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Como comunidades de fecho de pasto conservam o Cerrado no oeste baiano

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Como comunidades de fecho de pasto conservam o Cerrado no oeste baiano

Uso de terras coletivas, criação de gado, produção de alimentos agroecológicos, extrativismo de plantas medicinais e alimentícias. Essas são algumas das características que definem o modo de vida das comunidades de fecho de pasto, que vivem há pJustiça determina bloqueio de matrículas de fazendas em territórios tradicionais no oeste da Bahia pelo menos 300 anos em harmonia com o Cerrado no oeste da Bahia. 

A partir da luta pelo fortalecimento e proteção desses territórios de uso coletivo, Elizete Barreto, do Fecho de Pasto de Clemente, destaca que o território é uma herança ancestral, com recursos naturais que pertencem “a toda a humanidade”, tal como a água que nasce ali e tem papel importante no abastecimento da cidade de Correntina (BA) e do rio São Francisco. Esse é um dos motivos pelo qual o território precisa ser protegido. 

“Essas comunidades de fecho são guardiãs dos territórios que abrigam o Cerrado”, afirma Elizete, que mora na comunidade Praia, no município de Correntina. 

O modo de vida das comunidades de Fundo e Fecho de Pasto é marcado pela harmonia na convivência com o Cerrado. A população fecheira desenvolveu um sistema de criação de gado em que parte do ano ele fica solto nas áreas de uso coletivo, chamadas de “Gerais” pelas famílias camponesas, se alimentando do capim agreste (espécies de gramíneas nativas do Cerrado). 

Outra parte do ano, o gado é trazido para próximo das moradias onde se alimenta de pasto plantado, permitindo que o pasto nativo se recupere até a próxima estação. O período da solta do gado acontece em dois momentos, baseado no regime de chuvas. O gado é solto por volta de outubro, quando costuma chover. Os animais se alimentam do cerrado enquanto o capim exótico plantado cresce nas roças. 

Depois, é trazido de volta para a comunidade perto do feriado do Natal e se alimenta ali até fevereiro ou março. Uma segunda solta é realizada para que o pasto nas áreas cultivadas possa brotar de novo. Em maio, o gado volta para as áreas cultivadas, quando já há comida suficiente produzida para enfrentar a seca.

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Criação de gado para subsistência é atividade comum entre comunidades de fecho de pasto. Foto: Fellipe Abreu/Acervo ISPN

A alternância ocorre para garantir que haja pastagem nativa ou cultivada o ano inteiro, sendo que os fechos de pasto, onde ocorrem a soltura do gado, ficam distantes de 10 a 80 km das comunidades onde vivem as famílias criadoras e camponesas.

Alguns exemplos de Fechos na região de Correntina são o Fecho de Clemente, Fecho do Bonito de Baixo, Fecho do Bonito de Cima, Busca Vida, Caititu, Bonsucesso e Capão das Antas, Fecho dos Morrinhos, Fecho do Brejo Verde, Fecho do Morrinhos a Entre Morros e Gado Bravo, Fecho da Vereda do Rancho e Fecho de Tarto. Cada fecho é o território de uso coletivo de um grupo de famílias, sendo que a maioria dos grupos está organizada em associações.

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Local em que o rio Corrente despeja suas águas no rio São Francisco. Os vales dos rios Arrojado, Correntina, Formoso, afluentes do Corrente, são morada de muitas comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto, e o avanço desenfreado do agronegócio ameaça suas inúmeras nascentes, rios e riachos. Foto: Fellipe Abreu /Acervo ISPN

As comunidades tradicionais que resistem no território também fazem uso do extrativismo de frutos nativos, como o pequi, o buriti, o puçá, a cagaita e a mangaba, e do mel. Estão sendo produzidos cerca de 120 litros de mel por ano a partir de 20 caixas de abelhas. Para essas famílias, o Cerrado é a farmácia, onde coletam sementes de sucupira, amburana, entrecasca do ipê, seiva de copaíba, folhas de cagaita e inúmeros outros remédios ancestrais eficazes para curar um sem-número de doenças. Também coletam madeira e palha para construção de estruturas diversas. 

