Modificação efetuada pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea) numa condicionante da licença prévia (LP) do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro enfraqueceu substancialmente a responsabilidade da Petrobras na criação de uma zona tampão para proteger mananciais que abastecem 2 milhões de pessoas e quase metade da área de remanescentes de manguezais do estado.
A obrigação de comprar, restaurar e promover a manutenção de uma zona tampão de 2.308 hectares, prevista na LP de 2008, foi transformada num encargo muito mais ameno para a petroleira, sem que até hoje o Inea tenha esclarecido publicamente a razão da modificação.
Foi incluída uma condicionante na licença de instalação (LI) IN 001540, que prevê apenas o apoio técnico e financeiro ao poder público na implantação e manutenção de um parque para funcionar como zona tampão. Isto é, a obrigação inicial implicaria um dispêndio entre R$ 15 milhões e R$ 30 milhões somente para custear as desapropriações das fazendas de gado existentes na área. Mas ela foi alterada para um pagamento de meros R$ 4 milhões no acordo fechado em dezembro de 2013 entre Inea e Petrobras.
Na próxima reunião da Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca), programada para 6 de agosto (terça-feira), a gestão do governador Claudio Castro tentará novamente aprovar a licença de operação e recuperação (LOR) da operação de utilidades da refinaria de gás natural (UPGN) do pré-sal.
Como nas três últimas tentativas de aprovar a mesma LOR, nas reuniões realizadas pela Ceca em 30 de abril, 7 de maio e 30 de julho de 2024 (ontem), a representação do governo estadual tenderá a ignorar o descumprimento das condicionantes 30.1 e 30.2 da LP e 35 da licença de instalação (LI) IN 001540/2009. A pedido do representante do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) na Ceca, o presidente do colegiado, Mauricio Couto Cesar Junior, retirou o item relativo à LOR da pauta do encontro, como fizera nas reuniões ocorridas em 30 de abril e 7 de maio. Sobre o assunto, ((o))eco publicou em 18 de julho passado a reportagem “Governo do RJ tenta liberar refinaria de gás da Petrobras sem cumprir condicionantes do licenciamento”.
A condicionante 30.2 da LP prevê a implantação de uma zona tampão de 2.525 hectares entre o Comperj (renomeado para Gaslub) e a Área de Proteção Ambiental (APA) Guapi-Mirim; já a 30.1 da LP obriga a empresa a restaurar as matas ciliares de 2.014 hectares de faixas marginais nas sub-bacias dos rios Caceribu e Guapi-Macacu; a condicionante 35 da LI IN 001540 estabelece a criação de um parque para funcionar como zona tampão, um polígono delimitado pelos rios Macacu, ao norte, e Caceribu, ao sul.
Como os manguezais são protegidos pela APA Guapi-Mirim e pela Estação Ecológica (Esec) Guanabara, ambas administradas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação Ambiental (ICMBio), o Inea teve de replicar na LP aprovada em março de 2008 as condicionantes impostas à Petrobras pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por meio da Autorização Ibama nº 01/2008.
O Ibama continua insistindo na tese de que licenças de operação só podem ser concedidas após o cumprimento das condicionantes estabelecidas na LP e na LI, como prescreve a legislação ambiental vigente no Brasil. Para superar o imbróglio, propõe a negociação de um acordo em torno do cumprimento dessas três condicionantes mediado pelo Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania Ambiental (Cejusc-Ambiental) do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2). Participariam do acordo Petrobras, Ibama, ICMBio, Ministério Público Federal (MPF) e Estadual (MPRJ), Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade (Seas-RJ), Inea e Prefeitura de Guapimirim.
Promessa de apoio
Para viabilizar a zona tampão, a prefeitura de Guapimirim, no leste fluminense, criou em janeiro de 2013 o Parque Natural Municipal Águas de Guapimirim (Parque Águas) a pedido do governo estadual, que se comprometeu a apoiá-la financeira e tecnicamente na implantação e manutenção da nova unidade de conservação (UC) conjuntamente com a Petrobras. O parque permanece no papel mais de dez anos após ser estabelecido pelo Decreto Municipal nº 972/2013.
De acordo com a condicionante 30.2 da LP do Comperj, a Petrobras só poderia pleitear a licença de operação para seu megaempreendimento, localizado em Itaboraí, no leste fluminense, após incorporar (comprar), restaurar e promover a manutenção de um polígono de 2.525 hectares (zona tampão) entre o Gaslub e a Área de Proteção Ambiental (APA) Guapi-Mirim. Há diversas opções para a empresa implantar a zona tampão. Poderia criá-la como uma área privada, uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), ou mesmo reflorestá-la e doá-la ao poder público. Nesta segunda opção, a estatal somente manteria a responsabilidade de cuidar de sua manutenção, como prevê as condicionantes 30.2 da LP FE0139990/2008 e 35 averbada em 20 de março de 2012 na LI IN001540/2009.
