
BOA VISTA, Roraima – Após cruzar a fronteira de Lethem, na Guiana, um outdoor chama a atenção. A peça informa que o tráfico humano é um crime que deve ser denunciado. O alerta chocante quebra a sensação de tranquilidade das ruas repletas de lojas de produtos importados da China, muito procurados por comerciantes de Boa Vista. A fronteira, localizada em Bonfim, está a apenas 132 quilômetros da capital de Roraima. Separadas pelo Rio Tacutu, as cidades são facilmente acessíveis pela BR-401.
Cruzei a fronteira sem passar por qualquer processo de fiscalização, apesar da presença de um posto da Polícia Federal na divisa. Ao longo de sete dias em Roraima, três fontes relataram que veículos de Boa Vista transportam por esta mesma fronteira, sem obstáculos, garotas aliciadas para exploração sexual em Lethem, onde existem bares que facilitam os encontros com garimpeiros da Guiana.
No país vizinho, a prostituição é proibida e os garimpos são fiscalizados. Porém, fontes que pediram anonimato por razões de segurança disseram à Mongabay que a exploração sexual de jovens brasileiras e imigrantes, sobretudo venezuelanas, ocorre rotineiramente.
Em geral, segundo as fontes, bares e outros ambientes frequentados por jovens em Boa Vista são alvos de aliciadoras a serviço de redes de crime organizado que têm investido fortemente em atividades de garimpo na Amazônia. Ao abordarem as vítimas com convites de viagens a trabalho e alta remuneração, elas usam roupas, joias e perfumes caros para atrair jovens pobres. O assédio também já foi observado nas imediações de escolas, comunidades vulneráveis, periferias urbanas e rurais e aldeias indígenas. Municípios como Uiramutã e Bonfim são destinos habituais de aliciadoras, segundo as fontes.
Muitos jovens demoram a entender que foram vítimas do crime de tráfico de pessoas e, mesmo quando entendem, evitam registrar ocorrência com medo da violência das organizações criminosas que operam os garimpos, o que colabora com a falta de registros dos casos. O que explica o outdoor na entrada de Lethem.
Além da posição fronteiriça estratégica para garimpeiros, a região virou alvo de aliciadores devido à pobreza. Uiramutã, um município de 13,7 mil habitantes localizado a aproximadamente 300 quilômetros de Boa Vista, teve o mais baixo Índice de Progresso Social (IPS) em 2024, dentre os municípios do Brasil. Roraima tem quatro cidades na lista de 20 piores pontuações de IPS no Brasil, todas localizadas na Amazônia – Bonfim está em décimo lugar.

Em nota técnica, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) alertou, em 2024, para a existência de mais de 80 mil pontos de garimpo abertos na Amazônia brasileira. Impulsionadoras do desmatamento na região, essas áreas somavam 241 mil hectares, o dobro da extensão territorial da cidade de Belém, capital do Pará.
Um grupo de pesquisadores sobre estudos de fronteiras da Universidade Federal de Roraima identificou que 309 pessoas foram vítimas de tráfico humano no estado entre os primeiros semestres de 2022 e 2024 – 73% são imigrantes e as demais, brasileiras. Mulheres exploradas sexualmente em garimpos formam a maioria dos casos, embora população LGBTQIA+ e famílias com crianças, recrutadas para trabalho em condições análogas à escravidão, também tenham sido envolvidas.
Coordenada pela professora Márcia Oliveira, a pesquisa envolve a fronteira com a Venezuela, no município de Pacaraima, onde famílias buscam escapar da crise econômica e política que tem afetado o país, tentando legalizar documentos para entrada no Brasil. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), 60 mil venezuelanos entraram no Brasil nessas condições entre janeiro e agosto de 2024 e mais de 500 mil desde 2015.
“O garimpo vai devastando a natureza da mesma forma que destrói valores humanos”, Oliveira disse à Mongabay em entrevista na sua sala na UFRR, onde lidera um grupo de pesquisa que tem aprofundado questões sobre violência contra mulheres em garimpos.
Um complicador para a pesquisa é a subnotificação de casos. Pelas análises de relatos, os pesquisadores observam que a maioria das vítimas não consegue se reconhecer como traficada. Algumas pessoas se dão conta quando tomam conhecimento sobre a atuação dos grupos por trás desse crime.
A maioria das jovens aliciadas se percebe enganada somente ao chegar no destino, segundo os pesquisadores. Lá elas têm seus documentos e telefones celulares apreendidos, são impedidas de falar com familiares, podem passar a circular em meios de transporte ilegais e, sempre que necessário, trafegam por rotas clandestinas, as trochas – uma forma dos aliciadores escaparem de fiscalizações, além de deixar as vítimas desorientadas.