Mais recentemente, as comunidades perceberam que com a redução das chuvas, as veredas estavam secando. Para evitar que o pisoteio do gado agrave a situação, passaram a  realizar o cercamento de nascentes e de veredas, hoje são mais de 82 nascentes protegidas dentro de 10 fechos de pasto. Também passaram a realizar mutirões de plantio de sementes e mudas para recuperar trechos das veredas queimados por incêndios. Só em 2023, foram plantadas quase 3 mil mudas e 600 kg de sementes de plantas nativas do Cerrado. 

“É uma relação harmoniosa e recíproca com o meio ambiente. Eles conservam e em retorno têm uma vida mais sustentável, com animais mais saudáveis, garantia de frutos e água em abundância nos rios. O modo de vida dessas famílias vem contribuindo para que recursos hídricos sigam existindo. Esse povo sempre utilizou a terra sem a supressão do Cerrado. É retirado dali o remédio, as plantas medicinais, os frutos nativos e a solta dos animais”, explica Julita Abreu, coordenadora na Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Centro Oeste da Bahia. 

A prevenção a incêndios também é uma preocupação na região. No pastoreio do gado, os fecheiros monitoram as áreas para identificar possíveis focos de calor. Também realizam aceiros como método de manejo – são faixas de terra que são limpas e servem como barreira natural para impedir a propagação de incêndios florestais. 

Uma Brigada Comunitária voluntária foi formada nos últimos anos composta por mais de 250 fecheiros e fecheiras que monitoram diariamente pelo menos 50.000 hectares de áreas coletivas. A área protegida pela brigada é usada por mais de 1.500 famílias (6.000 pessoas). Desde que começaram a atuar em 2019, já promoveram mais de 70 ações de combate a incêndios, fizeram mais de 12 atividades de intercâmbio e 130 cursos de formação, e mantêm anualmente 98 km de aceiros nos fechos de pasto.  

A parceria com o ICMBio, Prevfogo/IBAMA e Brivac (Brigada Voluntária Ambiental de Cavalcante) permitiu que os brigadistas recebessem treinamento para trabalhar com o Manejo Integrado do Fogo (MIF) na região. Projetos gerenciados pelas associações e apoiados pelo Fundo Ecos, Fundo Casa e DGM [Dedicated Grant Mechanism for Indigenous Peoples and Local Communities] contribuíram para equipar e capacitar as brigadas voluntárias e comunitárias nos últimos 10 anos. 

Para Marco Antônio de Souza, morador da comunidade de Bonito de Cima, “cuidar e conservar o fecho é como cuidar de uma das maiores riquezas que o criador nos deu”. 

“Tudo que estamos fazendo aqui é para garantir o que o agronegócio não faz: cuidar. O agronegócio só destrói. E ninguém produz tanta água quanto os fecheiros… alguém vai dizer que não dá pra plantar água, mas dá para conservar. Não dá pra plantar, mas dá pra colher”. 

As comunidades dos Vale do Arrojado, Formoso e Correntina dependem da água para plantar arroz, feijão, mandioca, milho, gergelim, banana, hortaliças, cana e capim de ração. No entorno das comunidades, as famílias plantam roças usando a água dos córregos e dos rios para irrigar. Por mais de uma centena de anos, os canais, chamados de regos, permitiram o uso das águas dos riachos na irrigação dos quintais, aguando as fruteiras, dando de beber aos animais de pequeno porte e viabilizando a vida nesses locais. De 2019 para cá, grande parte dos regos secou pela primeira vez em cem anos, e as mais de 6 mil famílias que os usam foram prejudicadas. Dia após o outro, eles também assistem o rio Arrojado secar. 

Apesar de ter reduzido nos últimos anos, devido à diminuição da disponibilidade de água e da pressão do agronegócio, a produção das comunidades fecheiras segue abundante. A feira da agricultura familiar de Correntina é famosa pela profusão de produtos como tapioca, farinha de mandioca, biscoitos diversos, açucar, rapadura, cachaça, queijo, mel, feijão, arroz, cheiro verde, verduras diversas e frutos do Cerrado da época. 

Eugênio Moreira, da comunidade Caixeiro, fecheiro em Bonito de Baixo, se preocupa com o avanço do agronegócio sobre o território. “Hoje a especulação é muito forte em cima da gente, querendo tomar nosso território. A gente está muito recuado, com pouca natureza e meio ambiente. E nós estamos nessa luta para proteger o Cerrado em pé.”

