São Paulo — Ex-funcionários da VoePass, companhia aérea responsável pelo avião que caiu em Vinhedo, no interior de São Paulo, denunciavam irregularidades e falta de manutenção nas aeronaves. Uma delas, inclusive, foi apelidada de “Maria da Fé”.
“A gente tinha um avião que apelidava de ‘Maria da Fé’. Porque só voava pela fé. Não tinha explicação de como um avião daquele estava voando”, disse um ex-funcionário não identificado da companhia, em entrevista ao Fantástico, da TV Globo.
De acordo com ele, a empresa colocava a segurança em “segundo ou terceiro plano” e “visava mais o lucro”. Imagens feitas no interior de uma das aeronaves (veja acima) mostram uma poltrona parcialmente solta do piso e a fresta da porta sugando um pedaço de papel.
O diretor-presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, Henrique Hacklaender, afirmou ao Fantástico que as reclamações sobre a empresa aumentaram depois da pandemia de Covid-19, em março de 2020.
“Os tripulantes têm percebido níveis de fadiga ainda maiores. Os relatos mais recentes da Passaredo [nome antigo da VoePass], com relação à área de manutenção, são por conta do sistema de ar-condicionado, que vinha apresentando algumas precariedades”, afirmou.
A jornalista e escritora Daniela Arbex revelou que voou no mesmo avião da VoePass um dia antes do acidente. Em um longo desabafo no Instagram, na sexta-feira (9/8), Daniela postou um vídeo onde pessoas passavam mal de calor dentro da aeronave, que estava com o ar condicionado desligado.
“Filmei as pessoas passando mal durante o voo por causa do calor que fazia dentro da aeronave sem ar condicionado. Foi terrível. Um passageiro chegou a tirar a camisa. Outro, que estava uma poltrona à minha frente, sentia muita dor de cabeça. As pessoas se abanavam procurando ar. Eu e outros passageiros questionamos a aeromoça. A resposta foi de que o “ar não funcionava em solo, só no ar”, o que não aconteceu” disse a jornalista.
Palito em sistema antigelo
O comandante Ruy Guardiola, ex-funcionário da VoePass e um dos primeiros pilotos do modelo ATR no Brasil, contou que, durante um voo da companhia, a equipe da manutenção usou um palito de fósforo para resolver um problema no botão que aciona o sistema antigelo. Uma falha no sistema anticongelamento é justamente uma das suspeitas para a queda do avião da VoePass que deixou 62 pessoas mortas na sexta-feira (9/8), em Vinhedo.
O episódio com o palito ocorreu em 2019, quando Guardiola trabalhou por um mês na então Passaredo (que passou a se chamar VoePass exatamente naquele ano). Fundada em 1995 em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, a companhia aérea é a mais antiga em operação no país e é especializada em voos regionais.
“O problema foi detectado no nível de aquecimento de um dos sistemas. A solução encontrada pela manutenção foi a colocação de um palito de fósforo, ou sei lá, um palito de dente. Eu vi com esses olhos que a terra há de comer”, contou o piloto em entrevista ao Fantástico.
Processos e reclamações
A VoePass acumula pelo menos 150 processos na Justiça desde 2021 e quase 900 reclamações nos últimos 12 meses.
No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), tramitam pelo menos 150 processos contra a companhia aérea desde 2021, sendo a maioria referente a pedidos de indenização por danos morais.
No site Reclame Aqui, ferramenta utilizada pelos consumidores para expor opiniões sobre a experiência com determinada empresa ou serviço, foram registradas quase 500 chamadas nos últimos seis meses e quase 900 nos últimos 12 meses.
A empresa é classificada como “não recomendada” no site, e respondeu apenas 9,2% das reclamações feitas na plataforma nos últimos seis meses e 32,4% nos últimos 12.
Em relação à natureza dos problemas, 24,14% são por cancelamento de voo, 23,71% sobre qualidade do serviço prestado, 22,52% por reembolso, 16,59% por estorno do valor pago e 13,04% sobre atraso na decolagem.
Perícia inicial
O Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) concluiu, nesta segunda-feira (12/8), a perícia inicial no local onde o avião da VoePass caiu em Vinhedo.
O órgão, que pertence à Força Aérea Brasileira (FAB), passou o final de semana realizando a chamada “Ação Inicial”, em que são recolhidas as primeiras informações que podem explicar a causa da queda. No domingo (11/8), os dados das caixas-pretas do avião foram extraídos da área com sucesso.
Com a finalização dessa primeira fase, a FAB explicou, em nota, que as investigações seguem para a fase de análise dos dados recolhidos, “com o levantamento de outras informações necessárias, a fim de identificar os possíveis fatores contribuintes”.
Até agora, foram levantadas três hipóteses para explicar o motivo da queda. A primeira delas é que o acidente possa ter sido causado por formação de gelo nas asas, uma hipótese sustentada pelos boletins meteorológicos do dia e pelo histórico de um acidente similar nos Estados Unidos há 30 anos.
Outra possibilidade é que o avião estava com resquícios de danos causados por um “tailstrike” — termo técnico usado na aviação para quando o avião bate com a cauda na pista — sofrido em março deste ano.
Há ainda uma terceira possibilidade de problemas no ar condicionado na aeronave, apontados por pessoas que tinham pilotado o avião, tenham prejudicado a sua refrigeração.
O relatório preliminar do acidente aéreo deverá ser divulgado em 30 dias. Segundo o Cenipa, a conclusão da investigação “terá o menor prazo possível, dependendo sempre da complexidade da ocorrência”.
Fonte: Oficial