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Até os primeiros parques nacionais estão contaminados por agrotóxicos

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Até os primeiros parques nacionais estão contaminados por agrotóxicos

Um estudo científico revela que até unidades de conservação da natureza do Brasil estão contaminadas por agrotóxicos. Reduzir e controlar o uso desses venenos é urgente, dizem pesquisadores. Contudo, regras protetoras seguem sob ataque no país.

Espalhados em municípios fluminenses e mineiros, Itatiaia e Serra dos Órgãos estão no pódio dos primeiros parques nacionais no Brasil. Foram criados nos anos 1930 para defender florestas, águas e vida selvagem da Mata Atlântica.

Suas trilhas, montanhas, cachoeiras e outros cenários inigualáveis atraíram quase 360 mil brasileiros e estrangeiros, só ano passado. Os números são de quem responde pelas unidades federais de conservação da natureza, o ICMBio. 

Contudo, até essa pujança natural e turística foi envenenada. Não fossem cientistas do Brasil e outros países, isso seguiria no escuro. Seu estudo publicado na revista Environmental Pollution mostra que lagos e sedimentos de alagados naqueles parques estão poluídos por 17 tipos de agrotóxicos. 

“É uma diversidade muito grande de substâncias. Isso é o mais assustador”, ressalta o doutor em Biofísica Cláudio Taveira Parente, um dos autores do artigo e responsável pelo Laboratório de Estudos Ambientais Olaf Malm, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

Grande parte dos agrotóxicos registrados está globalmente banida pelos riscos às pessoas e natureza, mas outros seguem ativos no Brasil. A lista tem herbicidas, inseticidas, fungicidas e acaricidas usados em lavouras como de algodão, soja, milho, tomate, feijão, cana-de-açúcar, laranja, maçã e limão. 

As maiores concentrações de químicos verificadas nos dois parques nacionais foram dos venenos clorpirifós, disulfoton, diuron, carbaril e carbendazim. Esse último está nacionalmente vetado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), desde 2022. 

“Usamos venenos proibidos em países que inclusive importam nossas commodities”, lembra o doutor em Ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Lucas Ferrante de Faria, que há mais de 15 anos estuda impactos do agro sobre pessoas e biodiversidade.

Amanhecer no Hercules
Ao fundo, o pico “Dedo de Deus” sob o amanhecer na Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro. Foto: Carlos Perez Couto / Creative Commons

O artigo de cientistas do Brasil, República Checa e Chile mostra que as quantidades de agrotóxicos verificadas nos parques nacionais oferecem riscos às pessoas e à biodiversidade.

“A vida aquática é a mais ameaçada porque as substâncias persistem nos ambientes”, alerta Cláudio Parente (UFRJ). “Plantas e animais desses lagos e alagados alimentam outras espécies”, recorda. Isso poderia ampliar a contaminação através da cadeia alimentar.

Mas, pessoas e espécies selvagens podem sofrer efeitos similares pelo contato com agrotóxicos, como aborto e má formação de fetos, mutações e anomalias genéticas, câncer e doenças degenerativas como Mal de Parkinson, diz Lucas Ferrante (USP/UFAM).

“Também podem ocorrer extinções locais de fauna, flora e de polinizadores como abelhas, importantes para produzir frutas como melão, melancia e maracujá”, pontua. “O próprio agro é afetado por seus agrotóxicos”, avalia o pesquisador.

Os parques nacionais de Itatiaia e da Serra dos Órgãos foram criados respectivamente em junho de 1937 e novembro de 1939. Entre essas datas, foi decretado o Parque Nacional do Iguaçu, em janeiro de 1939. Eles foram os três primeiros parques nacionais do país.

O estudo Occurrence of current-use pesticides in sediment cores from lakes and peatlands in pristine mountain areas of Brazilian national parks é a tese de doutorado da pesquisadora Patrícia César Gonçalves Pereira junto à UFRJ.

O trabalho mostra igualmente que agrotóxicos já contaminaram ao menos parques nacionais como Yosemite, Sequoia, Glaciar, Montanhas Rochosas, nos Estados Unidos, e Kibale, em Uganda (África).

Venenos viajantes

Características geográficas e climáticas, como maiores altitudes e menores temperaturas médias anuais, concentram agrotóxicos e outros poluentes em áreas teoricamente isoladas como os parques de Itatiaia e da Serra dos Órgãos.

“Há uma tendência de que regiões montanhosas como essas sirvam como armadilhas, como anteparos naturais, para essas substâncias”, detalha Cláudio Parente (UFRJ). “É esperado que isso ocorra em outras unidades de conservação no país”, avisa.

Apesar disso, é quase impossível cravar de onde vieram os venenos que se depositam e ameaçam regiões e espécies que deveriam estar protegidas de impactos do agronegócio. Todavia, alguns fios podem ser puxados.

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Protesto em frente ao Congresso Nacional contra a possível liberação de mais substâncias tóxicas no país, inclusive cancerígenas. Foto: Otávio Almeida / Greenpeace

Dados do MapBiomas mostram o plantio crescente e com agrotóxicos de soja, café, pastos e silvicultura nos municípios onde estão os dois parques nacionais – Itatiaia, Resende, Teresópolis, Petrópolis, Magé e Guapimirim, no Rio de Janeiro, Bocaina de Minas e Itamonte, em Minas Gerais. 

