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A ‘reforma’ do Conama: da promessa à frustração

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Ainda em 2 de janeiro deste ano, o recém-empossado presidente da República fez publicar, em edição extra do Diário Oficial da União, a primeira demanda formal de trabalho dirigida à sua ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Por despacho, determinava à titular da pasta, em conjunto com o ministro-chefe da Casa Civil, a adoção, no prazo de 45 dias, de providências “para eliminar os retrocessos realizados na estrutura e no funcionamento do Conama, […] a fim de garantir a ampla participação da sociedade na definição das políticas públicas ambientais do País”.

O ato também orientava que o trabalho de revisão das normas sobre a composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) se desse em estrita observância à decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 623, “a servir de fundamento para nova regulamentação”.

O expediente em si tinha valor mais político do que jurídico, pois, àquela altura, nada havia de concreto sobre a configuração que o novo governo pretendia dar ao Conama. Afinal, simplesmente “eliminar os retrocessos” promovidos naquele conselho por Bolsonaro e companhia (Decretos 9.806/2019 e 11.018/2022) de modo algum garantiria, como fazia crer o referido despacho, “a ampla participação da sociedade na definição das políticas públicas ambientais do País”.

As alternativas, em essência, não eram muitas. A mera reconstituição do edifício pré-desmonte de 2019 equivaleria a trocar escombros por ruínas. Nessa hipótese, fatalmente voltar-se-ia a assistir ao inexorável processo de obsolescência do conselho, em razão das falhas de projeto que já vinham, há décadas, minando as bases da legitimidade e relevância do órgão. O mesmo era previsto no caso de eventuais alterações cosméticas sobre a antiga fachada do Conama, dando ao conjunto aparência de avanço, mas postergando o enfrentamento dos seus problemas estruturais.

Naquelas circunstâncias, portanto, o único caminho a ser tomado era o de dar ao edifício as sólidas fundações que sempre mereceu, conformando sua arquitetura ao plano diretor estabelecido pela lei que o instituiu e pelos preceitos constitucionais incidentes.

Pois bem. Em 17 de fevereiro, 46 dias após o despacho presidencial – período durante o qual o governo manteve sepulcral silêncio sobre a questão – finalmente veio a público, sob a forma do Decreto 11.417/2023, a solução dada pela nova gestão para o problema do Conama. O tão aguardado regulamento, contudo, confirmou a pior dentre as hipóteses imaginadas até aquele momento. Em linhas gerais, o referido decreto se limitou a recompor o status quo ante do conselho, praticamente fazendo repristinar a composição que vigorava até o advento dos desmontes bolsonaristas.

No noticiário, replicou-se a falácia segundo a qual o Conama, em razão do Decreto 11.417/2023, voltaria a ter “ampla participação da sociedade civil”. Na caixa de ressonância da narrativa oficial, vendia-se como avanço o que era, na realidade, pura estagnação. A participação social no conselho, nunca tendo sido propriamente “ampla”, continuava não podendo ser assim qualificada.

Com efeito, no retrato da última composição do colegiado, antes do desmonte de 2019, o setor dito “da sociedade civil” ocupava parcos 23,65% dos assentos com direito a voto no plenário. Com o Decreto 9.806/2019, essa fatia encolheu para 17,4%. Em 2022, a fim de burlar o cumprimento da medida cautelar implementada na ADPF 623, o governo federal restaurou, em termos quantitativos, o patamar de representação anterior, reservando às ONGs ambientalistas 22,2 % dos votos.

Na nova configuração, esta “categoria” passa a ocupar não mais que 20,4% dos assentos votantes do conselho. Como se vê, o Decreto 11.417/2023 não só deixou de ampliar, como, a rigor, fez diluir o espaço da sociedade civil no Conama.

Dessa perspectiva histórica, não é difícil visualizar a falácia embutida no discurso do “retorno da ampla participação social”. Ao se relegar um peso tão diminuto à sociedade civil, o Conama permanece no lugar em que sempre esteve – e muito distante do ideal do “parlamento ambiental” que enganosamente se convencionou celebrar.

Não à toa, a iníqua repartição de cadeiras do conselho já era tida como inconstitucional antes do advento dos desmontes bolsonaristas, como se pode ler do parecer do professor José Afonso da Silva juntado à representação que veio a dar origem à propositura da ADPF 623.

