O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), divulgou na última sexta-feira (14) uma minuta de proposta legislativa para ser debatida na mesa de conciliação sobre a Lei do Marco Temporal. O encontro está agendado para às 9h desta segunda-feira (17).
A proposta, composta por 94 artigos, reúne sugestões de órgãos governamentais, entidades da sociedade civil e partidos políticos que discutem as mudanças nos direitos indígenas aprovadas pela Lei 14.701/2023, a lei do marco temporal para demarcação de territórios indígenas. O movimento indígena a classifica como a “lei do genocídio”, devido aos impactos que pode gerar sobre a demarcação de terras tradicionais.
Um dos pontos controversos do texto apresentado por Mendes é a possibilidade de exploração de minerais estratégicos em terras indígenas. Segundo a minuta, a exploração desses recursos seria considerada de “relevante interesse público”, abrindo caminho para a realização de atividades minerárias nos territórios, o que hoje é proibido pela Constituição.
O artigo 21 da proposta foi baseado em uma sugestão do advogado Luís Inácio Lucena Adams, representante do Partido Progressista (PP) na mesa de conciliação (leia mais abaixo). Adams também advoga para a mineradora canadense Potássio do Brasil, que possui projeto aprovado para a instalação de uma mina sobre um território reivindicado pelo povo Mura, no município de Autazes, Amazonas.
Caso a proposta de Gilmar Mendes avance e seja encaminhada ao Congresso Nacional, a Potássio do Brasil poderá ser uma das principais beneficiadas. Isso porque, em 2021, o governo federal incluiu o potássio na lista de minerais estratégicos, recursos classificados como essenciais para a segurança econômica, industrial e tecnológica de um país. Em virtude desse papel estratégico, tais minerais poderão ser considerados de “relevante interesse público”.
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Mina de potássio é questionada pelo MPF
O Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação judicial pedindo a suspensão do licenciamento estadual do projeto em Autazes, apontando uma série de irregularidades. Entre as acusações contra a mineradora, destacam-se fraudes no processo de consulta aos indígenas, tentativas de suborno a lideranças para obter consentimento e o fracionamento irregular do licenciamento para minimizar os impactos ambientais aparentes. O MPF também alerta para riscos ambientais como afundamento do solo e contaminação hídrica, além da mineração em terras indígenas ser inconstitucional.
Apesar das denúncias de violações dos direitos do povo Mura, a Potássio do Brasil iniciou os trabalhos na região com o respaldo do governo do estado do Amazonas, que defende a viabilidade do empreendimento e concedeu as licenças necessárias para a instalação da mina.
O projeto prevê a extração anual de 2,4 milhões de toneladas de sais de potássio para produção de fertilizantes, com a produção já contratada pelo grupo Amaggi, da família do ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi. A estrutura inclui a construção de uma mina subterrânea a 800 metros de profundidade, túneis de acesso, uma planta industrial para produção de fertilizantes, depósitos a céu aberto para descarte de rejeitos e um porto no rio Madeira para escoamento da produção.
O território é reivindicado pelos Mura desde a década de 1990, mas o processo para demarcação do território só foi instaurado em 2003. Mesmo assim, o processo ficou parado no órgão até o ano passado, quando foi constituído um grupo de trabalho para realização de estudos antropológicos e cartográficos para demarcação da terra.
De acordo com a Constituição brasileira, a mineração dentro de terras indígenas é proibida e só poderia ser autorizada com aprovação de uma emenda na Constituição pelo Congresso.
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Advogado de mineradora na conciliação
O advogado Luís Inácio Lucena Adams tem sido um ator importante para a liberação da mineração nas terras indígenas do povo Mura. O advogado assessorou a mineradora canadense na obtenção das licenças junto ao governo do Amazonas e tem sido participante ativo em audiências públicas e reuniões que discutem o tema.
