A proteção de um grande viveiro natural de aves no litoral do Paraná conteve o vandalismo e a pesca desregrada, mas não o livrou de ameaças como o lixo plástico. Cientistas avaliam a dimensão e apontam soluções ao problema.
Alcançamos o Parque Nacional das Ilhas dos Currais cruzando águas calmas bem antes do raiar do sol. Decolando de seus picos cravados no mar, incontáveis aves nos receberam, patrulhando o céu e protegendo valiosos ninhos.
O censo não está atualizado, mas até 8 mil aves vivem e procriam na unidade de conservação, sobretudo das espécies atobá-pardo (Sula leucogaster), fragata (Fregata magnificens) e gaivota-do-mar (Larus dominicanus).
Autorizados por estudos em andamento, cientistas saltaram nas águas rumo a um raro acesso na maior das ilhas. Em menos de uma hora, lotaram sacos com garrafas, madeira e isopor.


O lixo deixou todos com a pulga atrás da orelha. Como lá chegou se Currais não é aberto a turistas ou pesca não autorizados? A resposta está na carona que pega nas correntes do mar, ondas e marés.
“[O parque] acumula resíduos descartados aqui e de origem internacional”, contou Fernanda Possatto, doutora em Sistemas Costeiros e Oceânicos pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Currais está na baía do Porto de Paranaguá, que movimentou 67 milhões de toneladas de produtos ano passado. Elas vão e vêm em milhares de navios, do mundo todo. Não raro, resíduos acumulados nas viagens acabam nas águas.
Outra dor de cabeça, o que chega boiando pode ser comido ou usado pelas aves nas ilhas Grapirá, Dois Picos e Filhote, avisou o ornitólogo Pedro Scherer Neto, mestre em Zoologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
“Vi escovas de dente, linhas de pesca e braços de bonecas em ninhos. Os animais acham que é decoração”, explicou. “Além disso, espécies que pescam mergulhando podem ficar presas em redes e morrer, como albatrozes, atobás e tartarugas”.
Scherer Neto liderou pesquisas conservacionistas pioneiras na região dos Currais, de meados dos anos 1980 ao mesmo período da década seguinte, bem antes dela ser delimitada como um parque nacional.


Microlixo é problemão
Contudo, as preocupações vão além dos resíduos maiores. Afinal, a circulação do Atlântico carrega as ameaças quase invisíveis dos microplásticos, cuja presença começou a ser pesada no Parque dos Currais.
Embarcados e munidos de redes e outros equipamentos, cientistas coletaram pela primeira vez água nos limites da unidade de conservação. Mesmo antes de chegar ao laboratório, as amostras já exibiam pequenos plásticos.
A ideia é comparar a poluição na área protegida com a de outros pontos da baía, de praias a outras ilhas, explicou Allan Krelling, doutor em Sistemas Costeiros e Oceânicos pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
“Há microplásticos em todas as regiões amostradas desde 2001, de áreas populosas a unidades de conservação, que deveriam estar intocadas”, lamentou o oceanógrafo.
Situação ainda pior foi medida nas plumas ou leiras, massas d’água com 23 vezes mais microplásticos por litro do que em outras zonas. Como rios cortando o mar, elas carregam poluentes, pequenos peixes e outros alimentos.
“Espécies comem o lixo, que pode subir pela cadeia alimentar [quando um animal se alimenta de outro] até as pessoas”, alertou a pesquisadora Fernanda Possatto (UFPR).
Estudos publicados apontam que todas as aves marinhas estão contaminadas com microplásticos, lembrou a bióloga Juliana Rechetelo, doutora em Ciências Ambientais pela Universidade James Cook (Austrália).
Ela lidera análises sobre a quantidade desses poluentes em animais vivos, como a gaivota-do-mar, o trinta-réis-de-bico-vermelho e a coruja-buraqueira (Athene cunicularia). Em todas eles foram encontrados.
“Microplásticos são cumulativos, liberam toxinas e prejudicam o organismo dos animais. Isso afeta ainda mais os de topo de cadeia [alimentar], cujas perdas podem desregular os ecossistemas”, detalhou Rechetelo.

Plástico universal
A disseminação de resíduos como microplásticos é um mau indicativo da saúde ambiental da região da Baía de Paranaguá, um dos maiores estoques nacionais de Mata Atlântica preservada.
As soluções incluiriam “fechar a torneira” dos poluentes. “Cerca de 80% do lixo nos oceanos tem origem terrestre”, lembrou Allan Krelling, doutor em Sistemas Costeiros e Oceânicos pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Tal tarefa está longe de ser simples ou de curto prazo pela tomada mundial dos microplásticos, encontrados até em águas mais profundas. As pesquisas usualmente coletam amostras superficiais.
O alarme está num estudo publicado na revista Nature, no fim de abril, baseado em dados registrados numa década por quase 2 mil estações distribuídas globalmente, a partir de 50 cm de profundidade.
Mesmo que não conclusivas, as análises mostraram que os microplásticos menores tendem a se concentrar na lâmina d’água e durar bem mais que as partículas maiores.
“Os microplásticos no oceano são, em sua maioria, irrecuperáveis e persistentes. Sua presença prolongada e acúmulo representam riscos para o bioma marinho”, destacou o estudo.

