REPORTAGEM
BR-319, a estrada da discórdia na Amazônia
Pavimentação da rodovia expõe queda de braço dentro do próprio governo, que avança aos poucos com obras entre Porto Velho (RO) e Manaus (AM), a despeito do caos ambiental na região
Por André Borges
Ilustração de Gabriela Güllich
O governo federal está com uma estrada atravessada na garganta. O plano de retomar a pavimentação da BR-319, rodovia de 877 quilômetros que já ligou as capitais de Porto Velho (RO) e Manaus (AM) e que hoje se resume a um caminho esburacado e engolido pela mata, expõe a dualidade e a falta de consenso sobre o que fazer com uma das áreas mais sensíveis de toda a Amazônia.
Em tempo de recordes de queimadas e eventos climáticos extremos impulsionados pela queda da floresta, o projeto transformou a BR-319 na estrada da discórdia, opondo alas do próprio governo. Neste jogo de força, a tendência é que a corda estoure, mais uma vez, do lado mais fraco: o meio ambiente. As resistências, porém, não dão trégua.
O Comitê Gestor do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) acaba de incluir, nas prioridades do pacote, a pavimentação de um trecho de 52 km da rodovia, em território amazonense. Em setembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu seu veredito. Sem meias palavras, Lula disse que quer a estrada de volta e que isso não é mais uma hipótese. “Vamos preparar o Estado, para que a gente possa entregar, definitivamente, a ligação entre Manaus e Porto Velho” disse Lula, mandando um recado claro para dentro e para fora do governo: “É preciso parar com essa história de achar que a companheira Marina [Silva, ministra do Meio Ambiente] não quer construir a BR-319.”
Não se trata de “história”. Nos últimos anos, a BR-319 se tornou o bode na sala do Palácio do Planalto. Marina Silva tem posicionamento contrário à pavimentação da estrada. Pressionada por todos os lados, a ministra tenta adotar uma postura de cautela para segurar o projeto. Sem esticar a corda ao extremo, Marina defende a necessidade de se ter um “estudo baseado em dados e evidências científicas”, mas não para liberar a reconstrução da rodovia, e sim para “ter uma resposta definitiva” sobre sua viabilidade ou não. É algo bem diferente do que propõe Lula, o Ministério dos Transportes e o Ministério da Agricultura.
O impasse remonta a décadas. Construída entre 1968 e 1973, a BR-319 faz parte das investidas militares que rasgaram a Amazônia durante os anos que ficariam conhecidos como “milagre econômico”. A ligação das capitais de Rondônia e Amazonas se somava a outras vias que prometiam a “integração nacional”, como a Transamazônica (BR-230), que atravessou o país de leste a oeste, restando inacabada, e a Cuiabá-Santarém (BR-163), que partiu do Mato Grosso rumo ao Norte do país, chegando ao Pará.
Em seus primeiros anos de operação, a BR-319 chegou a ser plenamente transitável, com viagens regulares de carros e linhas de ônibus entre Porto Velho e Manaus. Nos anos seguintes, porém, a rodovia entraria em um crescente processo de abandono e, já em meados de 1988, apenas 15 anos após sua conclusão, estava completamente inviável, tomada pela vegetação que avançou sobre o asfalto.
Diversas tentativas ocorreram, com o propósito de reabrir a via, mas nenhuma avançou, devido à resistência ambiental e ao temor de que a BR-319 repetisse o cenário de devastação e invasões que tomou conta das demais estradas abertas pelos militares.
Entre os ambientalistas, o entendimento é o de que a estrada teve o desfecho necessário. “A reconstrução e asfaltamento do trecho do meio da BR 319 é um empreendimento que, hoje, não tem viabilidade socioambiental. Levará a uma explosão do desmatamento numa região que é marcada pela ausência do Estado. Sem garantia de governança regional, não há como licenciar esta obra”, diz Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima.
A especialista lembra que o próprio Ibama, órgão que ela já comandou, mostra em pareceres constantes no processo de licenciamento os sérios problemas que ela pode causar. “A licença prévia concedida pelo governo Bolsonaro é nula. Atestou a viabilidade de um empreendimento inviável no contexto atual. A liminar concedida pela Justiça Federal suspendendo a LP é correta e juridicamente robusta”, afirma Araújo.