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Sinalização de supressão de vegetação em uma fazenda na zona rural de Correntina (BA), local que era domínio das comunidades tradicionais até os anos 1990. Foto: Fellipe Abreu/Acervo ISPN

Morador da comunidade fecheira de Vereda Grande, também em Correntina, Rivaildo Souza diz que a luta da população do território é pela defesa do meio ambiente. “Nós lutamos por nossas nascentes, já que uma parte delas já morreu e a outra não tem nem 70% de chance de vida”, afirma. 

A região do oeste da Bahia vivencia mudanças significativas no ecossistema desde a década de 1970, momento em que o avanço da “fronteira” agrícola tornou Correntina um dos principais municípios produtores de monocultivo – sobretudo soja e milho. O cenário foi propício para a expansão do agronegócio por conta de incentivos de crédito agrícola oferecidos pelo governo, por meio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). 

Em 2015, a região passou a ser considerada pela mesma Embrapa como parte da fronteira agrícola do MATOPIBA, onde a produção de commodities é o carro-chefe. As condições topográficas e hidrológicas da região favorecem a produção de grãos em escala industrial para exportação: com sistemas  de irrigação, piscinões, canais e perfuração de poços profundos, os empreendimentos do agronegócio ali estabelecidos conseguem retirar água do subsolo e garantir a água para fazer crescer os seus monocultivos, num contexto de condições climáticas cada vez mais incertas, geradas inclusive pelo desmatamento conduzido pelo próprio setor. 

Isso porque o Cerrado, bioma predominante na região, é considerado uma floresta subterrânea, com árvores que possuem raízes profundas, maiores até do que a própria copa. Essas raízes ajudam na absorção da água da chuva e na reposição dos aquíferos, que são reservas subterrâneas de água – o que faz o Cerrado ser considerado o coração das águas do Brasil e do continente sul-americano. 

“O problema é que o desenvolvimento vislumbrado pelo agronegócio desrespeita  os modos de vida tradicionais dos camponeses e ribeirinhos da Bacia do Rio Corrente. O conflito é desencadeado pelo uso predatório da água e pela apropriação indevida dos territórios de uso coletivo para que se tornem lavouras, ou mesmo Reservas Legais das enormes fazendas que já desmataram a totalidade de suas áreas”, argumenta Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado, do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). 

A ecóloga explica ainda que as práticas intensivas da agropecuária “compactam o solo, diminuindo a sua capacidade de repor as águas dos aquíferos”. “Além disso, está havendo uma ampliação da área irrigada, aumentando ainda mais a pressão pela água superficial, e, mais que tudo, subterrânea, um bem que deveria ser de toda a sociedade.”

As comunidades tradicionais avaliam que hoje se mantém somente 3% das terras originalmente ocupadas pelos fecheiros. “O resto já foi grilado e hoje é área de desmatamento, de envenenamento de água, de seca nos rios e riachos e violência contra as nossas comunidades. Tem sido um momento difícil nesse Vale do Arrojado”, lamenta Eldo Moreira, também do Fecho de Pasto de Clemente. Antes das alterações na paisagem, as extensões de terra onde se criava o gado alcançavam a divisa com os Estados de Goiás e Minas Gerais.

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Plantio de commodities em área desmatada pelo agronegócio em contraste com o Cerrado conservado no território de uso tradicional das comunidades de fecho de pasto em Correntina. Foto: Fellipe Abreu/Acervo ISPN

No último dia 19 de maio, um novo episódio de violência e intimidação foi registrado na região. Segundo relato do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), oito viaturas policiais invadiram os territórios das comunidades de Brejo Verde e Aparecida do Oeste, arrombando casas sem mandado judicial. Três dias antes, dois camponeses de Brejo Verde foram presos no Rio de Janeiro, em viagem de férias. Até o fechamento da matéria seguiam presos, ainda no Rio de Janeiro, completando mais de 10 dias. 

O Caderno de Conflitos no Campo de 2023, publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), aponta Correntina como o município com o maior número de conflitos agrários na Bahia. Nos últimos anos, a violência no campo tem se intensificado: de 2017 a 2023, o número de conflitos saltou 121% em relação ao período de 1985 a 2016, totalizando 132 casos.