As famílias também têm dificuldade de reconhecer o crime de tráfico humano. Pesquisadores identificaram essa situação ao telefonar para familiares que anunciavam o desaparecimento de filhas em cartazes colados em muros e postes de Boa Vista. Muitas vezes, as famílias respondiam que as garotas já haviam sido encontradas e estavam trabalhando como cozinheiras em um garimpo — ignorando possíveis abusos.
Os pesquisadores sabem que as informações passadas resumidamente pelas jovens para os familiares, nos raros contatos autorizados pelos criminosos, representa um tipo de código usado para despistá-los sobre a real situação, já que, historicamente em Roraima, atuar como cozinheira de garimpo representa um certo status.
Em alguns casos, as jovens aliciadas contribuem financeiramente com a família. Em outros, vítimas desaparecem ou são encontradas mortas, e os familiares preferem não se envolver em investigações, temendo mais violência. Algumas vítimas até conseguiram voltar dessas experiências depois de serem substituídas, mas, para continuarem vivas e superarem os traumas, saíram do estado ou do país com apoio de organizações de ajuda humanitária.
Telefone mudo
Nas paredes das salas ocupadas por Maria do Socorro dos Santos, diretora do Programa de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa de Roraima, e sua equipe, cartazes do Projeto Prevenção sem Fronteiras alertam para os riscos envolvendo o tráfico humano. Uma das peças pedagógicas anuncia um telefone para denúncias. O projeto foi criado em março de 2024, mas nunca foi acionado por denunciantes desde então. Santos reconhece que as vítimas têm medo de denunciar, o que favorece a impunidade.
Confiante de que “educar é prevenir”, ela tem atuado com uma rede de instituições parceiras em ações pedagógicas dirigidas a estudantes, professores e outros profissionais de escolas de Roraima. Em todos os 46 estabelecimentos já visitados para a realização de palestras e apresentação de vídeos e documentários sobre o tema, Santos recebeu relatos de algum tipo de experiência envolvendo abuso, exploração sexual ou tráfico humano por jovens que passaram a compreender melhor como agem as redes criminosas. Para ela, no estado “faltam políticas públicas efetivas de enfrentamento”.
Especialista em Violência Sexual pela Universidade de São Paulo (USP), com mais de 30 anos de experiência em ações de pesquisa, campanhas educativas e acolhimento de mulheres e jovens em situação de violência, ela foi convidada em 2015 a coordenar as ações contra o tráfico humano na Assembleia de Roraima. Naquela época, já estava aposentada, mas aceitou o desafio por considerar que ainda faltavam soluções para o combate desse crime.
“Aliciadores percebem na condição de vulnerabilidade das pessoas a oportunidade para fazer valer o seu poder de convencimento por intermédio de uma rede muito bem organizada”, a especialista disse à Mongabay. Na década passada, Santos atuou em pesquisas sobre redes criminosas em Roraima e países fronteiriços e buscava indícios de rotas de exploração sexual, trabalho considerado um grande aprendizado sobre o tema. Como parte das conclusões, Santos observou a falta de reconhecimento do problema pelas vítimas.

Essa situação de Roraima tem chamado a atenção da Comissão Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CEETH-CNBB), segundo relata a secretária executiva, Alessandra Miranda. Partes dos esforços dessa articulação envolvem ações de sensibilização, mobilização de organizações governamentais e não governamentais, além de buscar fortalecer iniciativas da gestão pública para fazer frente a esse crime, sobretudo em cenários de degradação ambiental. O tema foi assunto central de publicação da Organização Internacional para as Migrações (OIM).
Ela e outros integrantes da comissão participaram de uma comitiva que visitou Boa Vista e municípios de fronteira com a Venezuela e a Guiana, em meados de 2024, para entender a realidade por meio de diálogos com atores locais. “Fiquei impressionada com a dissonância do governo do estado com a questão do tráfico humano”, disse. “É claro que se trata de um território que tem graves violações de direitos humanos”.
Dentre outras impressões, ela avalia que, enquanto falta a implementação de políticas públicas estaduais em alinhamento ao IV Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, de 2024, o narcogarimpo tem fortalecido e sustentado financeiramente essa prática.
A reportagem buscou informações sobre investigações e operações envolvendo o tráfico humano pela Polícia Federal em Roraima e áreas de fronteiras. Mas não houve retorno às inúmeras tentativas de contato.
Desmatamento, contaminação e violência
Garimpeiros, além de abusarem de pessoas traficadas, provocam destruição ambiental e perturbam comunidades locais. “Rios e outras fontes de água são contaminados [principalmente pelo mercúrio usado na mineração ilegal de ouro], problema que vira uma bola de neve já que impede o acesso das comunidades à pesca e a água fica imprópria para o consumo humano”, disse à Mongabay o engenheiro ambiental Luís Augusto Oliveira, pesquisador do Imazon e integrante da equipe Amazônia do Projeto MapBiomas.
Além disso, o desmatamento leva à perda de matas ciliares que protegem as margens dos rios de problemas como a entrada de poluentes e a erosão. “O dano ambiental é o que fica nas regiões afetadas pelo garimpo. A geração de riquezas não”.

