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Busca por bônus e pneu furado: 7 dias na pele de um entregador em SP

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Busca por bônus e pneu furado: 7 dias na pele de um entregador em SP

Correr atrás de um bônus, encarar decepções e ter prejuízo com pneu furado. Mergulhei no jogo do iFood para saber o que faz entregadores ficarem viciados em cumprir metas e buscar aumentar os ganhos a qualquer custo para sobreviverem em São Paulo.

Foram 16 rotas de bicicleta em 7 dias e a sensação de que o dinheiro é importante, mas também há outras coisas que mantêm o trabalhador de delivery engajado o tempo todo no game.

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A ficha caiu rapidinho. O jogo é pesado e, de repente, você passa a calcular o preço de todas as coisas em rotas — as entregas são chamadas assim pelo app —, como quantas seriam necessárias para comprar um lanche, pagar uma conta ou viver com o mínimo de dignidade.

Na rua, você vira um caçador de promoções, como é chamado o dinheiro extra pago por entrega nos momentos de maior demanda. É desafiador e, por isso mesmo, viciante.

Do cadastro à bag nas costas

De início, o cadastro como entregador de bike foi feito pelo app com fornecimento de informações básicas como nome, CPF e endereço. A aprovação foi quase instantânea.

Para ficar disponível para receber os chamados, entretanto, foi necessário assistir a um vídeo obrigatório e responder a perguntas de múltipla escolha bastante simples, como “quais são os dias e horários recomendados para ficar disponível no app?” — entre as três opções apresentadas, a correta era “no almoço e jantar, finais de semana, feriados e dias de chuva”.

A partir daí, o app já colocou o perfil como disponível e automaticamente ofereceu a primeira rota, que me pegou de surpresa e foi recusada. Isso antes mesmo de terem início os demais vídeos de instrução, que são facultativos.

Cadastro, cursos e conversas com outros entregadores foram só uma espécie de “loaded” no sistema. A sensação de que o jogo tinha começado para valer, o “start” mesmo, veio só quando a bag (mochila com caixa de isopor) foi parar nas minhas costas. Ali, não tinha mais volta.

Perrengue nas ruas

No dia 11 de junho, startei minha jornada de entregador. Foram nove rotas no total, com quatro promoções de R$ 5 sobre a tarifa básica, que é de R$ 7 para entregadores de bicicleta, mais duas de R$ 10, por serem combinadas — coletar dois pedidos em um único endereço e levá-los até os clientes em pontos diferentes.

O início foi tranquilo, com rotas curtas, nas proximidades da Avenida Paulista. No decorrer do dia, a situação foi se complicando.

Em uma das entregas, estava na Avenida Angélica, em Higienópolis, região central da cidade, e o iFood pediu para coletar o pedido na Rua Turiassú, devendo entregá-lo na Rua Apiacás, em Perdizes, na zona oeste. Um trajeto de aproximadamente quatro quilômetros cheio de ladeiras bastante íngremes.

Depois, o app queria me mandar mais a oeste ainda, para a Lapa. A rota foi recusada e o iFood jogou então uma entrega para a Alameda Nothmann, novamente na região central da cidade.

A partir da Nothmann, a primeira grande decepção. O iFood ofereceu uma coleta em Cerqueira César, já nas proximidades da Paulista. Porém, quando me aproximava da Rua Augusta, a rota foi cancelada sem mais nem menos — realocada, como diz o app. Todo o tempo e desgaste por pedalar na subida foi em vão. Nenhum trocado por isso. “Fail”.

Ao longo do dia, o app pediu para que fosse feito o reconhecimento facial algumas vezes, como forma de garantir que eu era mesmo a pessoa cadastrada no sistema.

Por volta das 15h30, em um momento de pausa, ficou ainda mais evidente como penam os colegas de entrega no dia a dia.

Com R$ 75 acumulados até aquele momento e sem local para esquentar sequer uma marmita, só restou tapear o estômago com aqueles pães de queijo vendidos no metrô — 20 bolinhas por R$ 6. Comida mesmo só à noite, na volta para casa.

Uma pesquisa da “Ação da Cidadania” mostrou que entregadores de delivery comem pouca proteína, o que de fato dá “sustância”, no fim das contas. Mal-alimentado, um trabalhador que pedala o dia inteiro fica mais sujeito a adoecer. Uma gripe forte pode significar dias sem trabalhar e, consequentemente, sem dinheiro. Não existe rede de proteção social, nem atestado.

Não há ponto de apoio nas proximidades da Paulista, uma das principais regiões de atuação dos apps em São Paulo e onde um prato de comida ou um lanche podem custar quase um dia de trabalho. Recarregar o celular também só foi possível porque havia uma tomada disponível na Estação Paulista, da Linha 4-Amarela — a prática não é bem-vista pelos seguranças.

Depois da breve pausa, o jogo recomeçou com a coleta de um café na Rua Haddock Lobo e entrega na Rua Lisboa, depois da Avenida Paulo VI (continuação da Sumaré), em Pinheiros, que rendeu R$ 7 pela entrega. Como pode ser sustentável um sistema que exige um deslocamento de quase 4 km para se levar uma bebida, cruzando ao menos três bairros da cidade? Foi isso o que me intrigou em meio à pedalada.

