Busan, Coreia do Sul – Os catadores de recicláveis conhecem como ninguém os plásticos. Estão na linha de frente no combate à poluição desse material e sabem o que é ou não reciclável, por exemplo. Reconhecendo essa expertise, o Brasil toma a dianteira, desde reuniões anteriores, de incluir Severino Lima, presidente da Aliança Internacional de Catadores de Materiais Recicláveis (IAWP), na sua delegação para as reuniões do Tratado Global contra Poluição Plástica.
Segundo ele, depois que o país tomou essa iniciativa, serviu de inspiração para que outros membros do movimento começassem a exigir espaço nos seus países também. Ainda assim, nesta última sessão, realizada em Busan, na Coreia do Sul, o brasileiro segue sendo o único que realmente consta na lista oficial das delegações, mesmo que outros catadores estejam na mesa formal de discussões por meio de associações, fundações e outras representações.
Agora, conforme se aproxima do prazo para concluir o texto (1º de dezembro), a categoria busca, mais do que nunca, se fazer ouvida. Mesmo que a pequenos passos, Lima comemora que tem observado mais países incluindo os catadores em seus discursos. Para além disso, a Aliança Internacional de Catadores também se reuniu com Inger Andersen, Diretora Executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA, em português, e UNEP em inglês), que também tem incluído em suas falas o papel crucial dos catadores nesse processo.
“Nossa esperança é que com o Tratado, as pessoas tenham mais consciência do que devem consumir ou não. Sempre orientamos que tipo de produtos devem dar preferência na hora de comprar, mas ter diretrizes a nível global vai facilitar que esse problema já seja prevenido na raiz, que as empresas produziram pensando em alta reciclabilidade”, explica o brasileiro.
Desde o princípio, o objetivo do acordo é contemplar todo o ciclo do plástico, o que significa tanto a gestão de resíduos, quanto promover mudanças no design e determinar que químicos ou produtos devem ser evitados. Isso acontece porque muitos plásticos, na prática, não compensam ser recicláveis. As limitações variam de acordo com o local. No Brasil, é o caso, por exemplo, das garrafas PET com cor marrom, porque com essas cores mais incomuns o catador só consegue vender se juntar um volume grande – já que esses produtos apenas conseguem ser reciclados juntos, diferente de garrafas transparentes ou brancas, que são mais comuns e podem se transformar em novos produtos de plástico de qualquer cor. “O design de produto tem que passar pelo catador. Algumas empresas realmente nos procuram, mas essa consulta precisa ser para todas”, acredita.
Lima ressalta ainda que, para garantir a participação efetiva dos catadores, não basta só serem ouvidos ou citados no documento. É necessário que a linha de financiamento do Tratado assegure que os recursos cheguem até as mãos da categoria, que está na linha de frente no combate à poluição plástica e realiza o serviço ambiental de dar a destinação correta aos recicláveis, em todo o planeta.
Gestão de resíduos é ainda calcanhar de Aquiles no Brasil
A Transição Justa é um dos artigos que devem entrar no acordo final, assim como a Gestão de Resíduos. Em evento paralelo realizado na quarta-feira (27), Adalberto Maluf, Secretário Nacional de Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental do Ministério de Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), enfatizou que “estamos vivendo uma tripla crise planetária”, termo comumente usado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), referente às crises das mudanças climáticas, da perda de natureza e de biodiversidade, e a da poluição e resíduos. Embora o país defenda medidas em todos os níveis de produção, e Maluf tenha citado isso em seu discurso, ele declarou que não enxerga o banimento do plástico neste Tratado e disse que “a curto prazo, não há outra solução além de lidar com a gestão de resíduos”.
A gestão de resíduos ainda é um problema não superado no Brasil. Apesar de ter uma Política Nacional de Resíduos Sólidos desde 2010, 15 anos depois ela não foi totalmente implementada a nível municipal. Para se ter uma ideia, mesmo sendo obrigatório, apenas 23% dos municípios no país organizavam algum tipo de coleta seletiva em 2021, de acordo com o Atlas Brasileiro da Reciclagem.
Além disso, a política traz diretrizes sob a ótica de uma “Economia Linear”, na qual os produtos são pensados para serem usados e descartados. Em contraponto, o Tratado de Plásticos tem a missão de fomentar uma “Economia Circular“, na qual os materiais são duráveis, reutilizados ou reciclados, permanecendo na cadeia de valor sem ser “jogado fora”.
“O próprio plástico é um material que tem muitas propriedades que trazem uma série de confortos e vantagens, mas que é usado de forma errada. Ele tem uma propriedade circular na economia, mas os modelos de produção e de consumo fazem com que sejam usados poucas vezes e se transformem em resíduos”, avalia Pedro Prata, oficial de políticas públicas para América Latina e Caribe da Fundação Ellen MacArthur, organização especializada em economia circular.