Roraima ainda figura entre os estados da Amazônia com maior percentual de vegetação nativa, mas a redução (de 98% para 93% em 39 anos) preocupa pesquisadores e ambientalistas. As perdas para a mineração foram expressivas em quase quatro décadas: ela ocupava 83 hectares em 1985 e aumentou 40 vezes (3.325 hectares) até 2023.
Em Boa Vista, a atividade encontra um terreno fértil em um estado que tem tradição garimpeira — não por acaso, a capital de Roraima tem um monumento ao garimpeiro em uma praça onde estão as sedes de instituições como o Governo do Estado e a Assembleia Legislativa.
Referência em pesquisas sobre o histórico da exploração mineral em Roraima, com publicações como o livro Garimpagem e Mineração no Norte do Brasil, a professora da UFRR, Francilene dos Santos Rodrigues, vê o crime organizado como o grande motor da nova onda do garimpo na Amazônia. Segundo Rodrigues, é um mecanismo semelhante ao ocorrido na Colômbia, onde mineradores pagavam às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) para protegê-los.
Pesquisador da Universidade Federal de Roraima e na área de violência, o sociólogo Rodrigo Chagas acredita que o acordo de paz entre o governo colombiano as Farc, em 2016, impulsionou o garimpo para outras regiões amazônicas. Outro empurrão foi a crise política, econômica e social da Venezuela, diz o pesquisador, além do cenário interno: o ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) era abertamente a favor da mineração em terras indígenas.

Chagas destaca que a rota do ouro percorre o norte da Amazônia, passando pelas fronteiras de Brasil, Venezuela, Guianas e Suriname. “O mercado de sexo acompanha essa rota”, disse à Mongabay.
Uma questão que preocupa pesquisadores do seu grupo é o nível de violência de facções do narcotráfico associadas ao garimpo. Um caso emblemático envolveu o assassinato de um garimpeiro diante dos colegas, segundo Chagas, somente pelo seu interesse em casar com uma das jovens explorada sexualmente. Chagas entendeu o episódio como “um ponto de ruptura”, além de “um recado sobre mudanças nas regras do jogo” que tem gerado mais medo e tensão.
Além disso, o aumento do preço do ouro, que bateu recordes históricos, deu o empurrão final ao garimpo “Esse é um risco que passou a valer a pena”, afirmou a professora Francilene Rodrigues à Mongabay.
Cozinheiras com status
A violência contra mulheres tornou-se cada vez mais comum em Roraima a partir de 2017, após a invasão da Terra Indígena Yanomami, a mais extensa do Brasil, equivalente ao território de Portugal. O território sofreu com a expansão da mineração e foi invadido por cerca de 20 mil garimpeiros entre 1985 e 2022, quando, segundo o Ipam, a área de garimpo foi ampliada em mais de 20 mil vezes.
Segundo a Hutukara Associação Yanomami, que atua em defesa da etnia, muitas garotas foram levadas para exploração sexual, e, em áreas remotas, jovens foram recrutados para trabalho nas frentes de garimpo — ilegal em terras indígenas em qualquer circunstância, de acordo com a Constituição.
Após a grave crise ambiental e humanitária, o novo governo federal, empossado em janeiro de 2023, passou a combater a invasão em mais de 3 mil operações. A ofensiva tem provocado a migração dos invasores para outras áreas do estado e países vizinhos como a Guiana e a Guiana Francesa, onde a Polícia Federal identificou casos de exploração de trabalhadores brasileiros por facção criminosa.

“Dentro dessa sociedade em que a gente vive em Roraima e, diante dessa falta de tudo, tem um público muito voltado a conseguir alguma coisa de uma forma mais rápida e o garimpo oferece isso”, o pesquisador de garimpo e presidente do Instituto Conviva, Joel Valério, disse à Mongabay.
“Mas o que leva essas pessoas para dentro de um garimpo? É quem está assediando ou é essa falta de ter como sobreviver nos interiores de Roraima ou nas periferias da capital sem conseguir nenhum sucesso financeiro?”, questiona o pesquisador.
Para Valério, a inocência de algumas jovens e a falta de informação sobre a forma de atuação das redes de tráfico humano tendem a facilitar a ação de aliciadores com promessas enganosas de trabalho bem remunerado e retorno ao convívio familiar em melhores condições financeiras.

O pesquisador explica que as cozinheiras são as únicas pessoas que têm pagamento fixo nos garimpos e são protegidas por lideranças dos empreendimentos. Além de cozinhar, elas também recebem para lavar roupas e, segundo o Valério, não são exploradas sexualmente. Como essas mulheres conquistaram status na hierarquia desses ambientes, sendo bem pagas e se tornando intocáveis, muitas garotas são aliciadas com a promessa de que chegarão ao posto de cozinheiras.
Grande parte da vida social dos garimpos ocorre nas currutelas, espaços com refeitório e bar onde mulheres exploradas podem beber e dançar para atrair a clientela. A pesquisadora Márcia Oliveira ouviu relatos de vítimas que as jovens são submetidas à rotina de exploração sexual quase sem direito a descanso nesses locais.
As vítimas também vivem em ambientes degradados, abrigadas em alojamentos sem banheiro e bebem água contaminada, de acordo com Oliveira. As jovens são pagas em gramas de ouro, moeda corrente nos garimpos, mas já chegam endividadas ao local porque o dono do negócio espera ser reembolsado pelo custo de deslocamento da vítima e pela estadia. Oliveira considera que o trabalho é análogo à escravidão.