conforme o MapBiomas, a cobertura de vegetação natural de Jaguarari cai mais fortemente desde 2015, dando lugar sobretudo às pastagens para gado.

“Preservar as nascentes e o território das comunidades é preservar a vida do povo”, resume Antônio Célio de Castro, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “A unidade de conservação protegeria a mata e as águas, mas isso não respeitam”.

Confira aqui alguns documentos avaliados para esta reportagem.