A produção global de plástico aumentou mais de 200 vezes desde 1950, chegando a quase 460 milhões de toneladas por ano. Depois de usado, boa parte desse material vai parar no Oceano – somente no Brasil são 1,3 milhão de toneladas despejadas anualmente. Cenas do lixo marinho ganharam repercussão nas últimas décadas, com imagens de tartarugas sufocadas com canudos, por exemplo, e alarmaram a sociedade para a necessidade de agir.
O movimento levou à decisão de desenvolver um Tratado Global contra Poluição Plástica, que começou ainda em 2022. Porém, depois de dois anos de negociações, o assunto parece ter ficado em segundo plano. Por isso, a delegação brasileira pretende retomar esse foco na quinta e última sessão do Comitê Intergovernamental de Negociação (INC, na sigla em inglês), que começa nesta segunda-feira (25), em Busan, Coreia do Sul.
O Tratado visa discutir vários subtemas, como micro e nanoplásticos, a responsabilidade dos produtores e melhorias no design. Contudo, para Alexander Turra, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza, as negociações não deram ainda a devida evidência ao Oceano. “Só depois da vírgula que vem o Oceano”, comenta sobre a forma em que se menciona o objetivo da convenção nos documentos oficiais: “um instrumento legalmente vinculante para tratar da poluição plástica, incluindo o ambiente marinho”.
Turra é professor da Universidade de São Paulo (USP) e responsável pela Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano. É também um dos pesquisadores consultados pelo Itamaraty em preparação para o INC-5. Ele nota que no texto de rascunho publicado na sessão anterior de negociações (o INC-4, de abril deste ano) há poucas menções de estratégias específicas para o ambiente marinho, assim como no non paper, documento adicional entregue em outubro pelo presidente do Comitê. Ambos os materiais devem direcionar o texto final do Tratado e indicam o que pode ou não ser prioridade na última rodada de negociação.
Para a ministra Maria Angélica Ikeda, diretora do Departamento de Meio Ambiente do Itamaraty, que lidera a representação brasileira, trazer o ambiente marinho de volta aos holofotes é indiscutível. “Nós queremos igualmente o downstream e o upstream. E nós entendemos que os oceanos estão ficando esquecidos, porque o foco está demais na questão econômica”, critica.
Upstream e downstream são termos usados para indicar qual o ponto do ciclo dos plásticos que uma intervenção pretende atingir. O primeiro está ligado à extração da matéria-prima (produção de combustíveis fósseis e a fabricação do plástico em si), enquanto o segundo abrange o que acontece com o plástico depois que é usado, ou seja, foca na coleta, reciclagem e descarte, basicamente. Há ainda o termo midstream, que se concentra na embalagem, distribuição e uso de produtos plásticos.
Para a ministra, é importante atentar para todos os fatores que compõem a complexidade do tema, mesmo que isso signifique dedicar mais tempo à formulação do Tratado. “Prefiro ter uma reunião a mais e ter uma discussão mais profunda sobre tudo do que um acordo adotado às pressas que seja muito genérico ou superficial”, declara.
Chegar a um consenso em uma semana
Em negociações como essas, os países se reúnem de acordo com sua região e/ou formam alianças conforme seus posicionamentos. O Brasil faz parte do Grupo de Países da América Latina e Caribe (GRULAC) e, segundo a ministra, não se alinha nem com a High Ambition Coalition nem com os Like-Minded, mas intervém por uma união de ambas as pautas. “O que estamos percebendo é que existem questões extremamente polarizadas, então muito do que o Brasil tem feito é intermediar essa discussão, mantendo o objetivo do Tratado e incentivando a cooperação”, explica Ikeda.
Liderado pela União Europeia (UE), 66 países formam a High Ambition Coalition, que defende a redução da produção global de plástico. Por outro lado, os chamados Like-Minded são produtores de petróleo e se concentram na poluição já causada pelo plástico em si. Fazem parte dessa linha de pensamento países como Rússia, Irã, Índia, China e Arábia Saudita.
Nesse contexto, chegar a um consenso tem sido um desafio. Nas últimas quatro reuniões, as divergências eram tamanhas que o texto compilado em abril possuía mais de 3 mil colchetes em 73 páginas. O sinal gráfico indica que os países não concordaram com aqueles termos específicos e, por isso, ainda é um debate em aberto.
Diante dessa dificuldade, o embaixador equatoriano Luis Vayas Valdivieso, presidente do INC, elaborou o non paper, propondo uma nova forma de conduzir o instrumento legal. No entanto, em uma tentativa de cumprir o prazo e chegar a um resultado que agrade lados opostos, o texto agora corre o risco de ter ficado simples demais, conforme avaliam especialistas. “O non paper enfraqueceu bastante, tirou muito da linguagem vinculante”, avalia Lara Iwanicki, gerente sênior de Advocacy e Estratégia da Oceana, uma organização internacional focada exclusivamente nos oceanos, que também tem participado das reuniões do Itamaraty.