O fim do asfalto acabou estancando ações humanas em uma área sensível da floresta e evitou que a BR-319 repetisse o que hoje se vê ao longo de boa parte das estradas federais abertas nos anos 1970, obras que impulsionaram o desmatamento ilegal, a grilagem de terras e o garimpo, em meio à completa falta de estrutura e presença do poder público para fiscalizar e coibir os crimes.
Políticos locais e membros do governo afirmam, porém, que se trata de uma dívida social e que a população de Manaus e região está isolada do país, dependendo de um barco ou avião para deixar a capital do Amazonas.
Hoje, os primeiros 200 km da rodovia, a partir de Porto Velho, possui asfalto em boas condições, até chegar a Humaitá (AM). Do outro lado da rodovia, a partir de Manaus, há outros 250 km em boas condições. O cenário muda completamente, porém, no chamado “trecho do meio”, (do km 250 ao km 656), que corta uma das áreas mais conservadas da região amazônica.
A retomada da rodovia sempre esteve nos planos de Lula, uma promessa que já tinha feito em seu segundo mandato, entre 2007 e 2010, dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), mas que não conseguiu cumprir. Dessa vez, porém, o núcleo do governo parece empenhado em concretizar a missão, nem que para isso dê andamento a ações polêmicas tomadas pela gestão de Jair Bolsonaro, marcada pelo esvaziamento do Ibama e da proteção ambiental.
Em julho, o Observatório do Clima, uma coalizão de organizações da sociedade civil, conseguiu uma liminar na Justiça para suspender a licença prévia ambiental que o Ibama havia concedido para avançar com a retomada das obras no trecho central da rodovia. A autorização foi emitida em julho de 2022, nos últimos meses da gestão Bolsonaro, quando o Ibama era comandado por Eduardo Bim, sob a batuta do então ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite.
Na semana passada, o desembargador Flávio Jardim, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), derrubou a decisão liminar, sob a justificativa de que a rodovia se tornou “uma verdadeira estrada de barro, que permanece em atividade e que demanda urgente revitalização, sob pena de manutenção do isolamento das populações que vivem nas regiões”.
Os dados colhidos pelo Observatório do Clima comprovam que a troca de governo promoveu uma guinada na gestão ambiental e nos índices de desmatamento do país. O posicionamento oficial do Ibama em relação à BR-319, no entanto, segue o mesmo da gestão Bolsonaro.
Hoje, mesmo debaixo do guarda-chuva de Marina Silva, o Ibama, comandado por Rodrigo Agostinho, atua para defender o licenciamento da obra, rejeitando os argumentos de organizações civis e os próprios apontamentos já feitos pelo instituto, cobrando a revalidação da licença prévia que foi emitida em 2022.
Alertas e compromissos ignorados
Nos últimos anos, o próprio Ibama alertou, em pareceres e vistorias, sobre os riscos de explosão do desmatamento na região, caso a pavimentação da BR-319 avançasse. Na Amazônia, a história mostra que a exploração predatória e gradual a partir da abertura de estradas é uma escola.
Após a abertura da rodovia, cresce a procura por terras, estimulando a grilagem. A fase seguinte é marcada pela construção de ramais e estradas particulares, abrindo “espinhas de peixe” ao longo da faixa central. Depois da retirada ilegal da madeira nobre, ocorre o plantio de mato para formação de pastagens e entrada do gado. O ciclo se fecha, com a busca de anistia para as invasões ilegais. É assim. Sempre foi.
“O ecossistema envolvido é frágil. Qualquer fator de indução à ação humana na região seria um estopim para a destruição da floresta. O direito de ir e vir não está sendo obstruído. O que está em jogo é a avaliação da proteção ambiental da área, onde facilidades de acesso levariam a enormes prejuízos ambientais”, diz o presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), Carlos Bocuhy.
No caso da BR-319, o cenário se agrava porque, com ou sem licença, a rodovia já tem sido alvo de intervenções e invasões. Nos últimos anos, denúncias do Ministério Público Federal deram conta do avanço das obras de pavimentação na região, ainda sem expedição de licença ambiental. Grupos interministeriais foram criados para buscar uma solução sobre a obra. Em 2009, o Ibama chegou a concluir que o processo de licenciamento só poderia avançar se, antes de qualquer pá de piche ser lançada no chão, fosse implantado um conjunto de ações e políticas públicas de controle, monitoramento e fiscalização para o combate ao desmatamento, além da criação de unidades de conservação para contenção de atividades ilegais, ordenamento territorial e fundiário, com restrições à ocupação irregular e grilagem de terras.
