O Ministério Público Federal (MPF) divulgou nesta quarta-feira (14) os dados do segundo ciclo unificado de auditorias na cadeia da pecuária na Amazônia Legal. Os resultados mostram avanço na transparência de frigoríficos signatários do acordo da carne na Amazônia, mas vários gargalos permanecem, como falta de controle da cadeia de fornecedores indiretos.
No total, o MPF convidou 102 frigoríficos instalados na Amazônia para realizar auditorias, no âmbito do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da Carne Legal. Destes, 63 empresas são signatárias do Acordo.
Neste ciclo, foram analisadas as operações realizadas entre janeiro e dezembro de 2022. Ao contrário do ciclo anterior, nesta rodada, os seis estados participantes – Amazonas, Acre, Mato Grosso, Pará, Rondônia e Tocantins – abriram seus dados para análise. Os demais estados da Amazônia não possuem volume significativo de gado e não integram as análises do Ministério Público.
Do total de frigoríficos convidados (102), 39 realizaram auditorias próprias, por meio de empresas contratadas. Entre eles, o nível de irregularidades – gado proveniente de área com desmatamento ilegal, unidades de conservação, Terras Indígenas ou propriedades flagradas com trabalho análogo à escravidão – não ultrapassou 4%.
Para os frigoríficos que não fizeram suas próprias auditorias, o MPF realizou uma auditoria automática, revelando 52% de irregularidades. A diferença entre os números, segundo o Ministério Público, deve-se à possibilidade de as empresas que realizaram suas próprias auditorias justificarem as inconformidades. Um gado que estava em área de desmatamento, mas este desmatamento foi autorizado, por exemplo.
Além disso, os frigoríficos que se dispõem a realizar as auditorias – geralmente grandes empresas, que representam o maior volume de transações – têm apresentado uma melhoria contínua em seus processos de transparência, defende o MPF.
“Dentro daqueles que foram auditados [por empresas independentes] nós vemos um contínuo processo de melhora. […] Entendemos também que é necessário expor os dados que encontramos das empresas que passaram por auditorias automáticas para provocá-las, para que, nas próximas oportunidades, elas contratem a auditoria e apresentem suas justificativas”, disse o Procurador da República Ricardo Negrini, um dos responsáveis pela execução do TAC da Carne.

Pará e Mato Grosso
Os estados de Mato Grosso e Pará ocupam o ranking nacional de maiores produtores de gado do país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Mato Grosso possuía em 2023 – data do último levantamento, 34 milhões de cabeças, enquanto o Pará possuía 25 milhões de cabeças de gado naquele ano.
No Pará, as auditorias do TAC da Carne são realizadas desde 2009 e o estado está em seu 6º ciclo. Em solo paraense, 56 frigoríficos foram convocados a contratarem auditorias, sendo que 15 concluíram este processo, além de um frigorífico que não foi convocado, mas contratou empresa auditora.
Somados, eles representam 81% do volume estadual, ou 2,3 milhões de animais, de um total de 2,8 milhões comercializados para abate ou exportação pelo estado.
O índice médio de conformidade entre os frigoríficos paraenses que fizeram suas auditorias foi de 91,7%. De outra forma, é possível dizer que estas empresas apresentaram 8,24% de operações irregulares.
Entre os frigoríficos instalados no Pará, os maiores são JBS, Mercúrio e Frigol. Juntos, eles comercializam 1,3 milhão de cabeças de gado no período analisado, de um total de 2,3 milhões transações no estado.
Segundo a análise do MPF, a conformidade chegou a 97% das operações da JBS, 99,9% da Mercúrio e 100% da Frigol. Agroexport, Mafrinorte, Masterboi e Minerva também apresentaram 100% de conformidade.
Já nas análises automáticas – aquelas feitas à revelia do frigorífico, por sistema automatizado do MPF – as irregularidades chegaram a 58,3% das transações. Esta discrepância nos números, no entanto, não é motivo de preocupação, dizem os procuradores do MPF.