Contudo, a contaminação pode vir de bem mais longe. O estudo veiculado na revista Environmental Pollution conta que a ventania pode espalhar substâncias como o clorpirifós por mais de 400 quilômetros desde onde foram aplicadas. 

Como se isso já não deixasse cabelos em pé, uma investigação da da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) apontou agrotóxicos até na água da chuva, no caso sobre as cidades de São Paulo, Brotas e Campinas.

As análises indicam que a proporção de químicos tem ligação direta com a extensão das lavouras, que ocupam quase metade dos 795 km2 do município de Campinas, 30% dos 1.101 km2 de Brotas e 7% dos 1.521 km2 da capital. 

“A volta das chuvas após longos períodos de seca ‘lava a atmosfera’ e tende a ter uma alta concentração de poluentes”, avalia Cláudio Parente, doutor em Biofísica pela UFRJ.

Ele integra um grupo que há mais de uma década investiga a poluição química em unidades de conservação da natureza, sobretudo em regiões de altitude mais elevada. 

Por exemplo, seus estudos encontraram hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HPAs) nos parques nacionais de São Joaquim (SC) e de Itatiaia (RJ). Eles podem vir da fumaça de queimadas, cigarros ou derivados de petróleo, prejudicando a saúde humana e animal, reconhece o governo.

Esforços científicos como esses reforçam a urgência de se reduzir o uso de agrotóxicos e de ampliar o de outras substâncias, como orgânicas, biodegradáveis ou menos persistentes. Um desafio e tanto frente à realidade brasileira.

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O Parna do Itatiaia (RJ/MG) e seus cenários estão ameaçados pela contaminação do agronegócio. Foto: Gilcimar Soares Liberato / Creative Commons

Atraso acelerado

O estudo na Environmental Pollution lembra que o Brasil é o maior mercado mundial de agrotóxicos desde 2011. Nosso consumo anual passou das 700 mil toneladas, que encheriam ao menos 280 piscinas olímpicas. Isso supera em mais de 260 mil toneladas o segundo colocado, os Estados Unidos.

Além do uso de volumes bíblicos de venenos, o afrouxamento de regras protetoras aumenta as chances de sérios prejuízos ambientais e humanos. Exemplo recente vem de um dos maiores palcos nacionais do agronegócio, o estado do Mato Grosso.

Dando de ombros a alertas científicos e de ongs, sua Assembleia Legislativa aprovou a aplicação de agrotóxicos até junto a áreas habitadas e fontes de água, no caso de pequenos imóveis. Para médias e grandes fazendas, a distância vai de 25 metros a 90 metros, dizem entidades civis.

Antes, o mínimo para uso de venenos em imóveis rurais era de 150 metros a 300 metros de povoações, cidades, vilas, bairros e áreas de captação hídrica. Para ruralistas, isso prejudicava a economia e a população pelo descontrole de pragas agrícolas.

“As distâncias anteriores já eram insuficientes para defender águas, natureza e pessoas”, diz Lucas Ferrante de Faria, pesquisador nas universidades de São Paulo (USP) e Federal do Amazonas (UFAM). “Agora teremos aplicações ainda mais perto até de escolas”, alerta.

O estado do Mato Grosso é o líder nacional em uso de agrotóxicos, com 170 milhões de litros consumidos só em 2023.

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Venenos agrícolas poderão ser aplicados praticamente junto a áreas com vegetação nativa e populações rurais, tradicionais e indígenas. Foto: Adriano Gambarini / Opan

Aprovado em regime de urgência e com apenas três votos contrários, dos deputados Wilson Santos (PSD), Lúdio Cabral (PL) e Valdir Barranco (PL), a lei será contestada, mesmo que tenha sanção do governador Mauro Mendes (União Brasil).

Para a consultora jurídica do Observatório Ambiental do Mato Grosso (Observa/MT), Edilene Amaral, foi uma nova demonstração de que a produção rural a qualquer custo prevalece sobre direitos humanos e ambientais. “Será um desastre”, projeta.

Por isso, entidades civis e pesquisadores prometem acionar o Ministério Público e o Judiciário buscando reverter o que consideram já um dos maiores retrocessos legais deste ano. 

“Caso o governador não vete o aprovado, ele e a Assembleia serão responsáveis pelo envenenamento da população, inclusive de quem o elegeu”, diz Lucas Ferrante (USP/UFAM). Além disso, o cientista projetou prejuízos econômicos ao estado. 

“A comunidade internacional precisará rever suas importações do Mato Grosso, pois não será possível as descolar da violação de direitos ambientais, de populações tradicionais e indígenas”, alerta. “O agro não é pop, o agro não poupa ninguém”, conclui Ferrante.

Afrouxar regras para importar, produzir e usar agrotóxicos é uma pauta permanente de ruralistas e aliados no Congresso Nacional e nas assembleias estaduais. Além disso, só em janeiro foram liberados 44 novos tipos de venenos químicos no Brasil, inclusive vetados em outros países.