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Ceca-RJ ignora ICMBio e aprova licença para termelétricas da Petrobras

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Ceca-RJ ignora ICMBio e aprova licença para termelétricas da Petrobras

A Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca) do Rio de Janeiro aprovou nesta terça-feira (12/11) por nove votos favoráveis e dois contrários a licença prévia (LP) do parque termelétrico da Petrobras no Complexo de Energias Boaventura (ex-Gaslub, antigo Comperj). A comissão ignorou o pedido de suspensão da votação enviado pouco antes da sessão por meio de ofício assinado por Marcelo Marcelino de Oliveira, diretor da Diretoria de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade (Dibio) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

No ofício, Oliveira solicita que “a Licença Prévia do empreendimento não seja submetida à apreciação da Comissão Estadual de Controle Ambiental – CECA até que os riscos de impactos às UC sejam afastados”. Há duas unidades de conservação (UCs) federais na área de influência do empreendimento: a Área de Proteção Ambiental (APA) Guapi-Mirim e a Estação Ecológica (Esec) Guanabara e sua zona de amortecimento, que tem um trecho do seu perímetro sobreposto aos limites da área do Complexo Boaventura. Encontra-se nessas duas UCs quase metade dos remanescentes de manguezais do estado do Rio de Janeiro.

De acordo com o artigo 36 da Lei 9.985/2000 (Lei do SNUC), quando o empreendimento afetar UC específica ou sua zona de amortecimento, o licenciamento “só poderá ser concedido mediante autorização do órgão responsável por sua administração” (parágrafo terceiro). Este procedimento vale para casos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental, que demandem estudo de impacto ambiental e respectivo relatório (EIA/Rima).

Foi a primeira vez desde 2009 que o ICMBio não se manifestou previamente num processo de licenciamento ambiental de atividades e empreendimentos no Comperj, “resultando em importante retrocesso ambiental para a conservação dos manguezais da Baía de Guanabara e Bacias Hidrográficas drenantes”, conforme afirma Maurício Barbosa Muniz, chefe do Núcleo de Gestão Integrada (NGI) Guanabara do ICMBio em uma informação técnica que acompanhou o ofício remetido pela Dibio/ICMBio aos membros da Ceca, solicitando a retirada de pauta da LP do parque termelétrico.

“É a absoluta falência do licenciamento ambiental como instrumento de compatibilização do desenvolvimento econômico com a proteção ambiental. Em plena era das emergências climáticas, testemunhamos o desprezo pelo maior fragmento contínuo de manguezais do Estado do Rio de Janeiro, que segue sofrendo graves danos em seu equilíbrio ecológico sem nenhuma medida para sua mitigação”, disse Rogério Rocco, superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) no estado do Rio de Janeiro.

Rocco tem cobrado o Inea inúmeras vezes ao longo deste ano a respeito de ações que contribuam para o cumprimento das condicionantes da LP FE013990/2008, que incorporaram determinações da autorização concedida em 2008 pelo Ibama para o órgão licenciador fluminense iniciar o processo de licenciamento do Comperj. “Lamentavelmente, presenciamos a emissão de mais uma licença ambiental para a implantação de empreendimentos de grande potencial de impacto na planta do antigo Comperj, sem que as medidas mitigadoras dos impactos negativos sobre as unidades de conservação federais (APA de Guapi-Mirim e ESEC da Guanabara), definidas na licença emitida em 2008, tenham sido sequer iniciadas”, aponta o superintendente do Ibama no Rio. 

Sobrevoo no Parque Natural Municipal Águas de Guapimirim, uma das condicionantes do licenciamento ambiental, mostra gado no pasto e margens do rio Guapi-Macacu (foto tirada em 31/5/2024). Foto: NGI Guanabara/ICMBio

O chefe do NGI Guanabara do ICMBio, Maurício Muniz, vê um enfraquecimento no papel dos gestores das UCs federais na votação realizada pela Ceca ignorando o pedido do ICMBio. “A retomada dos empreendimentos pela Petrobras no antigo Comperj sem a execução das medidas de mitigação dos impactos nos manguezais da Guanabara, como o reflorestamento das matas ciliares dos rios, agora assume uma outra dimensão. Nem sequer o órgão gestor das unidades de conservação foi ouvido durante o licenciamento ambiental. Nem estudos sobre impactos nas UCs Federais foram realizados. Passamos de condicionantes não cumpridas para nem sequer termos estudo e manifestação do ICMBio”, desabafa.

Além do Ibama e do ICMBio, a reportagem enviou dúvidas a respeito do licenciamento do parque termelétrico para a Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade (Seas-RJ), à qual está vinculado o Inea, e o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ). Não houve retorno da Seas-RJ nem do MPRJ. O espaço continua disponível para as manifestações do Inea e do MPRJ.

