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Javali: espécie exótica? Sim. Praga? Talvez. Desculpa para a caça? Com certeza

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Javali: espécie exótica? Sim. Praga? Talvez. Desculpa para a caça? Com certeza

As forças e interesses que trouxeram os javalis para as Américas no passado não se importaram com sua capacidade invasora. No presente, a análise de seu risco de bioinvasão desconsidera que os interesses de outrora não se perderam no tempo. O agronegócio, quando ainda nem ostentava este nome, investiu no javali como uma carne gourmet alternativa ao porco. Na década de 1990, muitos se lembrarão dos apelos comerciais de uma carne mais saudável. Caso recuemos ainda mais, chegaremos aos caçadores que tinham e mantêm o interesse no javali como uma espécie de caça, seja para troféu ou para carne. Assim ocorre na Argentina e, pretendem, que seja assim no Brasil. É interessante, senão irônico, que agora o agronegócio eleja o javali como inimigo quando antes incentivou sua criação no país. Mais interessante ainda é a categoria de caçadores que se apresentam como preocupados com o agro e com a biodiversidade quando, na verdade, reproduzindo o que ouvi à exaustão em um congresso de caça em Goiânia: “o javali é o nosso melhor funcionário.”

Realmente não há dúvidas disso: sem o javali, o “C” de caçadores dos CACs [Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador] estaria fadado à extinção após a decisão do TRF4 que, acertadamente, identificou que a caça é inconstitucional, pois é uma atividade intrinsecamente cruel. A caça “esportiva”, quando se mata por prazer e diversão, somente persistia como caça de pena (aves), não de pelo (mamíferos), no Rio Grande do Sul.

A categoria dos CACs e a indústria de armas e munição trabalham para que o javali abra a porteira para a “boiada” da caça passar no Brasil. Mas, ao invés de bois, teremos o javali, seguido do cervo Axis, depois provavelmente búfalos e, então, se alcançariam os silvestres: capivaras, catetos, queixadas e onças.

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Destruição de pés de milho por javalis. Foto: Felipe Pedrosa

Explico: a principal justificativa e pressão para o controle do javali decorre de seus danos à lavoura. Catetos, queixadas e capivaras também, eventualmente, causam prejuízo a produtores. A única diferença é que o javali é exótico. Percebem que a desculpa de caçar para proteger a lavoura não se aplica somente ao javali? Nesse sentido, o javali seria apenas uma etapa de um complô, de uma engendrada conspiração para instituir a caça no Brasil. Mas não se limita a isso. Se agricultores podem defender sua lavoura, por que não poderia um pecuarista fazer o mesmo? Com essa desculpa, abriríamos a caça de onças, o maior felino pintado do mundo, um troféu cobiçado por inúmeros caçadores internacionais. Se o pecuarista poderia abater o felino, por que não fazê-lo ganhando dinheiro com um safári? Não demoraria muito para surgir outra categoria: a caça “enlatada”. Já que se autorizou o abate de onças, por que não criá-las para serem abatidas sob o falso pretexto de caça e conservação? A África do Sul faz isso com leões, e a Argentina, com onças-pardas. Os animais são criados e os filhotes amansados para que, quando adultos, possam ser soltos e imediatamente abatidos por caçadores que pagaram — isso é o que se chama de caça enlatada. Reproduzir onças sem intenção de reintrodução pode ter como interesse justamente a preparação para esse tipo de atividade.

É ingenuidade tratar a situação do javali sem considerar todos os interesses que existem por trás. Proprietários rurais devem ter o real interesse em controlá-los, mas os caçadores, como categoria, possuem o interesse em continuar caçando e, para isso, são necessários javalis.

Mas não apenas um ou dois, ou ainda poucos animais. É preciso que existam milhares ou, ao menos, a percepção ou o temor de que existam milhares ou milhões. Dizer que se necessita matar 1 milhão de javalis incute o temor necessário. Sem isso, sem o receio, a atividade de caça de javalis torna-se dispensável.

1. Caça “esportiva” vs. controle efetivo

No caso de uma real preocupação com a biodiversidade, aqueles que se apresentam para caçar javalis também apareceriam com enxadas para capinar o capim-gordura que invade, por exemplo, o cerrado ou, ainda, com espátulas para raspar o coral-sol. Porém, não vejo essa disponibilidade e preocupação com o controle de outras espécies invasoras.

Os caçadores de javalis — ou “manejadores”, como nomeia a Instrução Normativa — não praticaram caça de controle. Praticaram a caça “esportiva”, em busca de troféus. Assim comprovam os primeiros dados extraídos do SIMAF (sistema de gestão que registra caçadores e resultados das caçadas). Esses dados revelaram que 70% dos animais abatidos eram machos adultos, o que caracteriza caça de troféu. É importante lembrar que a razão sexual em mamíferos é determinada geneticamente, sendo XX as fêmeas e XY os machos. Em uma caça aleatória, esperaríamos 50% de abates de machos e 50% de fêmeas.