Os dados sobre o desmatamento da região, porém, revelam a ausência de qualquer controle efetivo. Entre 2008 e 2014, a área de uso e ocupação no trecho do meio chegava a 10.228 hectares. Em 2015 e 2016, porém, houve o incremento de ocupação em mais 3.716 hectares. As taxas só aumentaram, chegando ao desmatamento total de 25.595 hectares até 2021.
A despeito desse cenário, em 2022 o Ibama decidiu emitir a licença prévia da obra, transformando ações prévias de controle ambiental em medidas a serem tomadas durante o andamento do próprio projeto. Na prática, abriu-se o caminho para a pavimentação, sem se ter a garantia de que algo será feito, efetivamente.
“Diante da constatação de que a sua implementação não estava ao alcance do empreendedor (Dnit), tais medidas foram simplesmente suprimidas, como se o instrumento de licenciamento se prestasse apenas a mitigar os danos ambientais evitáveis e controláveis pelo empreendedor e não a avaliar se um empreendimento deve mesmo ser implantado a qualquer custo – no caso, às custas de danos ambientais graves e irreparáveis”, afirma o Observatório do Clima, em sua ação judicial. “A bem da verdade, o Ibama deu um cheque em branco ao empreendimento, mesmo reconhecendo a ausência de governança ambiental para conter os impactos e danos ambientais relacionados ao desmatamento e à grilagem de terras.”
Fogo e fumaça na região da BR 319 no município de Humaitá, Amazonas, em Setembro de 2024.
Foto: Bruno Kelly / Folhapress / REUTERS
Impactos irreversíveis
Na ação que moveu para pedir a nulidade da licença prévia emitida pelo Ibama, o Observatório do Clima reuniu uma série de informações sobre impactos já ocorridos no entorno da BR-319, após o anúncio da pretensão de pavimentar o trecho do meio, além de projeções sobre o crescimento do desmatamento, a partir do histórico já acumulado em estradas semelhantes.
A mera expectativa de pavimentação da BR-319, anunciada pelo governo Bolsonaro, aumentou em 122% o desmatamento no entorno da rodovia, entre 2020 e 2022. Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) calculam que a pavimentação da BR-319 poderia quadruplicar o desmatamento na Amazônia, ao longo das próximas três décadas.
A projeção é de que 40 unidades de conservação, 6 milhões de hectares de terras públicas e 50 terras indígenas estariam vulneráveis pelo empreendimento. Simulações apontam que a pavimentação da estrada, até o ano de 2050, poderia resultar no desmatamento acumulado de 170 mil quilômetros quadrados, quatro vezes acima do que está projetado com a média histórica da região.
As emissões acumuladas de CO2 também mais que quadruplicaram, alcançando 8 bilhões de toneladas, o equivalente à emissão de 22 anos de desmatamento na Amazônia, com base na taxa de 2019. “Isso mais que inviabilizaria o alcance das metas assumidas pelo Brasil no Acordo de Paris”, diz o Observatório do Clima.
A perda de vegetação nativa pode afetar ainda mais a regulação de chuvas, mexendo com regiões estratégicas para o agronegócio brasileiro, num prejuízo acumulado de US$ 350 milhões por ano.
“A consolidação de um eixo rodoviário da importância e extensão da BR-319, atravessando uma região muito sensível do ponto de vista socioambiental, requer um plano consistente de proteção e de desenvolvimento sustentável para região e, também, a presença efetiva do poder público para dar suporte a esse plano, com bases de fiscalização permanente e condições de mobilidade”, diz Márcio Santilli, sócio fundador e presidente do Instituto Socioambiental (ISA). “Se se repetir, ao longo desse eixo, o mesmo padrão de grilagem e de desmatamento da BR-163, o Amazonas sofrerá ainda mais com o fogo e a devastação, e o Brasil não cumprirá as metas climáticas assumidas.”
O atual processo de licenciamento também tem ignorado a necessidade de se fazer a consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais da região que seriam diretamente impactadas pela obra.
O Observatório BR-319, uma rede de organizações da sociedade civil que atuam na área de influência da rodovia, afirma que, em 2022, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e o Ibama realizaram apenas apresentações do Componente Indígena do Estudo de Impacto Ambiental para comunidades localizadas em territórios Apurinã, Mura e Parintintin, sem efetivar uma consulta a respeito do que pensam e querem os povos indígenas da região.