Sabidamente insuficiente para cobrir os custos totais de desapropriação da área de 2.525 hectares do parque, sua restauração e manutenção, o valor do apoio financeiro da Petrobras foi estabelecido em R$ 4 milhões no Termo de Compromisso (TC) nº LI IN 001540.3501/2013 (TC do Parque Águas), assinado entre Inea e empresa em 4 dezembro de 2013. O recurso deveria cobrir o custeio das seguintes ações, segundo o TC: delimitação e sinalização dos limites da UC; elaboração do plano de manejo; implementação de ações indicadas no plano de manejo, prioritariamente o plantio de espécies nativas da Mata Atlântica da região em que o parque se encontra situado; e administração da UC.
Dessas ações, apenas houve progresso na elaboração do plano de manejo. A Detzel Consultores Associados foi contratada em janeiro último para elaborá-lo, tendo um ano para finalizar o trabalho, conforme informou ((o))eco na reportagem “Impasse ambiental e fundiário pode travar licença de operação de unidade de gás da Petrobras no RJ”, publicada em 25 de março passado. No valor de R$ 429.692,81, o contrato foi assinado com o Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio), que administra a conta bancária do Fundo da Mata Atlântica (FMA-RJ) que recebeu o recurso da Petrobras.
Omissões
Além de ter transferido ao erário público a maior parte dos gastos com implantação, restauração e licenciamento, o TC Parque das Águas apresenta lacunas importantes, como as seguintes:
- Os critérios técnico-financeiros para a definição do valor de R$ 4 milhões não foram informados no TC;
- O documento não menciona que tipo de apoio técnico a Petrobras proporcionaria à UC;
- Não foi incluída a necessidade de regularização fundiária do terreno, ação primordial para que as demais atividades sejam implementadas – infraestrutura física, contratação de funcionários, aquisição de materiais de consumo etc.;
- Não há no termo previsão orçamentária para despesas com regularização fundiária, implantação de infraestrutura, restauração florestal, ecoturismo, educação ambiental, recursos humanos e custeio;
- O Parque Natural Municipal Águas de Guapimirim foi criado com área de 1.830 hectares, quase 700 hectares a menos que a prevista no Decreto Estadual 43.030/2011, que aumentou de 2.308 hectares para 2.525 hectares a área da zona tampão entre Comperj e APA Guapi-Mirim. Da área total prevista no decreto estadual, deveriam ser restaurados 2.308 hectares, ficando os 217 hectares restantes para a implantação de infraestrutura. A estimativa de gasto com desapropriação feita pelo Inea considerou a área de 1.830 hectares.
Os R$ 4 milhões foram depositados pela Petrobras empresa no FMA-RJ em quatro parcelas entre 2014 e agosto de 2015, quando a Petrobras solicitou ao Inea a quitação definitiva do TC de 2013. A quitação é necessária para que a companhia ateste o cumprimento das condicionantes 30.2 da LP FE013990/2008 e 35 da LI IN001540/2009, etapa necessária para uma empresa conseguir a licença de operação (LO) para seu empreendimento.
Até hoje, entretanto, o Inea não emitiu a certidão ambiental que oficializaria a quitação definitiva do TC. No terreno das especulações, pode-se levantar a hipótese de que o Inea tenha sido aconselhado por sua área jurídica a aguardar a solução do impasse fundiário em torno do parque antes de emitir a certidão ambiental requerida pela empresa.
“Há uma divergência quanto à questão da quitação das condicionantes. Existe quem defenda que, na monetização da obrigação, o depósito total do valor configura o seu cumprimento. No entanto, essa regra é válida quando se trata da compensação ambiental do Snuc, não se aplicando no caso das medidas mitigadoras. Nessa hipótese de mitigação dos impactos ambientais negativos do empreendimento sobre duas UCs federais, a mera quitação do valor não quita a obrigação. Esse é o posicionamento do Ibama no caso em questão”, diz Rogério Rocco, superintendente do Ibama no Rio de Janeiro. A compensação ambiental é prevista no artigo 36 da Lei nº 9.985/2000, que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc).
