No Norte do Pará existe uma área de floresta amazônica, do tamanho do Reino Unido, que forma o maior bloco de áreas protegidas do mundo. Esse território vem sendo compartilhado e preservado por povos indígenas e comunidades quilombolas há gerações. No entanto, durante o governo Bolsonaro, o anúncio da retomada de um projeto de expansão da rodovia BR-163 em direção à fronteira com o Suriname atraiu o interesse de setores econômicos e de políticos, que veem a região como uma frente de desenvolvimento a ser desbravada. O documentário BR Acima de Tudo, produzido pelo ((o))eco e dirigido por Fred Rahal Mauro, retrata os diferentes pontos de vista sobre esse projeto.
No filme, algumas lideranças indígenas da região foram entrevistadas em uma de suas línguas mais faladas, o tiriyó. E já que grande parte dos moradores das aldeias não fala nem compreende bem o português, alguns dos que conseguiram assistir e entender o documentário sentiram a necessidade de compartilhá-lo com os demais. Por esse motivo, graças a um trabalho de tradução e dublagem inédito feito por eles, com o apoio de assessores do Instituto Iepé, o conteúdo agora está disponível dublado em tiriyó e pode ser assistido, na íntegra, no Youtube do Iepé.
Acesse aqui o filme BR Acima de Tudo dublado em tiryó.
“Esse projeto Barão do Rio Branco é antigo, mas é sempre uma ameaça porque pode passar dentro da nossa terra”, explica o presidente da Associação dos Povos Indígenas Tiriyó, Katxuyana e Txikiyana (APITIKATXI), Aventino Nakai Kaxuyana Tiriyó, uma das lideranças que viabilizaram a tradução. Ele se refere a um projeto gestado na época da ditadura militar, mas que de tempos em tempos retorna ao debate público, ou seja, volta a ameaçar essa imensa área ainda protegida.
“O filme ajuda a nossa comunidade a entender os impactos que essa rodovia pode trazer para o nosso território, como o incentivo à exploração ilegal e entrada de fazendeiros. Por isso achamos importante traduzir”, completa Aventino.

Traduzir para compreender os assuntos dos karaiwa
Aventino e seu irmão Otávio Mitipo Kaxuyana Tiriyó, que também é uma liderança do Tumucumaque, já estão acostumados a fazer traduções em assembleias e reuniões, ajudando os parentes a compreender os assuntos dos karaiwa, como chamam os não indígenas. Otávio conta que o seu pai, cacique da aldeia Missão Tiriyó, sempre os incentivou a estudar. Foi ele quem enviou os dois filhos para Macapá (AP), com o objetivo de que aprendessem bem o português. “Ele entendia que isso era importante para que a gente pudesse ajudar o nosso povo”, diz Otávio.
No processo de tradução, ambos concordam que o maior desafio é lidar com palavras que não existem na língua tiriyó, como “projeto”, “constituição” e tantas outras. Nessas situações, em vez de traduzir literalmente, é preciso explicar o significado. O mesmo ocorre no caminho inverso: ao traduzir do tiriyó para o português, muitas vezes não são encontradas as palavras correspondentes, já que os modos de pensar são diferentes. “O importante é transmitir aquela mensagem e isso a gente consegue, fazendo adaptações em cada caso. É uma experiência que vem de longos anos, faz parte da minha vida”, comenta Aventino.
Traduzir um filme, no entanto, foi uma experiência diferente de tudo o que eles já haviam feito, mesmo considerando trabalhos anteriores com materiais audiovisuais, como uma animação sobre seu Protocolo de Consulta (disponível no Youtube do Iepé e também no Youtube da APITIKATXI, em Tiriyó). “Esse documentário, além de ser maior, tem vários personagens, incluindo quilombolas, que têm seu próprio modo de falar”, detalha Otávio.
Dublar é mais complexo que legendar
A dublagem em audiovisual também foi uma experiência inédita para os dois irmãos. “Em uma reunião, eu escuto, entendo e falo do meu jeito. Já no filme, para dublar, preciso assistir várias vezes até conseguir me adaptar ao modo como a pessoa está falando”, explica Aventino. “Foi uma experiência muito interessante. Gostaria de tentar de novo e até de fazer algum curso que me ajude a melhorar nisso”, acrescenta Otávio.
Alguns participantes chegaram a dublar a si mesmos. É o caso de Agnaldo Waratana Kaxuyana e Adriana Tawaya Kaxuyana, que aparecem no filme original falando em português. Na versão em tiriyó, regravaram seus depoimentos em sua própria língua, o que permitiu uma fala mais fluente e natural. “No filme em português ficamos um pouco apreensivos, já que não tínhamos experiência com esses meios”, conta Agnaldo. “Falar em tiriyó foi mais tranquilo. Gostei de contribuir para que possam entender o tema e assim poder opinar sobre ele”, complementa Adriana.
Todos concordam que traduzir conteúdos como esse é uma forma de fortalecer sua cultura e preservar sua língua. “É muito bom a gente ter filmes na língua, feitos por indígenas e por não indígenas, sobre temas importantes para nosso povo. Assim, todos podem ter acesso às informações e realmente entender os conteúdos”, afirma Aventino.

Para Otávio, realizar esse trabalho em parceria com os jovens do território também foi importante para mostrar que eles podem usar essas ferramentas, reforçando entre eles que a comunicação é estratégica para defender a cultura e o território. “O território para nós é tudo, é nossa casa, nossa família, nossa comida, nosso banho, nossa vida. Meu povo sabe que os recursos são limitados e que a gente tem que cuidar para não acabar”, ressalta.
Para o diretor, Fred Rahal, sempre foi importante não apenas mostrar o filme, mas também provocar debates. Por isso, segundo ele, a narrativa foi construída ouvindo os pontos de vista de diferentes atores, não apenas dos povos tradicionais. A versão dublada já foi lançada incentivando esse propósito: foi apresentada na última assembleia da APITIKATXI, que reuniu mais de 100 indígenas dos povos Tiriyó, Katxuyana e Txikiyana, que vivem na área que pode ser impactada pelo projeto.
“Foi importante mostrar para a nossa comunidade sobre essa ameaça traduzida para que todos entendessem. Isso fortalece a nossa luta conjunta”, afirma o presidente da APITIKATXI. A disponibilização do filme no Youtube permite que não apenas as lideranças, mas que qualquer falante da língua tiriyó possa assistir o filme e se apropriar do tema. Como as suas decisões são tomadas de forma coletiva, isso é fundamental.
A tradução e dublagem do filme foi viabilizada com apoio da Nia Tero.