Questionamentos feitos pela Polícia Militar de São Paulo à empresa responsável pelo sistema das câmeras corporais indicam que a corporação sabia há pelo menos dois anos das manipulações indevidas na plataforma e suspeitas de fraudes para sumir com vídeos de ocorrências.
O Metrópoles teve acesso a uma série de notificações enviadas pela Diretoria de Tecnologia da PM (DTIC) à Axon em 2023. Em um dos documentos, o capitão responsável pela gestão do contrato diz que, em um mês, 47 vídeos de ocorrências haviam sido atribuídos a um policial inativo no sistema.
Em resposta enviada à PM na época, a Axon disse que as manipulações não indicariam falha na plataforma, culpando a corporação pelo ocorrido.
Questionada pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) não informou quais providências teriam sido tomadas a partir das notificações.
Conforme revelado pelo Metrópoles na última segunda-feira (28/7), registros extraídos da plataforma Evidence, usada para processar e armazenar as gravações das câmeras corporais, mostram que uma major ligada à cúpula da PM teria deletado o vídeo de uma ocorrência que terminou com suspeito morto em março de 2024, na Operação Verão.
A major em questão, Adriana Leandro de Araújo, é chefe da Divisão de Evidências Digitais da PM e foi mantida no cargo.
47 vídeos a usuário inativo
Em 27 de abril de 2023, o capitão Arony Aparecido Lopes, gestor do contrato entre a PM e a Axon, questionou a empresa sobre por que dezenas de arquivos, captados por câmeras corporais de diferentes batalhões, foram atribuídos a um mesmo usuário, que havia sido inativado.
As manipulações teriam sido realizadas em março daquele ano, e constatadas em uma auditoria realizada no mês seguinte, em 11 de abril.
“Apenas no mês de março, de 2023, foi verificado que foram atribuídos 47 vídeos, em dias diferentes, com câmeras pertencentes a diferentes batalhões, ao mesmo policial militar inativo no Evidence, o qual não possui mais permissão de acesso ao sistema”, afirma o oficial.
Arony Lopes ainda questiona a Axon sobre a “necessidade de adequação” do sistema às disposições do contrato, que preza pela inviolabilidade da cadeia de custódia e a possibilidade de realizar perícias de usuários.
“Fica o consórcio Advanta e Axon, notificado a informar necessidade de adequação do sistema Axon View conforme especificação contratual e legislação brasileira vigente, no prazo de 48 horas”, afirma.
Após pedir que o prazo de 48h fosse postergado, a Axon respondeu apenas 15 dias depois, em 12 de maio de 2023, com documento assinado por Rafael Alves de Souza, diretor executivo da empresa.
Ele admite que o sistema permite que arquivos sejam atribuídos a outros usuários, incluindo usuários inativos, mas atribui o “erro” ao policial responsável pela operação.
“Essa característica possibilita a incorreta ou indevida associação de uma evidência a um usuário inativo. Isso, no entanto, não é um erro ou vulnerabilidade da Plataforma, já que a atribuição do usuário à COP é feita manualmente na entrega da COP ao colaborador”, diz executivo da Axon.
“Ademais, recomendamos que os usuários sejam instruídos a verificar se a COP está corretamente atribuída através da verificação do “ID do Distintivo” que aparece no display da COP, assim que a receberem. As instruções para fazê-lo são as seguintes”, acrescenta.
Notificações
Entre março de 2022 e junho de 2023, a PM, por meio da Diretoria de Tecnologia, fez pelo menos sete notificações à Axon apontando manipulações indevidas no sistema Evidence e cobrando adequação ao contrato para o fornecimento das câmeras corporais.
Os documentos indicam a existência de usuários anônimos na plataforma, a exclusão em massa de vídeos de ocorrências, exclusão automática antes do prazo previsto e a possibilidade de pessoas sem login acessarem o sistema para baixar gravações, sem deixar registros.
Nas respostas da Axon às notificações, não há indícios de que a empresa tenha feito ajustes no sistema para se adequar às especificações do contrato da Polícia Militar de São Paulo. Questionada, a Axon não respondeu.
Morto com 12 tiros
A ocorrência da Operação Verão que teve o vídeo manipulado e apagado no sistema Evidence ocorreu na tarde de 9 de março de 2024, no Morro do José Menino, em Santos. A vítima foi Joselito dos Santos Vieira, morto com 12 tiros.
A gravação apagada foi captada pela câmera corporal do soldado Thiago da Costa Rodrigues. Oito dias após o arquivo entrar na plataforma, a major Adriana Leandro de Araújo mudou o nome do PM envolvido, atribuindo a ocorrência a um usuário anônimo. Depois, ela mudou a data do arquivo retroativamente, para 5 de janeiro daquele ano.
No dia seguinte às primeiras alterações, ela acessou o arquivo mais uma vez e apertou o botão excluir.
A major era diretamente subordinada ao então coordenador Operacional da PM, coronel Carvalho, que participou da ocorrência. A presença dele não foi explicada.
O que diz a SSP
Questionada pelo Metrópoles, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirmou que a Polícia Militar mantém um “rigoroso sistema de controle e fiscalização dos contratos em vigor, incluindo os relativos às câmeras operacionais portáteis (COPs)”.
“Esse processo é contínuo e realizado por meio de registros técnicos e notificações formais às empresas contratadas, garantindo a atualização dos sistemas e a adoção de medidas preventivas e corretivas sempre que necessário”, disse a pasta.
A SSP ainda destacou a contratação de novas câmeras, da Motorola, para substituir as da Axon.
“Desde junho, a Corporação adotou um novo modelo de câmeras corporais, com novas ferramentas e funcionalidades que garantem ainda mais integridade do sistema da cadeia de custódia, com credenciais individualizadas e rastreáveis, e criptografia de ponta a ponta”.
No entanto, especialistas em provas digitais ouvidos pela reportagem afirmam que as câmeras da Motorola apresentam as mesmas fragilidades que as atuais.
Questionada, a Axon não respondeu. O espaço segue aberto para manifestação.
Fonte: www.metropoles.com