Neste trabalho, datado de maio de 2018, o eminente professor já afirmava que a composição então vigente no Conama “não cumpre o seu papel constitucional, no sentido de viabilizar a participação direta da sociedade na efetiva defesa do meio ambiente, simplesmente porque conferindo às entidades governamentais e empresariais a maioria dos membros votantes […] não observou o princípio da igualdade que dá legitimidade à organização democrática participativa”. Dizia, ainda, não haver dúvida de que “esse desequilíbrio de forças interfere diretamente na promoção do desenvolvimento sustentável, sobretudo por o pêndulo pender para o lado dos interesses contrários à defesa e à preservação da qualidade do meio ambiente também para as futuras gerações”.

Tendo isso em mente, fica mais fácil compreender a informação, veiculada após a publicação do Decreto 11.417/2023, segundo a qual o Ministério do Meio Ambiente pretende promover, dentro deste “novo velho” Conama, as discussões sobre uma nova formulação do conselho que amplie a participação da sociedade.

A ideia, além de soar como uma confissão sobre a incapacidade do novo decreto para atender os parâmetros estabelecidos na decisão do STF, parece moldada ao propósito de tornar definitivo aquilo que se diz apenas provisório. Afinal, se nem mesmo o governo federal, diretamente incumbido da tarefa, agiu no sentido de consertar os desequilíbrios na composição do Conama, é ilógico esperar que o próprio colegiado tenha melhores condições de fazê-lo, já que a decisão para tanto ficaria, ao fim e ao cabo, ao talante de quem mais se beneficia desses desequilíbrios.

Conforme já defendemos em outras oportunidades – inclusive em textos publicados no JOTA – há razões lógicas e finalísticas para que se confira, para além da paridade, até mesmo uma maioria de assentos às ONGs ambientalistas no Conama. Esse argumento, nos parece, também serviu de fio condutor para o entendimento, citado acima, do professor José Afonso da Silva.

Muito embora o conselho seja regimentalmente composto por cinco “segmentos” ou “categorias de interesse multissetorial” diferentes, é perceptível a existência de duas categorias de interesses distintos. Num campo, há a representação daqueles que estão comprometidos tão somente com a proteção do meio ambiente – no caso, ONGs ambientalistas – e, do outro, aqueles que defendem interesses múltiplos (de natureza político-governamental, econômica, classista etc.), e que ali se aglutinam para antagonizar os primeiros.

Considerando, porém, que o Conama está vinculado legal e constitucionalmente ao propósito da proteção ambiental – na qualidade de órgão consultivo e deliberativo do Sistema Nacional do Meio Ambiente, tem a finalidade precípua de “deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida” (art. 6º, II, da Lei 6.938/1981) – é imperioso que se decida a qual dos dois campos em oposição deve-se dar representação majoritária, de modo tal que se confira ao órgão colegiado maiores probabilidades de realizar seu desígnio.

A questão relativa a qual lado se deve assegurar a maioria ganha ainda maior importância pelo fato – objeto de tantos equívocos – de que a tomada de decisões no Conama, enquanto espaço deliberativo guiado pela representação de interesses antagônicos, não é orientada pela prevalência dos melhores argumentos técnicos, obtidos após uma cognição exauriente da matéria, mas sim pela pura e simples preponderância de votos.

A baliza objetiva necessária para solucionar a questão reside, por isso, na identificação do bloco mais propenso e legitimado a fazer o Conama cumprir a tarefa que constitui a sua própria razão de ser, qual seja, a de proteger o meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Adotado esse discrímen, a representação do campo protetivo pelas entidades ambientalistas deve ser sempre majoritária em relação aos interesses contrapostos à proteção ambiental. Somente assim aqueles que ali estão para promover interesses próprios terão o ônus de provar e convencer o resto de seus pares de que suas propostas se adequam à proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, e não o contrário, como sempre ocorreu no Conama.

Ademais, a legitimidade das entidades ambientalistas para representar os interesses do “público em geral” em espaços participativos do Estado está consagrada em normativas basilares do Direito Internacional do Meio Ambiente, como a Declaração do Rio (1992), a Convenção de Aarhus (2001), e, mais recentemente, o Acordo de Escazú (2019).

