O governo federal enfileira há quatro anos acordos sobre direitos territoriais de populações tradicionais e indígenas em parques nacionais e outras unidades de proteção integral. Especialistas avaliam se haverá ou não prejuízos à conservação.
Há séculos a humanidade reserva florestas e outros ambientes com fins religiosos ou tentando assegurar itens como madeira e animais para caça. Isso culminou num modelo mundial que protege legalmente essas áreas, no Brasil sobretudo para manter a biodiversidade.
O país resguarda porções do território ao menos desde 1911, quando o presidente Hermes da Fonseca (1855-1923) decretou uma reserva florestal no Acre, já atento às crises do clima e da escassez de água – então para navegação –, mostra o escritor John Perlin no livro “A História das Florestas”.
Parques e outros tipos de reservas ecológicas ganharam um guarda-chuva legislativo no ano 2000. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o SNUC, abrange hoje 19,7% das terras e 26,5% da área marinha, mostra um painel federal.
Há uma década, havia pessoas em quase sete de cada dez unidades federais com proteção ambiental mais restritiva, traz o único balanço do ICMBio. A lei pede que, em algumas áreas de proteção integral, construções e imóveis privados ou pessoas que prejudiquem a conservação sejam removidos.
Todas as unidades de conservação (UCs) criadas com pessoas já em seus limites “(…) estão, pelo menos potencialmente, sujeitas à necessidade de um trabalho de compatibilização de direitos”, descreve a autarquia por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Na época, as UCs com mais pessoas em seus territórios eram parques nacionais, estações ecológicas e reservas biológicas, na Amazônia, Mata Atlântica e zona costeiro-marinha, sobretudo com populações tradicionais, pequenos agricultores e assentados da reforma agrária.
Fonte: ICMBio • Dados obtidos por meio do levantamento realizado em 2013/14: UCs de proteção integral cujos gestores responderam “sim” à pergunta: “Existem populações tradicionais, comunidades quilombolas, povos indígenas, agricultores familiares ou assentados da reforma agrária, que residem, usam recursos naturais ou utilizam a UC como via de acesso, em desacordo com a categoria ou instrumentos de gestão da Unidade?”
Efeitos incertos
Há 27 acordos do ICMBio com pescadores, ribeirinhos e agricultores em parques, reservas biológicas e estações ecológicas.
Podem ser fechados este ano termos com indígenas nos parques nacionais da Serra do Divisor (AC) e do Juruena (MT/AM) e Reserva Biológica do Guaporé (RO), com quilombolas na Reserva Biológica do Rio Trombetas (PA) e com caiçaras no Parque Nacional da Serra da Bocaina (RJ/SP).
Ainda sem prazo, podem ser renovados outros acordos nas estações ecológicas de Tamoios (RJ) e Serra Geral do Tocantins (TO), bem como nos parques nacionais do Jaú (AM) e do Juruena (MT/AM).
“Não se trata de ‘acomodar populações no interior das UC de proteção integral’, mas de reconhecer que elas já estavam lá quando da criação destas unidades”, pondera o órgão ambiental federal via Lei de Acesso à Informação (LAI).
“Há casos de grupos indígenas, detentores do chamado “direito originário”, que mesmo tendo reivindicado determinados territórios sobrepostos a uma UC após a criação desta, podem eventualmente conseguir demonstrar a legitimidade de seus pleitos”, agrega o ICMBio.
Tais processos e acordos foram acelerados desde 2021, na administração de Jair Bolsonaro, adiantou ((o))eco, mas ainda geram dúvidas sobre se prejudicarão ou não a conservação da biodiversidade para atender direitos humanos em UCs de proteção mais rigorosa.
O pós-doutor em Sustentabilidade Ambiental Global (Universidade do Colorado) e em Geografia (Universidade da Califórnia), José Drummond, adianta que “ecossistemas naturais são como orquestras, se um instrumento desafinar, tudo vai mal”.
Já o ICMBio, pondera que a Constituição e Convenção 169 da OIT são “superiores à lei do SNUC” e, por isso, havia “uma virtual impossibilidade” para cumprir o previsto quanto à “devida realocação de comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas em UCs”.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) lista direitos de povos indígenas e tribais distribuídos em mais de 70 países. As nações que a adotaram, como o Brasil, devem aplicar leis e políticas garantindo esses benefícios.