Para evitar ser jogado ainda mais a oeste, pedalei de volta, de bag vazia (e saco cheio), até a região da Paulista. Acabei encerrando o dia perto no Paraíso (o bairro), com R$ 92 acumulados, em cerca de 8 horas de trabalho.

Corrida pelo bônus

Já tinha sido o suficiente para entender o mínimo sobre a vida de um entregador. Mas o app prometeu um bônus de “boas-vindas” de R$ 400, caso fizesse ao menos uma entrega por dia, durante sete dias, até 19 de junho.

Ou seja, para ganhar a grana extra, eu precisaria voltar às ruas com a bag nas costas por mais seis dias. É uma forma de quebrar a resistência a esse tipo de trabalho, tornando algo rotineiro da pessoa. Era uma proposta que eu não tinha como recusar.

Mas nada é tão fácil assim e, nas ruas, você está sujeito a todo tipo de infelicidade. No sábado, dia 14 de junho, logo após a primeira entrega, um pneu furado atrasou a minha vida. Ganhei R$ 7 do iFood, mas a troca da câmara custou R$ 40 — ou seja, um prejuízo de R$ 33.

Por fim, na data limite, concluí o desafio. Além dos R$ 149 pelas entregas — incluindo os R$ 2 de gorjeta de uma única alma generosa —, faturei os desejados R$ 400 de bônus. “Passei de fase” e fui inundado pela dopamina.

Vencedor?

O iFood atrai o entregador de todas as formas, seja oferecendo promoções ou então bônus pelo cumprimento de determinado número de rotas. O app roda ininterruptamente no celular em segundo plano, consome uma enormidade de bateria e plano de dados. Mesmo quando o entregador está deslogado, inclusive durante a noite, o aplicativo envia avisos de que pagará mais pelas entregas em determinado horário. Fiquei ligado o tempo todo.

Colocar a bag nas costas e sair para pedalar também me fez entender como é construída a imagem do entregador e os preconceitos que cercam a atividade, por mais digna que seja. Com 48 anos e a barba já branca, notei algum estranhamento no olhar das pessoas.

Você pode até ganhar alguma coisa no jogo do app, mas não é visto como um “vencedor” pela sociedade.

Embora não seja uma novidade, é fato que as ciclovias são fundamentais para garantir um mínimo de segurança para quem pedala como entregador. Em meio ao trânsito e com a caixa de isopor nas costas, eu me senti mais vulnerável do que quando saio para uma pedalada em família, por lazer.

Um dos pontos altos da experiência foi a solidariedade dos entregadores, sempre dispostos a ajudar um novato em suas primeiras rotas. Em conversas com motoboys, muitos disseram que começaram a trabalhar no app com bikes e, por isso, entendem o sufoco. Tanto que, muitas vezes, dizem que se oferecem até para empurrar o ciclista em uma subida mais íngreme. É um “boost” bem-vindo atrás das moedas.

Pirâmide?

O aplicativo também oferece bônus para quem consegue transformar outras pessoas em entregadores, numa espécie de “pirâmide”.

O iFood dá um código para cada entregador que pode ser compartilhado de diversas formas, incluindo um link por WhatsApp. Em julho, se a pessoa convidada usasse o código, eu ganharia R$ 1.500, desde que o novato realizasse 45 entregas em 15 dias com uma moto. No caso de entregas com bike, cairia para R$ 1.425.

Já a pessoa indicada faturaria R$ 600, se usasse moto, ou R$ 150, com bike, caso completasse o desafio de 45 entregas em 15 dias.

As formas de engajamento são muitas. Na plataforma Decola, o iFood oferece uma infinidade de cursos online para seus entregadores. São bastante didáticos, com linguagem acessível, e que procuram trazer noções de segurança ou formas de ganhar mais dinheiro.

Participei de diversos cursos. Entre eles, um que teve como foco a comunicação não-violenta (“sem treta”), uma forma de distensionar a relação de entregadores com comerciantes e clientes. O iFood não paga pelo tempo gasto com os cursos.

O que diz o iFood

O iFood afirmou ao Metrópoles que não incentiva comportamentos de risco, e que os tempos de entrega têm parâmetros realistas e seguros, “respeitando os limites de velocidade e as condições do trânsito”.

“As campanhas de incentivo, como promoções e desafios, são totalmente opcionais e têm como objetivo ampliar a previsibilidade de ganhos dos entregadores, especialmente em momentos de alta demanda, como dias de chuva ou horários de pico”, afirma a empresa. “O iFood não incentiva, em nenhuma hipótese, comportamentos de risco”.

O iFood diz que reconhece a importância dos pontos de apoio e afirma estar comprometido em oferecer o melhor suporte possível aos parceiros em diferentes cidades brasileiras, incluindo pontos próprios, bem como parcerias com instituições públicas e privadas.

A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa os principais aplicativos, diz que as plataformas associadas mantêm estratégias e diretrizes próprias em relação aos entregadores dentro de cada modelo de negócio. Segundo a entidade, as empresas não estimulam longas jornadas e velocidade acima do permitido.

Fonte: www.metropoles.com