Com a licença de instalação do Ibama debaixo do braço para o retaludamento das encostas do Portão do Inferno, no Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, o governo de Mato Grosso não teve nenhum constrangimento em movimentar-se internamente para retomar as obras de duplicação da MT-251. No dia 15 de agosto de 2024, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA-MT) oficiou a Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística (SINFRA-MT) para que comece a elaborar os estudos necessários para análise do requerimento da licença prévia. Segundo o documento, a proposta é duplicar os trechos entre o entroncamento da MT-351 (Trevo do Manso) até o limite do parque nacional. E, depois, do fim do parque nacional até Chapada dos Guimarães. Ou seja, espremendo a unidade de conservação federal num licenciamento fracionado e ao arrepio da Justiça.
O excesso de confiança é tamanho que o pedido de realização dos estudos acontece sem nem mesmo o estado ter certeza de que poderá licenciar esses trechos. O ofício menciona “as tratativas junto ao Ibama para delegação ao estado de Mato Grosso da execução de licenciamento ambiental da Rodovia MT-251”. E já solicita uma série de estudos “considerando a necessidade de atualização e complementação dos estudos referente à duplicação da MT-251, que pela complexidade das obras e das tecnologias empregadas, requer informações complementares e projetos específicos”, e que, além do mais, não compõem um Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA).
A retomada da duplicação desses trechos da MT-251 ignora a decisão da juíza federal Vanessa Curti Perenha Gasques, de 1 de outubro de 2013, que homologou o acordo entre o Ibama, o ICMBio e o estado de Mato Grosso sobre a duplicação dessa estrada, a partir da Ação Civil Pública nº 0010167-29.2010.4.01.3600. A decisão determinou que o licenciamento da duplicação da rodovia deve ser realizado integralmente sem o parcelamento de trechos e, adicionalmente, ser tratado em âmbito federal pelo Ibama. Como se sabe, o fatiamento do licenciamento dificulta a análise de impactos cumulativos e dos efeitos sinérgicos de um mesmo empreendimento, já que cada órgão discute apenas parte das informações sem considerar as implicações da atividade como um todo.
Mas o que a duplicação da estrada tem a ver com o Portão do Inferno? Muita coisa. A Informação Técnica 20/2024 Parque Nacional da Chapada dos Guimarães/ICMBio, elaborada no contexto das obras de retaludamento do Portão do Inferno, confirma que toda a discussão sobre soluções para este trecho tem ocorrido há pelo menos 15 anos justamente por causa da intenção de duplicação da estrada. “As intervenções propostas para a rodovia MT 251 no interior do PNCG remetem à proposta de duplicação da rodovia, anunciada como uma das primeiras obras para a Copa do Mundo FIFA 2014”, informa. O ano era 2009 e O Eco publicou uma reportagem denunciando o início das obras pelo governo do estado, à época governado por Blairo Maggi, sem qualquer licença ambiental, o que ensejou o embargo da obra pelo ICMBio.
Em decorrência dessa infração ambiental, o Ministério Público Federal (MPF) entrou na jogada e ingressou com a Ação Civil Pública que tramitou na Seção Judiciária do Estado de Mato Grosso, resultando num acordo judicial cujo primeiro item é claríssimo quanto ao compromisso de não fatiar o licenciamento ambiental da estrada e quanto ao grau de complexidade dos estudos que devem ser exigidos no caso da duplicação: “consultadas as partes presentes, houve o consenso de todos da necessidade e da indispensabilidade do EIA/RIMA para o projeto da obra – trecho do entroncamento com a estrada do Manso – MT-351, até a cidade de Chapada dos Guimarães”, diz a decisão.
O Portão do Inferno voltou a ser a dor de cabeça do governo do estado quando, em 2013, tentou-se conceder a MT-251 com a implantação de praças de pedágio. Isso obrigava ao governo de Mato Grosso a discutir opções de implantação de túnel ou viaduto. Nesse sentido, foi firmada uma cooperação entre o ICMBio e o governo de Mato Grosso em 2016 em que se elaborou o “‘Estudo Geológico voltado à Caracterização de Áreas de Risco e Proposição de Locais e Estruturas Apropriadas para subsidiar Empreendimentos Turísticos no ‘Portão do Inferno’, Chapada dos Guimarães (MT)”, indicando diretrizes voltadas ao controle de riscos a acidentes e à elaboração de projetos, que previram a instalação de estruturas afastadas dos locais de quebra de relevo.
Em 2017, a Sinfra apresentou o EIA da duplicação da rodovia MT-251 entre o Trevo do Manso e a cidade de Chapada dos Guimarães. De acordo com a IT 20/2024 do ICMBio, os documentos apresentados traziam o Portão do Inferno e a Mata Fria como pontos de discussão de alternativas locacionais ou tecnológicas específicas, que incluíam túnel em arenito de 500 m, desbaste lateral da elevação e extensão de 100m; viaduto estaiado e extensão de 250 m para Mata Fria, simples alargamento de pista e viaduto de concreto e extensão de 300m. E, como conclusão, o diagnóstico realizado no âmbito do EIA constatou que a melhor alternativa correspondia ao viaduto para o Portão do Inferno, afirmando também que “em razão da fragilidade ambiental dessas áreas [do Portão do Inferno], bem como de sua importância no contexto regional do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, toda e qualquer intervenção nas mesmas deve ter como premissa a sua conservação’ (p. 176). No quadro 1 são apontados elementos para decisão que indicam a construção de um viaduto estaiado, afastado da atual pista existente, em razão dos objetivos do parque nacional”.
É de se espantar que, sete anos depois, a mesma Sinfra defenda frente ao mesmo ICMBio e à mesma população que a opção do retaludamento das encostas do Portão do Inferno é a única solução para a mitigação de riscos referentes à queda de blocos rochosos na rodovia.
Mas a história ainda prossegue. Em 2017, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento do Turismo de Mato Grosso (Sedtur) apresentou projetos de revitalização do Portão do Inferno de autoria da Associação Mato-grossense de Municípios (AMM) ao Ibama, prevendo a instalação de passarelas e deques de contemplação do local. O processo foi abandonado depois que o Ibama e o ICMBio identificaram pendências, que não foram solucionadas. Aí, em 2019, o governo de Mato Grosso tentou de novo. Fez um projeto de complexo turístico no Portão do Inferno, incluindo passarela de vidro para contemplação sobre o abismo, instalação de praça e trilhas, estacionamento e lanchonete. O ICMBio solicitou estudos de impacto na paisagem e estudos geológico-tectônicos. Mas, em 2022, após a apresentação do relatório Parcial do Estudo de Caso do Portão do Inferno, elaborado pela Companhia Matogrossense de Mineração (Metamat), não houve novas manifestações no processo por parte do estado.
Parece que agora foi revelada a peça que faltava para compreender porque o retaludamento surgiu e se sustenta como um trunfo inegociável. Só ele, sob a conveniência de um decreto de emergência e um estado de terrorismo implantado na sociedade sobre risco de desmoronamento ao estilo Capitólio, tem sido bem sucedido em superar o grande “entrave” do Portão do Inferno nas diversas tentativas empreendidas pelo estado de Mato Grosso para duplicar a rodovia, fatiando e engolindo a legislação ambiental.
*Andreia Fanzeres é membro do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad) e do Observatório Socioambiental de Mato Grosso (ObservaMT).
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