Ex-chefe da consultoria jurídica do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e sócio do escritório Trindade Lavratti, o advogado Gustavo Trindade avalia que a medida é legalmente questionável e que arrisca o conjunto nacional das unidades de conservação.
“Essa solução é mais ‘barata’ política e financeiramente do que desapropriar terras, mas pode dar uma margem futura para permitir imóveis privados ou populações e atividades sem vínculos reais com a proteção ambiental nessas UCs”, destaca.
Assim, ele diz entender a acomodação de povos com tradições históricas, mas não os acordos envolvendo amplamente grupos como pequenos agricultores e assentados da reforma agrária. “Isso passa um pouco da razoabilidade”, diz o especialista em direito ambiental.
Além de proteger 305 etnias indígenas, a lei brasileira reconhece 28 povos e comunidades tradicionais, englobando extrativistas, caiçaras, ciganos, pantaneiros, pomeranos, usuários de terreiros, ribeirinhos, seringueiros e veredeiros.
“Geralmente esses povos não estão dispostos a serem simplesmente reassentados, uma vez que não concebem como possível replicar seus modos de vida, conhecimentos e patrimônio cultural, aspectos inerentemente desenvolvidos e vinculados ao ambiente e território de ocupação ancestral”, diz o ICMBio.
O governo anterior tentou dar o mesmo enquadramento geral de populações tradicionais a garimpeiros e pecuaristas, sem discriminar atividades ancestrais de ilegais ou com grande porte.
Professor aposentado do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, José Drummond analisa que as 12 categorias do SNUC atendem aos direitos humanos e atividades econômicas, não sendo necessário acomodá-las nas de proteção mais restrita. “Algumas permitem quase tudo, de mineração à agricultura e linhões, além de comunidades residentes”, descreve.
Ele lembra que comunidades tradicionais não prejudicam a natureza como lavouras de soja e outras monoculturas, que tudo desmatam, mas que não há atividade humana que “deixe a biodiversidade em paz”. “Somos todos usuários e empobrecedores da diversidade biológica”, ressalta o pesquisador.
Já o diretor de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade no MMA, hoje Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Bráulio Dias, pondera que a humanidade altera a natureza há milhões de anos e que, assim, não existem ambientes inalterados.
“Isso põe em xeque a teoria de regiões que deveriam ser preservadas como se fossem intocadas, seguindo o modelo estadunidense [de conservação] que fez escola globalmente”, avalia o também ex-secretário-executivo da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica.
Dias lembra que a mão humana ajudou a disseminar a super fértil terra-preta e espécies como a castanheira pela Amazônia. “São exemplos de patrimônios fantásticos em paisagens modificadas pelos indígenas”, analisa o doutor em Zoologia (Universidade de Edimburgo).
Conforme o ICMBio, “sempre que bem elaborados, implementados e monitorados”, os acordos podem ter efeitos positivos como amenizar conflitos, aproximar e dar segurança jurídica a gestores das UCs e comunitários.
Também contribuiriam “com a integridade e sustentabilidade dos atributos ambientais, com redução de queimadas, caça e outras atividades impactantes, uma vez que promovem o regramento das atividades produtivas”, descreve a autarquia.
Fontes agregam que esse papel também é relevante frente à crônica falta de dinheiro e de pessoal dos órgãos ambientais e de ataques políticos que complicam e atrasam a criação, implantação e gerenciamento das unidades de conservação.
“As populações tradicionais podem ser importantes para manter certas UCs”, avalia Gustavo Trindade. “Na maioria das unidades de proteção integral, dependemos apenas dos servidores públicos para proteger e fiscalizar”, lembra Bráulio Dias.
Nessa linha, o diretor no MMA diz que os planos de manejo das UCs devem ser alterados para equilibrar conservação e direitos humanos, delimitando quais e como certas áreas poderão ser usadas pelas comunidades tradicionais e indígenas. “Esse é o caminho”, afirma.
Contudo, sem isso muito bem acordado e monitorado, os eventuais crescimento das populações em reservas ambientais e exploração descontrolada de recursos naturais podem afetar a conservação, reconhece Dias. “Certamente haverá pressões nesse sentido”, avisa.
O ICMBio conta que novos acordos com povos indígenas e tradicionais mostra um “leve aumento” dos residentes em unidades de conservação, mas avalia que “isso não significa que tenha ocorrido crescimento real desses casos, e sim maior acuracidade da informação disponível”.