“Em princípio, não temos nenhum motivo para suspeitar de nenhum tipo de fraude ou erro em relação aos dados apresentados [nas auditorias independentes]. Mas sempre que a gente tem dúvida, que a gente percebe que pode haver alguma inconsistência ou necessidade de reanálise, nós temos condições de fazer essa reanálise”, explicou o Procurador da República no Amazonas e coordenador do GT Amazônia Legal, Rafael Rocha.
Em Mato Grosso, de 14 frigoríficos convocados, nove concluíram o processo de auditoria, representando 82% do volume de abate/exportação no estado. O índice médio de conformidade dos animais auditados foi de 97,8%, sendo que as empresas Marfrig, Minerva e Vale Grande alcançaram 100% de conformidade.
Para aquelas empresas que não apresentaram auditoria e passaram pela análise automática do MPF, o índice de inconformidade chegou a 38%.
Fornecedores indiretos
Os fornecedores indiretos continuam a ser um problema para a sustentabilidade da cadeia da carne na Amazônia. O TAC da Carne tem 16 anos e só neste último ciclo é que o MPF começou a olhar para eles.
Em análise ainda piloto, o MPF identificou que entre os frigoríficos signatários do TAC, o nível de conformidade entre os fornecedores indiretos de nível 1 – o último elo até o fornecedor direto – foi de apenas 38%.
Isto é, 62% dos fornecedores indiretos apresentam ou podem apresentar irregularidades. Destes, 27% registraram “potencial não-conformidade” e 35% não possuiam correspondência com o Cadastro Ambiental Rural, não sendo possível, portanto, avaliar se estavam irregulares ou não.
Somente no Pará – estado que se comprometeu a rastrear todo seu gado até 2026 e onde as auditorias estão mais avançadas – ao menos 6,1 milhões de cabeças comercializadas por fornecedores indiretos de frigoríficos que assinaram o TAC possuiam “potencial de não-conformidade”.
Em dezembro de 2024 o Governo Federal lançou o Plano Nacional de Rastreabilidade na Pecuária, que prevê a identificação individual obrigatória de todos os bovinos e bubalinos em solo nacional. Ele deve estar totalmente em operação somente em 2032 e o foco é apenas sanitário.

Triangulação
Apesar do aumento na conformidade dos frigoríficos auditados, especialistas apontam gargalos importantes.
Lisandro Inakake, engenheiro agrônomo e coordenador sênior do Programa Boi na Linha, do Imaflora, ressalta que o que houve foi um aumento na transparência e comunicação dos frigoríficos e que este processo ainda não se reflete na diminuição do desmatamento.
“Mesmo que a gente tenha resultados bastante significativos em redução do desmatamento [nos últimos dois anos], o desmatamento ainda acontece e não conseguimos fazer essa correlação entre aumento de conformidade e redução de desmatamento”, disse, em entrevista a ((o))eco.
Ele também ressalta que a cadeia da carne tem encontrado mecanismos para “burlar” o controle mais rígido, como o vazamento de gado – quando uma propriedade irregular passa o gado para a fazenda regular vender pro frigorífico, também chamada de “triangulação”.
Thais Bannwart, porta-voz do Greenpeace Brasil, também cita este problema da cadeia. “O gado contaminado com desmatamento continua sendo facilmente comercializado, e para isso deixar de ocorrer, é preciso colocar em prática o controle de toda a cadeia bovina nos frigoríficos. Apesar dos avanços neste ciclo de auditorias unificado, vale lembrar que os maiores frigoríficos se comprometeram a zerar o desmatamento (direto e indireto) de sua cadeia até 2011. Estamos em 2025 e não vemos um avanço robusto neste sentido”.
Além disso, ela ressalta que muitos frigoríficos ainda não apresentaram auditoria, prejudicando a análise mais completa do setor. Bannwart também ressalta o fato de que as auditorias são feitas por amostragem, na qual apenas uma parcela do gado é verificado, e os fornecedores indiretos, que ficaram novamente de fora.
“Em ano de COP na Amazônia, o Greenpeace aponta que os governos devem regular urgentemente os setores agropecuário e financeiro para garantir seu alinhamento com o Acordo de Paris, o Marco Global da Biodiversidade e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, assegurando a transição para sistemas alimentares verdadeiramente sustentáveis e justos, o fim do desmatamento e a redução das emissões associadas à agropecuária, incluindo o metano”, finaliza.