Segundo consta na ata da reunião da última segunda (10), que recolheu as propostas na mesa de conciliação, o advogado justifica a mineração em terras indígenas para “atividades que tenham por objetivo garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Em audiência no Senado sobre a exploração de potássio no Brasil, em novembro de 2023, dessa vez convidado como ex-advogado da Advocacia-Geral da União (AGU), Adams criticou às ações judiciais que visam garantir os direitos indígenas sobre o território Mura, e disse que as ações do MPF para a demarcação do território são“ativismo” para “obstrução de uma ação desenvolvimentista”.
“Nada justifica o uso do Estado para fins que não são públicos, porque esse [demarcação do território Mura] não é um fim público. A Justiça brasileira é um espaço de Justiça, não espaço de confronto, é um espaço de pacificação, não espaço de escalada de conflito, e a função do juiz é promover essa pacificação”, defendeu durante a audiência.
Quando esteve à frente da AGU, Adams foi um dos principais defensores da conciliação para resolução de conflitos entre entes federais – solução que agora se pretende aplicar ao caso da lei do marco temporal.
Como advogado-geral da União, Adams conduziu importantes casos no judiciário, sendo responsável por coordenar o acordo ambiental entre o governo federal e as mineradoras Samarco, Vale e BHP no rompimento da barragem em Mariana, em 2015, em Minas Gerais. Ele também atuou no processo de licenciamento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
Conciliação foi provocada por PP
A lei 17.701/2023, que estabeleceu a tese do marco temporal, determina que só podem ser consideradas terras indígenas as áreas ocupadas na data de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
O projeto de lei foi aprovado no Senado apenas uma semana após o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitar a tese do marco temporal por ser inconstitucional. A lei chegou a ser vetada pelo presidente Lula (PT), mas o veto foi derrubado após uma forte campanha encabeçada pela Frente Parlamentar Agropecuária (FPA).
Além de estabelecer a data limite para o reconhecimento dos territórios indígenas, a lei promove a abertura de territórios para empreendimentos agropecuários, exploração de recursos naturais e projetos de infraestrutura.
Após a aprovação, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ingressou com uma ação de inconstitucionalidade, alegando a decisão do próprio STF sobre a tese do marco temporal. O PSOL, a REDE, o PT, PCdoB e PV, também pediram a inconstitucionalidade da nova legislação. No entanto, uma outra ação promovida pelo PP, PL e Republicanos, pediu o contrário, que a Corte reconheça as mudanças.
Em abril do ano passado, diante das diferentes ações sobre o tema, o ministro Gilmar Mendes instituiu a mesa de conciliação para buscar um entendimento sobre as alterações promovidas pelo Congresso para as terras indígenas. Apesar de ter como objetivo reunir os dois lados do conflito, os representantes dos povos indígenas se retiraram da conciliação em agosto do ano passado, apontando “condições inaceitáveis” para a conciliação.
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Na decisão que publicou a minuta da proposta de conciliação na última sexta (14), Gilmar Mendes afirma que a proposta não é definitiva, mas representa um esforço para aproximar as partes envolvidas. “Rememoro a todos que a proposta não é o ponto final dos trabalhos, mas tentativa de aproximação das partes e, por esse motivo, sujeita às modificações e aprimoramentos pelos membros da Comissão”, afirmou.
O magistrado também destacou a importância do diálogo na construção de uma solução para o impasse. “O objetivo principal da Comissão é a obtenção de consenso entre seus membros acerca dos problemas submetidos à sua apreciação”, pontuou. Ele explicou ainda que, caso não haja acordo sobre determinados pontos, “as redações sobre as quais recaia divergência entre os membros da Comissão serão objeto de votação, observada a regra da maioria, com o registro pormenorizado das posições adotadas, para conhecimento da sociedade e do Plenário do Supremo Tribunal Federal”.
Além da proposta do PP para autorizar a mineração em terras indígenas, a minuta divulgada por Mendes também inclui propostas apresentadas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), pela deputada federal Célia Xakriabá (PSOL), que representa a Câmara dos Deputados, e pelos seguintes partidos: Partido Democrático Trabalhista (PDT), Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Partido Verde (PV), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido Liberal (PL) e Partido Republicano (PR).
*Publicada originalmente em Infoamazônia.