Antes desses acertos, são verificados itens como valores culturais e religiosos, contadas e oferecidas alternativas de renda às famílias e fixadas regras de uso dos recursos naturais. “Uma vez celebrado, inicia-se a fase de implementação, acompanhamento e monitoramento [do combinado]”, diz a autarquia.
Contudo, pairam dúvidas sobre se os acordos serão mantidos frente a questões como desmate excessivo ou caça de espécies ameaçadas de extinção.
Numa nota técnica obtida pela reportagem, a Procuradoria Federal Especializada junto ao ICMBio alerta à fiscalização para não lavrar autos de infração, que antecedem as multas, sem verificar se a comunidade está “praticando atividades tradicionais, segundo seus usos, costumes e tradições”.
“Não se lavra auto de infração quando não se tem certeza quanto à autoria, à materialidade ou ao nexo causal acerca de dano ambiental ou ao descumprimento de legislação ambiental, o que pode, inclusive, inaugurar ou acirrar um conflito em uma relação de interface sensível com determinada população tradicional”, diz o documento.
Já o ICMBio afirma que novas casas ou demais estruturas para uso residencial ou coletivo dependem de autorização da autarquia e que os acordos podem ser revistos se prejudicarem a conservação de espécies e recursos naturais.
“Caso haja desrespeito às normas e acordos estabelecidos, o compromissário fica sujeito às sanções cabíveis com base na legislação ambiental vigente, entre outras sanções eventualmente previstas em norma específica, inclusive no próprio TC [termo de compromisso]”, afirma.
Chão de fábrica
As atuais 81 sobreposições entre unidades de conservação e terras indígenas e quilombolas somam 91 mil km2 no país, conta o ICMBio. A área é similar a ⅓ da do estado de Alagoas ou a seis vezes a da capital São Paulo (SP).
Há mais de 3,5 mil comunidades quilombolas certificadas no Brasil e mais de 1,8 mil processos abertos, mas apenas 4,3% dessa população mora em territórios titulados e regularizados, aponta uma análise do Instituto Socioambiental sobre as metas de conservação até 2030.
“Elas pedem que sejam protegidos 30% de ecossistemas terrestres, de água doce e marinhos. Já superamos parte desse número, ao menos no papel, mas essa estratégia condena muitas áreas fora das unidades de conservação a serem destruídas e privatizadas”, alerta Bráulio Dias (MMA).
A mesma publicação aponta que existem 723 territórios indígenas demarcados ou em demarcação no país. O processo está ameaçado e atrasado enquanto o Brasil não bate o martelo sobre o chamado “marco temporal”, como noticiou ((o))eco.
Pequenos agricultores e assentados também demandam direitos e terras num país que historicamente privilegia o agronegócio industrial e adia sua regularização fundiária, no campo, na cidade e de áreas protegidas. ((o))eco indicou que, no ritmo atual, serão necessários 490 anos para assegurar os limites das unidades de conservação.
“Não houve um novo levantamento junto à todas as UC federais desde 2013/2014. Novos registros continuam a ser realizados pontualmente, na medida em que novas informações vão surgindo, especialmente para as novas UC criadas nesse e após esse período”, descreve o ICMBio.
Até fevereiro de 2025, apanhadores de flores, ONGs e ICMBio devem apresentar uma proposta de acordo para conciliar a extração de recursos com a conservação do Parque Nacional das Sempre-Vivas (MG). Mais de cem pessoas coletariam flores na área protegida.
“Estão tratando unidades de conservação de proteção integral como se fossem de uso sustentável. Vão transformar tudo em reservas extrativistas”, avaliam fontes que pediram para não ser identificadas na reportagem.
As mesmas apontam que parques nacionais e outras unidades de conservação sofrem com baixíssima regularização fundiária, garimpo, caça com armas de fogo e pressões para rebaixar sua categoria de proteção por supostos donos de terras.
Enquanto isso, parte da porção sul do Parque Nacional do Caparaó (MG/ES) pode se tornar uma terra indígena, cuja presença histórica e usos religiosos na região são reconhecidos pelo ICMBio na página oficial da unidade de conservação.
“Isso preocupa porque a área tem espécies em risco de extinção, como palmito-juçara, queixada e muriqui, além de proteger a Mata Atlântica, um dos biomas mais ameaçados do país”, diz um servidor federal que igualmente pediu para não ser nomeado.