As comunidades não tiveram acesso prévio e em linguagem acessível aos documentos relevantes. O formato das audiências não permitiu a participação de moradores de todas as comunidades. Ao longo da rodovia, somente nos 13 municípios monitorados pelo Observatório BR-319, existem mais de 18 povos indígenas. “Alguns nem sequer sabem em que estágio está o processo de licenciamento das obras”, afirmou a organização.
Desmatamento e queimada às margens da rodovia BR-319. Setembro de 2021.
Foto: Ernesto Carriço / Agência Enquadrar / Folhapress
Ibama em transe
Na tentativa de defender a decisão tomada durante a gestão Bolsonaro, a procuradoria-geral federal do Ibama afirma que todas as ações previstas na emissão da licença prévia são estruturais para o empreendimento e que a autorização não permite o avanço da obra em si, atestando apenas a sua viabilidade.
A respeito do fato de que essa licença já serviu para impulsionar o desmatamento na região, a defesa jurídica do Ibama chega a agir com ironia. “Trata-se de uma conjectura genérica que poderia ser utilizada como argumento para impedir toda e qualquer obra de infraestrutura a ser realizada na região do bioma amazônico”, afirma o procurador federal do Ibama, Ricardo Mendes Ferreira.
A defesa do Ibama afirma que, desde 2006, foram criadas diversas unidades de conservação na região, além das já existentes, totalizando 11 áreas de conservação federais, dez unidades no estado do Amazonas e oito no estado de Rondônia, sob influência direta da BR-319.
“A afirmação de que ‘a mera expectativa de asfaltamento da BR-319 ocasiona o aumento da ocupação de novas áreas de floresta desconsidera não apenas a criação, demarcação e sinalização de diversas Unidades de Conservação na área de influência da BR-319, mas também os dados mais recentes sobre o monitoramento do desmatamento da Amazônia e, ainda, a edição de ato normativo que demonstra a atuação concreta do Poder Público em prol da melhoria da governança ambiental na região”, diz a procuradoria.
Ao criticar a decisão liminar que suspendeu a licença, a defesa sustenta que isso “acaba por impedir a continuidade dos estudos e a execução das condicionantes ambientais determinadas pelo Ibama, retardando injustificadamente a fase preparatória de um projeto considerado estratégico para o país”.
Pelo viés econômico, o Ibama fala ainda dos “vultosos recursos públicos que são despendidos regularmente com serviços de manutenção e conservação” na rodovia, com valor médio anual de R$ 221 milhões por ano na manutenção do trecho do meio. E faz as contas.
Considerando-se que o valor previsto para a repavimentação do trecho é de R$ 1,751 bilhão, “conclui-se que, a cada oito anos, o poder público gasta o valor total da obra com medidas paliativas de recuperação da trafegabilidade”, diz a procuradoria. “A suspensão do procedimento acarreta um alto custo administrativo, já que as informações do licenciamento são dinâmicas e precisam ser atualizadas com o passar do tempo.”
Apesar dos apontamentos feitos pela defesa do Ibama, questionando desde os argumentos sobre impactos ambientais até efeitos de ordem financeira sobre o empreendimento, o presidente do órgão, Rodrigo Agostinho, disse ao ((o))eco que não houve “análise de mérito” na ação.
“O jurídico do Ibama é feito pela AGU, que tem atribuição constitucional de defender, de ofício, os atos praticados pela administração pública. Não foi feita análise de mérito e, muito menos, uma decisão foi tomada pela administração do Ibama”, comentou. “A licença prévia também não autoriza nenhuma obra ou intervenção. O Dnit chegou a protocolar alguns estudos incompletos e insuficientes para qualquer análise”, disse Agostinho.
Por meio de nota, o Dnit, que também recorreu à Justiça contra a suspensão da licença, declarou que está analisando as providências a serem tomadas, para então se manifestar sobre a decisão.
“Esclarecemos que seguem em curso os estudos e projetos necessários para a continuidade da licença ambiental, seguindo todos os requisitos prévios para avançar no empreendimento, cumprindo as condicionantes e respeitando as premissas ambientais”, afirmou.
A ministra Marina Silva foi procurada pelo ((o))eco, mas não se manifestou até a publicação deste texto. No início de setembro, o presidente Lula assinou uma ordem de serviço autorizando a pavimentação de mais 52 km da rodovia. A previsão é de serem investidos R$ 157,5 milhões nesta parte da obra. Essas áreas ainda não integram o trecho do meio. Aos poucos, porém, as obras avançam. O desmatamento, também.