Reciclagem faz parte, mas não pode ser a única solução para poluição plástica
A atual lógica de mercado também não recompensa proporcionalmente os catadores e subestima o valor da circularidade. Na região Norte do Brasil, o cenário é especialmente mais difícil. É onde o plástico valia menos para os catadores e cooperativas, até onde o Atlas observou (2021). Para Ted Vale, diretor-presidente do Instituto Alachaster, que atua na promoção da Economia Circular em Belém (PA), o design e a biotecnologia precisam ser considerados na busca por soluções. “Quando a gente fala disso, não é só sobre coleta seletiva, reciclagem e logística reversa, senão vamos estar sempre enxugando gelo. Temos que falar de bioeconomia, biotecnologia e design, encontrar alternativas sustentáveis para ter produtos com maior reciclabilidade ou que sejam compostáveis, por exemplo”, acentua.
Rafael Eudes, embaixador do movimento global Break Free From Plastic, vai além, defendendo que se coloque um limite na produção do plástico, conforme é o posicionamento do grupo de países chamados High Ambition Coalition, liderados pela União Europeia no INC-5. “Nós já vivemos em um mundo sem plástico. Precisamos aprender com os povos indígenas também sobre como usar os recursos da melhor forma possível e também implementar sistemas de reuso por todo o mundo, dando escala para esse tipo de solução”, declara.
Eudes é engenheiro químico e integrante da Aliança Resíduo Zero Brasil e está acompanhando as discussões do INC desde a primeira sessão. “Temos muito trabalho pela frente e não temos tempo a perder. Não podemos continuar do jeito que estamos agora”, reflete. Mesmo a poucos dias para a quinta e última sessão terminar, os países encerraram a quinta-feira (28) sem nenhuma parte do texto fechada. Na tentativa de recuperar o tempo perdido, o embaixador equatoriano Luis Vayas Valdivieso, presidente do comitê, planeja apresentar um rascunho do documento, redigido por ele mesmo, a partir das discussões feitas nos últimos dias. A ideia é acelerar o processo, tornando esse esboço a base para discussões finais.
De volta ao Brasil, PL da Economia Circular ganhou caráter de urgência
Em paralelo ao debate em Busan, no Brasil o tema também está em pauta. O PL da Política Nacional de Economia Circular teve a urgência aprovada na Câmara dos Deputados no dia 12 de novembro. A próxima etapa é a aprovação final do mérito e, em seguida, a sanção presidencial.
Pedro Prata enxerga esse passo com otimismo. ”Vivemos um momento muito especial de virada de políticas públicas e de compreensão e desenvolvimento das empresas em uma lógica de produção baseada na economia circular”, confia. “Se o PL for aprovado, vai ser um dos melhores do mundo. Ele entende o comércio circular como um novo modelo econômico e não somente um modelo de produção”, sintetiza.
Nesse cenário de transformação, não há mais lugar para os descartáveis de uso único. Em alguns países, esse material já foi banido. No Brasil, com a implementação do PL, o prazo final para a circulação de descartáveis seria 31 de dezembro de 2029. Um estudo divulgado este mês pela ONG Oceana mostrou que o país produz anualmente cerca de 500 bilhões de itens plásticos descartáveis, dos quais 87% são embalagens e 13% utensílios descartáveis como talheres e sacolas. Segundo a instituição, além de ser um desperdício e causar poluição plástica, ao persistir com descartáveis o país deixa de gerar R$ 6 milhões em valor de mercado. “Já existem muitas alternativas ao plástico descartável e as empresas precisam se comprometer”, enfatiza Lara Iwanicki, gerente sênior de Advocacy e Estratégia da Oceana.
O iFood, maior empresa do setor de delivery de refeições do país, aderiu publicamente à campanha da Oceana, junto ao Pnuma, e informou em nota que está investindo em soluções mais baratas e sustentáveis para embalagens, como as de papel e as biodegradáveis. Outra estratégia é perguntar aos clientes, no aplicativo, se precisam ou não de talheres descartáveis. “Desde a criação do programa, por volta de 80% dos consumidores optam por não receber talher quando questionados. E muitos restaurantes já se conscientizaram da necessidade de questionar sobre itens extras e complementos nos pedidos antes de enviar, evitando o desperdício e envio de mais ‘lixo’ para os consumidores”, destacou a nota.
Como parte da bolsa de reportagem 2024 da Internews/Earth Journalism Network, a jornalista Alice Martins Morais faz a cobertura presencial do INC-5, em Busan, Coreia do Sul, de 25 de novembro a 1º de dezembro.