A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) não informou sobre o andamento do processo até o fechamento da reportagem.
Parcelas também estão em xeque em parques nacionais como Grande Sertão-Veredas (MG/BA) e Aparados da Serra (RS/SC), unidades cujas terras ou vizinhança imediata são alvo de criação de gado, irrigação de lavouras, desmate e caça.
“É mais fácil cortar UCs do que fazendas e outras áreas privadas. É mais viável do que lidar com o poder econômico e outros interessados nas terras das unidades de conservação”, ressalta uma fonte que solicitou não ser identificada temendo retaliações.
Mas há impasses em outras UCs. A Reserva Biológica do Tinguá (RJ) acumula mais de 50 autos de infração por pessoas entrando sem autorização para atividades religiosas, em alguns casos com desmate, acampamento e fogo. O ICMBio debate desde 2021 como acomodar as atividades.
No Parque Nacional da Serra da Bocaina (RJ/SP), os conflitos envolvem uma área reconhecida como de comunidade tradicional num terreno de marinha e que teria sido incorporada à área protegida. No local, o ICMBio havia ordenado a demolição de bares, restaurantes e campings.
“São contínuas a venda de terras, o avanço e pressão para legalizar essas ocupações”, relata um servidor federal que, da mesma maneira, pediu para não ser identificado.
Reações internas e externas
As possíveis ameaças à conservação da biodiversidade e críticas à condução técnica e política dos acordos com comunidades e povos tradicionais e indígenas no ICMBio foram listados numa carta assinada por dezenas de servidores federais.
O documento pontua que as atividades podem deixar um caráter tradicional ao longo do tempo e que pareceres e análises jurídicas e técnicas não foram debatidos amplamente na autarquia. “Foi uma coisa encomendada por um grupinho”, acusa uma fonte que pediu para não ser identificada.
Despachos da autarquia citam que “é preciso ser dito que o fruto deste trabalho é um encontro. Em especial, um encontro comigo mesmo” e que “Este projeto das populações tradicionais não é meu, não é do Procurador que subscreveu o Parecer e não é da COGCOT [Coordenação de Gestão de Conflitos em Interfaces Territoriais]. É o projeto de toda uma Autarquia, uma autarquia que pode e deve caminhar coesa, com base nas mesmas premissas de interpretação”.
Já o ICMBio, diz que é “inoportuna” a afirmação de que as comunidades tradicionais e indígenas possam fragilizar o SNUC pelos limites definidos nos acordos e porque as terras com elas compartilhadas compõem um “pequeno percentual” das áreas das UCs.
A autarquia afirma atender “interesses e regramentos” do Estado brasileiro e não “políticas de Governo” e que os conflitos entre unidades de conservação e povos tradicionais fez “cada vez mais servidores” buscarem acordos para conciliar direitos. “O número de demandas dessa agenda tem crescido”, conta.
“Ressaltamos que praticamente todos os países têm buscado incorporar as Populações Tradicionais nas estratégias de conservação, reparando direitos afetados e adaptando suas legislações, alcançando bons resultados na gestão das Unidades e na conservação da biodiversidade”, pondera o ICMBio.
Enquanto isso, outro risco apontado por pesquisadores e servidores desde os acordos com povos tradicionais e indígenas é o de abrir mais janelas políticas para rebaixar a proteção, reduzir ou eliminar parques nacionais e outros tipos de unidades de conservação.
Projetos de lei propondo isso tramitam nos parlamentos federais e estaduais, noticiou ((o))eco. No governo anterior, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles propôs revisar todas as então 334 unidades de conservação federais, informamos com base em reportagem do Estado de S. Paulo.
Para José Drummond, pós-doutor em Sustentabilidade Ambiental Global (Universidade do Colorado) e em Geografia (Universidade da Califórnia), isso mostra que o cenário político nacional ainda traz grandes riscos ao SNUC, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação.
“Acabamos de sair de um governo com apoio popular e que foi exemplar nisso [tentar enfraquecer ou acabar com unidades de conservação]. Podemos estar no limiar de um novo torpedeamento do SNUC”, aponta o professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB).
Confira aqui a íntegra da resposta da Diretoria de Ações Socioambientais e Consolidação Territorial em Unidades de Conservação (DISAT) do ICMBio e demais documentos aproveitados na reportagem.