A ausência de quitação do TC é informada no parecer técnico do Inea que concluiu pela concessão da licença de operação e recuperação (LOR) para a operação de utilidades da refinaria de processamento de gás natural (UPGN) do Gaslub (novo nome do Comperj). Emitido em 18 de março passado, o parecer não atesta o cumprimento das condicionantes 30.1 e 30.2 da LP FE013990/2008 nem da 35 da LI IN001540. Apenas confirma o depósito de R$ 4 milhões efetuado pela Petrobras no FMA-RJ, conforme definido no TC Parque das Águas.
Pouca transparência no caso Comperj
A pouca transparência da Seas-RJ, do Inea e do Petrobras é um dos obstáculos mais desafiantes no acompanhamento pela imprensa e pela sociedade civil do cumprimento das condicionantes do licenciamento e das obrigações previstas nos dois TACs do Conperj. A reportagem enviou um conjunto de questões a respeito da modificação efetuada na condicionante 30.2 da LP do Comperj e do Termo de Compromisso Parque das Águas para Seas-RJ, Petrobras e MPRJ. A Seas-RJ não respondeu aos e-mails enviados, enquanto Petrobras e MPRJ preferiram enviar breves notas genéricas, sem esclarecer as dúvidas específicas das perguntas remetidas. Clique aqui para conhecer as questões enviadas às três organizações.
A Petrobras reiterou que “todas as condicionantes do licenciamento e obrigações foram executadas e que os monitoramentos e medidas de proteção ambiental permanecem sendo realizados a fim de prevenir e mitigar os impactos ao meio ambiente da região”. Também informou que “cumpriu os compromissos assumidos no âmbito dos referidos ajustamentos de conduta (TAC), celebrados com o MPRJ e INEA-RJ, conforme os respectivos prazos pactuados nos dois termos”.
Segundo a empresa, a licença de operação (LO) da unidade de processamento de gás natural (UPGN) no Polo Gaslub foi solicitada ao Inea em abril de 2021. A previsão é de que o Projeto Integrado Rota 3 (PIR3) entre em operação em agosto, após a conclusão das obras da UPGN, que receberá gás da bacia de Santos pelo gasoduto Rota 3, que já foi concluído.
O promotor Tiago Veras, titular da 2ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Itaboraí, disse que os TACs 1 e 2 do Comperj foram firmados com base nas provas que instruíram as ações civis públicas (ACPs) iniciais, nas informações técnicas do Grupo de Apoio Técnico Especializado (Gate/MPRJ) e nas considerações que antecedem as cláusulas de ambos os acordos. “Eventuais colegitimados (para ações civis públicas) e ou autores populares (para ações populares) poderiam (ou ainda podem) deduzir em juízo suas eventuais pretensões”, informou Veras.
“Quanto às demais perguntas, ressalta-se que os PAs 162/2019 e 172/2019 ainda estão em curso. Tão logo a Promotoria forme seu juízo de valor e decida sobre as matérias de sua atribuição, as promoções e decisões estarão publicizadas para os interessados por meio do site da Rede Ambiente Participativo (RAP) ou mediante solicitação ao MPRJ”, conclui a nota. O MPRJ instaurou 126 procedimentos administrativos (PAs) para apurar o cumprimento das obrigações estabelecidas nos dois TACs do Comperj.
TAC não tratou de modificação
O Termo de Ajustamento de Conduta 1 (TAC 1) do Comperj, firmado em agosto de 2019, não menciona a modificação feita pela Ceca na redação da condicionante 30.2 da LP FE013990 ao incluir a condicionante 35 na LI IN001540/2009 por meio da averbação (AVB) 1474. A alteração havia sido severamente criticada pelo promotor Tiago Veras numa das ações civis públicas (ACPs) que ele moveu contra a Petrobras, a Seas-RJ e o Inea, a ACP 0009919-12.2018.819.0023, que serviu de escopo para o TAC 1 do Comperj.
No que concerne ao cumprimento da condicionante 30.2 da LP de 2008, o TAC 1 resumiu-se a cobrar da Seas-RJ e do Inea os comprovantes do pagamento de R$ 4 milhões pela Petrobras, estipulado pelo TC firmado com o Inea em dezembro de 2013, e um relato sobre as ações que estariam implementando para implantar o Parque Águas.
O enfraquecimento da condicionante que obrigava a Petrobras a implantar o Parque Águas, também não tem sido abordado nas reuniões mantidas pelo MPRJ com Seas-RJ, Inea, ICMBio, Ibama, MPF e Prefeitura de Guapimirim para discutir o estabelecimento de um novo TAC. O acordo teria a finalidade específica de tentar solucionar o impasse fundiário do parque. Entretanto, a Petrobras não tem sido chamada para os encontros, conforme mostram as atas das reuniões publicadas no site da Rede Ambiente Participativo (RAP), do MPRJ.