Grandes obras de infraestrutura estimularão mais desmate, agronegócio e mineração no Pantanal e no Cerrado. Fontes avaliam igualmente que dragagens de rios serão mais caras e frequentes sem frear a sedimentação excessiva na Bacia do Alto Paraguai.
Com sua concessão ao setor privado prevista para este ano pelo Governo Federal, a hidrovia no Rio Paraguai facilitará o escoamento da produção e aquecerá economias destruidoras da vegetação nativa. Isso também será estimulado pelo Corredor Bioceânico, de Santos (SP) a Campo Grande (MS) e ao Chile, às margens do Pacífico.
“Haverá mais pressão para converter áreas naturais sobretudo para o agronegócio, como de soja, milho e carne”, projeta Stefania de Oliveira, coordenadora técnico-científica da ong Instituto Socioambiental SOS Pantanal.
“É uma pressão que ocorrerá no Brasil e nos países vizinhos”, lembra a doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora associada na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Ambas as estruturas logísticas podem encolher custos financeiros e tempo no transporte de itens agropecuários e minerais. Estradas e ferrovias do corredor devem encurtar em 2 semanas a chegada do comercializado pelo Pacífico, em relação ao despachado por Santos (SP).
De olho em vantagens como essas, a mineração seria uma das maiores fontes de pressão para tornar o Rio Paraguai navegável o ano todo, pontua a pesquisadora da Embrapa Pantanal cedida ao Ministério Público Federal (MPF) no Mato Grosso do Sul, Débora Calheiros.
“A navegação sempre ocorreu, mas respeitando os meses de cheias e de secas do manancial”, lembra a também doutora em Ciências pela USP. “Agora, querem ‘privatizar’ o rio para explorá-lo ao máximo”, diz.
Uma das interessadas na navegação perene no Rio Paraguai é a LHG, que extrai minério de ferro e manganês em Corumbá. Ela é ligada ao Grupo J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. Outras mineradoras atuam na bacia pantaneira, como vem mostrando ((o))eco.
Conforme declarações do deputado estadual Paulo Duarte (PSB) apuradas por ((o))eco, a expansão do setor reverterá aos cofres municipais até R$ 120 milhões ao ano, correspondentes a 12% do orçamento anual de Corumbá. O Grupo J&F não se pronunciou até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.

Seca planejada
Os previstos mais de 30 pontos de dragagens contínuas, remoção de rochas e retificação de curvas no Rio Paraguai irão acelerar a saída de água e arriscam acabar com as cheias e vazantes no Pantanal todo, não só junto aos 600 km da hidrovia, de Corumbá a Porto Murtinho, na fronteira com o Paraguai.
“Não há estudos cumulativos sobre o que isso causará no bioma”, ressalta Débora Calheiros (Embrapa/MPF).
Frente ao cenário, Stefania de Oliveira (SOS Pantanal) avalia que o sistema fluvial será duramente atingido pelas ações no rio somadas a planos como mais hidrelétricas em cursos d’água rumo ao Pantanal. “Desconsiderar a escala da Bacia é uma grande lacuna nos projetos e estudos [de infraestrutura]”, diz.
A região tem ao menos 55 usinas de pequeno a grande portes já operando, duas em construção e outras 70 em estudos, conforme levantamentos da Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa (Abragel) e do Observatório do Pantanal.
Na prática, quem levar a concessão hidroviária deverá apresentar estudos de impacto para sua licença ambiental. Como o Rio Paraguai é federal, corta mais de um estado, o processo passará pelo Ibama.
A autarquia informou que, após receber os estudos, terá até um ano para analisá-los, realizar audiências públicas e emitir um parecer sobre as intervenções no Rio Paraguai. “O prazo total para a conclusão do processo pode se estender além dos 2 anos”, destacou.
O Ibama destacou, ainda, que negou pedidos para dragagens emergenciais, “tendo em vista a necessidade de cumprir rigorosamente os critérios técnicos e ambientais exigidos para a proteção do ecossistema do Pantanal e da Bacia do Paraguai”.

Contudo, esse caldo teria mais ingredientes. Entidades civis pediram ao MPF (Ministério Público Federal) que faça valer uma decisão de agosto passado, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), para que estudos sobre a hidrovia pesem impactos ao longo de todo o trecho brasileiro do Rio Paraguai.
“Se isso não acontecer, empresas que adentrarem o edital podem ser alvo de insegurança jurídica”, analisa Débora Calheiros (Embrapa/MPF).
Atender à recomendação judicial também reduziria impactos sobre a conservação da biodiversidade e sobre as pessoas que mais dependem da saúde ambiental pantaneira, como pescadores, extrativistas, indígenas e ribeirinhos.
“Também podem ser afetados o turismo, o abastecimento hídrico e serviços ecossistêmicos como a regulação do clima e a manutenção da qualidade do solo, atingindo o próprio agronegócio”, lembra Stefania de Oliveira (SOS Pantanal).
Pesando tudo isso, o presidente do Instituto Agwa, ong baseada em Campo Grande (MS), Nelson Araújo, pondera que alterar o regime hídrico pantaneiro será uma irresponsabilidade bem maior que as pretensões de governos e setor privado para abertura da hidrovia.
“Não acredito que isso seja permitido, mas, se for, quem responderá por isso?”, questiona.

Enxugar gelo
Outro fator que deveria pesar nos projetos e licenciamento de obras na bacia pantaneira é o potente assoreamento de seus cursos d’água, avaliam fontes ouvidas pela reportagem. Sem conter as fontes de erosão, as dragagens do Rio Paraguai podem se tornar mais custosas e frequentes.
“Há um fluxo fantástico de sedimentos erosivos indevidos e isso não está sendo levado em conta, só seus efeitos”, alerta Nelson Araújo (Instituto Agwa). “A calha do Rio Paraguai está comprometida. O que tem de areia é um absurdo”, agrega.
Segundo ele, as maiores fontes de sedimentos para rios como Taquari, São Lourenço, Paraguai e Cuiabá são o desmatamento e a pecuária no planalto de Cerrado que circunda a planície pantaneira.
“O descaso com essas fontes pode custar muito caro, pois continuará vindo areia do mesmo jeito”, afirma. “Os planos para a hidrovia deveriam olhar para isso, mas isso mexe com mais gente, com mais dinheiro”, descreve Araújo.
O MapBiomas aponta que, desde 1985, foram eliminados 54 mil km2 de Cerrado na Bacia do Alto Paraguai – área pouco maior que a do Rio Grande do Norte. No mesmo prazo, a planície pantaneira perdeu 18 mil km2. Pastagens e agricultura tomaram praticamente todo o desmatado, nas duas regiões.

Além disso, a colossal sedimentação tem gerado prejuízos Rio Paraguai abaixo. Nos últimos dias de março, mais de 500 embarcações encalharam ao longo de 350 quilômetros do manancial, entre o Paraguai e a Argentina. As causas seriam a seca e o assoreamento, disse o site noticioso Paraguay Fluvial y Logística.
A concessão da hidrovia no Rio Paraguai é a primeira do tipo prevista no país pelo Governo Federal, junto com esperados R$ 64 milhões em investimentos privados nos primeiros 5 anos de contrato.
Outras cinco concessões podem ocorrer até o final do ano que vem, incluindo na Lagoa Mirim, no Rio Grande do Sul, e nos rios Tocantins, Amazonas, Madeira e Tapajós, na Amazônia.