O ICMBio informa que pretende notificar sua Procuradoria Especializada e o Ministério Público Federal para a tomadas das medidas cabíveis, uma vez que existem indícios da prática de crime contra a Administração Ambiental nos procedimentos do Inea, previsto no artigo 66 da Lei de Crimes Ambientais: “Fazer o funcionário público afirmação falsa ou enganosa, omitir a verdade, sonegar informações ou dados técnico-científicos em procedimentos de autorização ou de licenciamento ambiental”.

Sem aviso prévio

Esta foi a segunda vez, em uma semana, que a Ceca pautou a votação da LP, que seria aprovada com facilidade no dia 5 de novembro passado, não fosse o pedido de vista do Ibama. Os analistas ambientais do NGI Guanabara do ICMBio só tomaram conhecimento da reunião no dia anterior, 4 de novembro (segunda-feira), por meio de Rogério Rocco, superintendente do Ibama. Rocco representa o Ibama na Ceca e costuma receber a pauta da próxima reunião, que geralmente ocorre às terças, somente na sexta-feira anterior e após 17h00. Pareceres técnicos sobre a concessão das licenças também costumam acompanhar as pautas. 

O ICMBio ficou sabendo apenas na segunda-feira (11/11) da reinclusão do processo da LP do parque termelétrico no encontro da Ceca agendado para o dia seguinte (ontem, 12/11), e novamente graças ao Ibama. Assim como na reunião prévia, nem Inea nem Ceca comunicaram o ICMBio sobre a retomada da pauta da LP. 

O parque termelétrico do Complexo Boaventura, localizado em Itaboraí, no leste fluminense, será composto de duas usinas termelétricas (UTEs). A UTE Gaslub I terá potência instalada de 1.200 megawatts (MW), enquanto a UTE Gaslub 2, 600 MW. Completarão o empreendimento uma subestação elevadora (345 kV) e uma Linha de Transmissão Intramuros (345 kV), sob responsabilidade da Petrobras. Quando em funcionamento, as usinas queimarão gás natural do pré-sal refinado na unidade de processamento do Complexo Boaventura (UPGN), que iniciou sua operação, ainda em fase de testes, em setembro passado.

Estudos complementares

Há uma omissão grave no Parecer Técnico INEA/INEA/COOEAMPT/4715/2024, emitido em 25 de outubro passado e favorável à aprovação da LP – nada se diz no texto a respeito da solicitação de estudos complementares ao EIA/Rima feita pelo ICMBio ao Inea, embora a autarquia federal tenha remetido dois ofícios entre setembro e outubro com tal solicitação. 

No dia 16 de setembro, a diretora substituta da Dibio/ICMBio, Marília Marques Guimarães Marini, enviou ofício ao diretor de licenciamento do Inea, José Dias da Silva, com a solicitação de estudos complementares ao EIA/Rima da Petrobras. De acordo com o documento, as seguintes informações deveriam ser contempladas pela petroleira na elaboração dos estudos complementares:

  • Revisar a Área de Influência Direta (AID), apresentando as informações e mapas onde conste a Zona de Amortecimento (ZA) da Estação Ecológica (Esec) de Guanabara.
  • Avaliar os impactos do Parque Termoelétrico GasLub nas UCs federais Esec Guanabara e APA Guapi-Mirim.
  • Apresentar as medidas e os programas ambientais que serão executados pelo empreendedor como forma de mitigação aos impactos nessas unidades de conservação.

Em novo ofício enviado em 4 de outubro ao Inea, o diretor titular da Dbio/ICMBio, Marcelo Marcelino de Oliveira, reiterou o pedido de estudos complementares feito em 16 de setembro. O documento foi uma resposta à comunicação do Inea sobre a retificação pela Petrobras do traçado da linha de transmissão intramuros do empreendimento, que eliminou sua sobreposição à Zona de Amortecimento (ZA) da Esec Guanabara. 