O problema também pode envolver desperdício. Afinal, além da produção massiva de plásticos que vão ao lixo depois de usados só uma vez, a contaminação se deveria também à parca reciclagem.
Menos de 10% da produção mundial de plásticos ocorre com materiais reaproveitados, mostra um artigo na revista Communications Earth & Environment, do grupo Nature.
Depois de avaliar mais de 80 mil usinas químicas globais, o estudo apontou que, embora o volume usado de plásticos reciclados aumente, a grande maioria delas é muito dependente de itens novos e derivados do petróleo.
Nessa toada, aumentar a reciclagem seria tapar o sol com a peneira se a produção de plásticos não for redesenhada para que sejam mais duráveis e reaproveitáveis.
“A reciclagem, sozinha, não tem sido suficiente para enfrentar a crise da poluição plástica”, concluiu Luisa Santiago, diretora-executiva da Fundação Ellen MacArthur (FEM) para a América Latina.
Concentração emplumada
Apenas dois parques nacionais marinhos foram criados antes dos Currais, os de Fernando de Noronha (PE) e dos Abrolhos (BA). Os quase 1,4 mil ha da reserva no litoral do Paraná foram delimitados por lei em 2013, não pelos usuais decretos.
Sua delimitação ajudou a proteger dezenas de espécies submersas, de corais ao mero (Epinephelus itajara), um gigante tranquilo ameaçado de extinção, e dezenas de outras acima da lâmina d’água. Mas a pujança é ainda maior.
O parque abriga 1% das populações mundiais de fragatas e atobás-marrons durante a reprodução, diz a ong BirdLife International. Ao menos o trinta-réis-de-bico-vermelho (Sterna hirundinacea), a garça-branca-grande (Ardea alba) e o savacu (Nycticorax nycticorax) têm ninhos nas mesmas ilhas.
O nome do parque lembra armadilhas de pesca similares a currais. Seu plano de manejo será definido a partir deste ano. Um desafio será avaliar o eventual turismo, hoje centrado em mergulhos conduzidos por operadoras autorizadas.
Nos seus limites, pescarias artesanais são permitidas só para cerca de 50 embarcações, tripuladas por pessoas que atuavam na região antes de ser protegida como parque.
“As capturas de tainha, cavala e salteira ocorrem no inverno”, disse o biólogo Rodrigo Filipak Torres, analista ambiental no Núcleo de Gestão Integrada Matinhos (ICMBio), responsável pelos parques Currais e Saint Hilaire Lange.
Uma tarefa árdua. Proteger as ilhas e seu entorno conteve o buzinaço e a soltura de fogos para provocar revoadas de assustadas aves, mas a pesca ilegal ronda a Baía de Paranaguá, especialmente o arrasto para camarão.
“Ele vem ‘arando’ e matando tudo pela frente”, lamentou André Cattani, doutor em Sistemas Costeiros e Oceânicos pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Bancos de vieiras foram extintos pelo arrasto”, lembrou.
A danosa prática consiste em grandes redes puxadas por um ou dois barcos que raspam o fundo do mar em busca de peixes, crustáceos e outros valorizados animais.

Uma solução é aplicada na região há quase duas décadas, os recifes artificiais de concreto. Alguns estão nos limites dos Currais, muitos outros estão espalhados onde mais cruzavam barcos de pesca predatória.
“Tudo foi feito com estudos, licenciamento e consultas às comunidades pescadoras”, lembrou André Cattani (UFPR). “Eles bloqueiam a pesca destrutiva e atraem vida marinha”, explicou.
Caso isso não seja feito, como ocorre no afundamento de pneus, carcaças de carros e aviões, muitas vezes sem remover seus plásticos e demais poluentes, o feito pode ser contrário ao esperado.
“Isso atrai animais para pontos sem refúgios, onde serão alvos de pesca desregrada”, alertou Cattani. “Não se pode jogar qualquer coisa no mar, é preciso critérios, conhecimento e planejamento”, disse.
Os pesquisadores Fernanda Possatto, Allan Krelling e André Catani são ligados ao Programa de Recuperação da Biodiversidade Marinha (Rebimar), que apoiou em parte a viagem de ((o))eco ao Paraná. A iniciativa é patrocinada pela Petrobras e executada pela Associação Mar Brasil (AMB).