Com efeito, ao impor à “coletividade”, e não só ao poder público, “o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes futuras gerações”, a Constituição Federal, no caput do art. 225, acabou por endereçar ao Estado uma obrigação adicional, de todo lógica: a de garantir a participação direta – qualificada e efetiva – desta mesma “coletividade” na tomada de decisões e na elaboração de ações, programas e políticas relativas ao meio ambiente. O preceito, aliás, está em perfeita consonância com o princípio fundamental da participação popular direta, inscrito no parágrafo único do art. 1º da Carta de 1988.

Vale lembrar, ainda, que, em 2020, com a promulgação da EC 108, o artigo 193 do texto constitucional recebeu o seguinte parágrafo único: “O Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas”.

Quando deixa, pois, de garantir a adequada e efetiva participação social em matéria de meio ambiente, o poder público viola a Constituição e fere o núcleo daquele direito-dever fundamental, pois sonega ao seu titular o principal instrumento para o seu exercício ativo e direto.

As boas práticas internacionais confirmam o acerto desse norte jurídico-constitucional. Em relatório recente sobre o estágio atual do Brasil na agenda de “governo aberto”, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) foi categórica ao recomendar que o Estado brasileiro, no que se refere à composição dos conselhos de políticas públicas, deve “garantir uma representação igualitária das partes interessadas governamentais e não governamentais como requisito mínimo para todos os Conselhos” (grifo nosso)[1].

Tudo isso considerado – desde os parâmetros traçados pelo STF dando guarida e explicitando os ditames constitucionais aplicáveis, assim como o arcabouço normativo que reconhece a maior legitimidade das entidades ambientalistas para a defesa dos interesses de proteção ambiental em foros como o Conama – não deve mais restar dúvida de que, enquanto a sociedade civil não tiver naquele espaço o protagonismo que sempre lhe foi negado, o imediato conserto do órgão continuará se impondo como obrigação inafastável do governo federal.

Mesmo que se pressuponha um zelo especial do atual governo para com as questões ambientais, ainda assim seria imprescindível a concreta participação popular naquele foro, sob pena de, assim não sendo, termos ali patente manifestação de um “Estado ambiental autoritário”[2]. Nessa hipótese, sem a participação majoritária da sociedade civil, e, em especial daqueles que advogam exclusivamente os interesses do meio ambiente, estaria o Conama condenado a funcionar como mero cartório chancelador da vontade governamental.

O discurso bem-intencionado da nova gestão na seara ambiental, ainda que se mostre capaz de proporcionar divisas para o país, não foi aplicado, até aqui, naquilo que diz respeito à necessária refundação do Conama, como ficou evidente no Decreto 11.417/2023. Longe disso, a medida não só deixou de atender os parâmetros traçados pelo STF como insistiu em violar o arcabouço normativo que deve reger a representação da participação popular em conselhos de políticas públicas, em especial os de meio ambiente.

Por se ressentir, mutatis mutandis, da mesma inconstitucionalidade essencial de que padecia o regulamento anterior, o Decreto 11.417/2023 não dá o devido cumprimento aos termos da medida cautelar concedida pela ministra Rosa Weber na ADPF 623. Mantida a recalcitrância do governo federal em sanar as inconstitucionalidades identificadas na composição do Conama, caberá à Suprema Corte, em defesa da autoridade da decisão já proferida, suspender os efeitos do Decreto 11.417/2023.

Já é hora de aceitar o fato de que nenhum dos caminhos possíveis para o aprimoramento da nossa governança ambiental poderá prescindir da refundação da mais importante cidadela de participação em matéria de proteção ao meio ambiente, símbolo da promessa de “governança” desde muito antes de o termo entrar na moda.


[1] OECD. “Revisão da OCDE sobre Governo Aberto no Brasil: avançando para uma agenda de governo aberto integrada.”. Disponível em: <https://read.oecd-ilibrary.org/view/?ref=1150_1150753-0jb6duhpek&title>, p. 27.

[2] LEITE, José Rubens Morato. “Sociedade de risco e Estado”. In. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Coord.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, 184-185.