Na sua visão, o ritmo das negociações está aquém do que a emergência ambiental do planeta exige. “Dado o tamanho da complexidade, a discussão avançou muito pouco até aqui e chegamos para a última rodada de reunião com praticamente nada consensuado”, avalia.
O INC-5 deve instituir a criação de uma nova Conferência das Partes (COP), a exemplo de como é feito nas Convenções do Clima e da Biodiversidade, cujos encontros devem dar sequência ao INC-5 e o primeiro deles deve acontecer no máximo um ano após a criação desta nova Convenção. Já nesse documento prévio, o embaixador deixa vários “deveres de casa” para a futura COP1, como a identificação de quais produtos plásticos e químicos de preocupação usados em produtos que devem ser submetidos para controle.
Para Iwanicki, postergar essas decisões pode colocar em xeque a efetividade da Convenção. “Se podemos tirar uma lição das outras COPs é que se demora muito tempo para avançar nas conferências, por isso precisamos já ter assegurado no Tratado o máximo de questões possíveis para não se arrastar por várias COPs”, acredita.
Acordo deve banir alguns componentes químicos
Os aditivos químicos plásticos são um dos pontos de atenção, considerando que há diversos estudos que atestam o perigo à saúde humana de alguns elementos presentes em produtos comuns do dia a dia. Porém, não há um consenso internacional de quais compostos são considerados problemáticos e devem ser banidos.
Para Alexander Turra, essa é uma definição que precisa ser um resultado do INC-5. “E tem que dar condições para que os países possam se adaptar a esse mercado”, complementa. Ou seja, se uma série de componentes forem banidos, todos os países precisam ter oportunidades para fazer uma transição.
Além dessa questão, outra bandeira que o Brasil defende é a criação de um mecanismo robusto de financiamento para promover a transformação socioeconômica proposta pelo Tratado. De acordo com Maria Angélica Ikeda, cálculos sugerem que são precisos trilhões de dólares para essa mudança em todo o planeta, incluindo ações de limpeza em áreas de maior acúmulo de plástico, implementação de infraestrutura para reciclagem, capacitação técnica e transferência de tecnologias para países em desenvolvimento, dentre outras medidas. “Há muitos países em desenvolvimento com a mesma posição. Quando defendemos que seja um acordo ambicioso, também estamos falando dos meios de implementação”, ressalta.
Maior acordo ambiental em 10 anos
O Tratado de Plásticos pode ser o maior acordo ambiental do mundo desde o de Paris, em 2015, que foi focado em reduzir emissões de gases de efeito estufa e limitar o aumento da temperatura a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais.
Com a volta de Donald Trump à Casa Branca, nos Estados Unidos, ambientalistas receiam como será o posicionamento americano em questões climáticas e ambientais – uma vez que em seu mandato anterior, o republicano retirou o país do Acordo de Paris. Lara Iwanicki diz que a discussão da poluição plástica não se encerra nesta próxima semana e, portanto, um posicionamento enfraquecido durante a gestão Trump, mesmo que os Estados Unidos adote uma postura diferente por enquanto, pode enfraquecer o Tratado.
Para ser menos suscetível a mudanças de chefes de Estado, Iwanicki defende que o instrumento seja mais rígido. “O Tratado de Plásticos é juridicamente vinculante, não é como o Acordo de Paris que foi voluntário. Ainda não sabemos se vai ter algum mecanismo de fiscalização ou punição, mas ter essa força fica menos suscetível às mudanças políticas”, explica.
Ela lembra, por fim, que esse é apenas um primeiro passo. Após fechar o documento das negociações, cada país precisa ratificá-lo internamente. No caso do Brasil, isso significa passar pelo Congresso Nacional, por exemplo. “Para além do Tratado, nossa maior defesa é que a gente precisa ter política pública no Brasil para ter mais efetividade. Um tratado internacional nunca vai ter o mesmo nível de ambição e concretude que uma política no território”, ressalta Iwanicki.
INC-5 – A última rodada de negociações para o Tratado de Plásticos começa nesta segunda-feira (25) e segue até 1º de dezembro, em Busan, na Coreia do Sul. A programação começa com uma plenária de abertura e as delegações são divididas em grupos de trabalho que nos dias seguintes debatem separadamente para tratarem de subtemas diferentes para que, ao final, os textos sejam compilados em um documento final.
Como parte da bolsa de reportagem 2024 da Internews/Earth Journalism Network, a jornalista Alice Martins Morais fará a cobertura presencial do INC-5, em Busan, Coreia do Sul, de 25 de novembro a 1º de dezembro.