Lacunas, dúvidas e omissões abundam nos procedimentos do Inea

Inea e Ceca precisam esclarecer por que aprovaram a licença prévia (LP) do parque termelétrico do Complexo de Energias Boaventura com pouca transparência, omissões, lacunas e inúmeras dúvidas. Vejam a seguir aspectos que preocupam analistas ambientais do ICMBio nos procedimentos do Inea no processo de licenciamento do parque termelétrico:

  • Parecer do Inea ignorou o pedido de estudos complementares ao EIA/Rima do parque termelétrico solicitados pelo ICMBio;
  • Inea e Ceca não avisaram o ICMBio que parecer favorável à LP seria votado nas reuniões da comissão ocorrida em 5 e 12 de novembro. O órgão licenciador é obrigado a requerer autorização do gestor da UC afetada pelo empreendimento, de acordo com o artigo 36 da Lei 9.985/2010;
  • ICMBio pediu ao Inea que não remetesse a LP para ser votada na Ceca sem sua manifestação prévia;
  • Parecer não indica medidas mitigadoras para impactos ambientais adversos sobre a APA Guapi-Mirim e a Esec Guanabara e sua zona de amortecimento;
  • Inea informa no parecer que o ICMBio não enviou sua manifestação conclusiva no prazo de 60 dias previsto no artigo 2º da Resolução Conama 428/2010. Entretanto, a Dibio/ICMBio remeteu ofício com a solicitação de estudos complementares ao Inea no dia 16 de setembro e outro ofício, em 4 de outubro. Como o parecer do Inea foi emitido em 25 de outubro, 39 dias passaram desde o envio do primeiro ofício do ICMBio solicitando complementos ao EIA/Rima;
  • Parecer também omitiu que o artigo 3º da Resolução Conama 428/2010 prevê interrupção da contagem do prazo para manifestação do gestor da UC durante a elaboração de estudos complementares. O prazo volta a contar com adição de 30 dias aos 60 dias regulares após a finalização dos estudos.

Impactos sinérgicos

Analistas ambientais do ICMBio também recomendaram à diretoria do órgão que solicite ao Inea que considere os impactos sinérgicos do parque termelétrico e das duas linhas de transmissão externas operadas pela SSP Transmissão de Energia sobre as UCs federais. Para eles, trata-se na prática de um único empreendimento que irá operar em duas dimensões, embora sejam tratados em processos distintos – a geração de energia pelas usinas termelétricas e sua distribuição pela linha de transmissão externa. Tal avaliação será importante para que a Petrobras ofereça um programa ambiental com medidas mitigatórias dos impactos identificados.

Sob condição de anonimato, um analista ambiental do ICMBio diz que o licenciamento do parque termelétrico e da linha de transmissão externa precisa considerar que já existe um entendimento técnico entre os profissionais dos órgãos ambientais de que os impactos ambientais diretos e indiretos nos manguezais à jusante do Complexo Boaventura são evidentes. Daí a necessidade imperiosa dos estudos específicos sobre os efeitos adversos do parque termelétrico e das linhas de transmissão da empresa SSP (externa ao complexo) na APA Guapi-Mirim e na Esec Guanabara e em sua Zona de Amortecimento. 

O programa de medidas mitigatórias deverá considerar perda de habitat e fragmentação florestal na ZA da Esec Guanabara na implantação da linha de transmissão da SSP, de acordo com análise do NGI Guanabara do ICMBio. Tais impactos revelam, segundo os analistas da autarquia, a oposição entre os objetivos e normas do empreendimento e os da zona de amortecimento. 

Manguezais da Estação Ecológica Guanabara, as margens da Baía de Guanabara, uma das regiões afetadas pelo empreendimento. Foto: NGI Guanabara/ICMBio

Fontes ouvidas por ((o))eco reforçam sua preocupação com a situação, visto que novas licenças de atividades no Complexo Boaventura (ex-Comperj) continuam sendo aprovadas em meio ao descumprimento das determinações da Autorização Ibama 001/2008, que foram incorporadas nas condicionantes 30.1 e 30.2 da LP FE013990/2008. Uma obrigou a Petrobras a reflorestar as faixas marginais das sub-bacias dos rios Caceribu e Macacu, enquanto a outra impôs à estatal a compra, restauração e manutenção de uma área tampão para atenuar os impactos negativos do Comperj na APA Guapi-Mirim e na Esec Guanabara. 

Passaram-se 15 anos desde a aprovação da LP do Comperj e continuam no papel a restauração das matas ciliares das faixas marginais e a implantação do Parque Natural Municipal Águas de Guapimirim (para servir como área tampão). Dos 4.500 hectares de restauração florestal extramuros (fora do Comperj), prevista no Termo de Ajuste de Conduta (TAC  1 do Comperj), assinado em agosto de 2019, foram reflorestados pouco mais de 300 hectares no programa Florestas do Amanhã (FDA), coordenado por Seas-RJ e Inea. 

A restauração é fundamental para aumentar a resiliência climática da região, captar carbono, aumentar a infiltração de água no solo, prevenir a erosão e filtrar poluentes, evitando que estes escorram para os rios, comprometendo os manguezais e os mananciais que abastecem dois milhões de pessoas no leste fluminense.