Em um controle populacional, deveríamos ter predominância de fêmeas abatidas. Mas os dados demonstraram uma caça “esportiva” em busca de troféus, focada em machos adultos.

É provável que, doravante, alertados sobre como os dados os denunciaram, os caçadores passem a falsear os registros para se aproximarem do resultado esperado em um controle.

A liberação da caça ao javali, portanto, não tem servido ao seu controle, mas tem sido eficiente em promover a organização política dos caçadores que, escondidos atrás de uma pretensa atividade de controle de espécies exóticas, têm conseguido se divertir matando javalis e colecionando troféus. A tragédia, porém, não se limita à ineficiência da caça no controle desses animais: sua dispersão pelo Brasil é algo claramente artificial. Ou seja, também está sendo promovida pelo homem. O padrão de dispersão do javali deveria obedecer a uma ocupação territorial contínua. No entanto, manchas isoladas de ocorrência no Nordeste e no Norte demonstram que os animais foram ali inseridos sem que os territórios do entorno já houvessem sido ocupados. A pergunta é: a quem interessa e quem está espalhando o javali pelo Brasil?

Essa questão não se restringe ao javali; ela alcança outras espécies invasoras, como o cervo Axis. Afinal, se com o javali a caça “esportiva” travestida de caça de controle deu certo, por que não seguir o mesmo caminho com o cervo?

2. Riscos e interesses em jogo

A discussão que se enfrenta agora, acerca do controle do javali e da evidente ineficiência da caça, é resultado, também, de medidas sem o devido embasamento técnico para a tomada de decisões. Quantos javalis existem no Brasil? Não sei. Quantos havia quando a caça nacional foi liberada em 2013? Não sei. Mas não apenas eu: ninguém sabe. Qual o tamanho do prejuízo econômico causado pelos javalis às lavouras brasileiras? Também não se sabe. O prejuízo que causam é relevante nacionalmente? Provavelmente não. Qual o verdadeiro impacto na biodiversidade? Essas questões prévias não foram equacionadas. Mas pode-se afirmar que a caça não é um método de controle eficaz. Isso já era conhecido em 2013, quando ela foi liberada, mas não foi considerado.

O armadilhamento, isto é, a captura em armadilhas, consegue conter toda a vara. A caça, porém, seja com cães, com ceva ou de facheamento, tem a característica de abater poucos animais e espalhar o grupo.

Desde que o controle via caça começou, o resultado foi o registro de javalis em mais municípios e regiões do que antes de a caça ser liberada. Isso é fato, assim como o é que a caça praticada foi de troféu, não de controle.

No que concerne à caça com cães, em 2019 foi liberada a caça com cães de agarre. Nessa modalidade, os cães lutam com o javali, que é finalizado (morto) pelo caçador. Apesar de sua liberação em norma, essa modalidade afronta o art. 225 da Constituição Federal, é tipificada como crime no art. 32 da Lei n° 9.605/98 e a conduta de luta entre animais é expressamente declarada como maus-tratos, segundo a Resolução n° 1.236/18 do Conselho Federal de Medicina Veterinária. Nesse tipo de caça, também não há garantia de que os cães não atacarão catetos ou queixadas ao invés de javalis. Esses maus-tratos aos cães, na verdade, constituem um capítulo à parte na saga dos javalis e escondem uma bioinvasão talvez ainda mais perigosa: cães treinados para caça se perdendo ou sendo abandonados no mato. Nem todos usam coleira com GPS e nem todos voltam ou são encontrados ao final da caçada.

É óbvio que, após o desastre da gourmetização da carne do javali, o agronegócio o baniu e agora tem preocupação sanitária com o rebanho suíno, além de questões de proteção das lavouras de milho, por exemplo.

Não obstante, os javalis continuam sendo bons funcionários para os caçadores que, sem eles, “teriam que voltar a dar tiro em estandes”.

Além disso, são úteis para a indústria de armas e munições, que certamente prefere e lucra mais com a caça. Além desses interesses óbvios, ainda existe o interesse, como do governo anterior, de armar a população por meio de uma desculpa e de uma premissa equivocada de estratégia de segurança pública. Nesse sentido, estar no “C” de caçador é mais interessante do que no “A” de atirador de um CAC. O caçador, a priori, poderia se deslocar com sua arma a qualquer lugar, enquanto o estande de tiro tem endereço certo.

Assim, é necessário analisar o javali além do próprio javali. Ele é um bom funcionário dos caçadores, talvez realmente o melhor, afinal possibilitou a abertura da caça no Brasil. Essa caça, que deveria ser de controle, revelou-se uma caça “esportiva” – nenhuma surpresa – embora a desculpa do controle seja quem a sustenta. O javali foi trazido da Eurásia para as Américas, ele não veio nadando. Seu interesse é apenas sobreviver. Pouco se fala sobre a sua proteção como indivíduo, mas ela deve figurar também no debate. Por trás de sua existência, muitos interesses humanos se revelam. Espero que as pessoas e mesmo o agronegócio não sejam ingênuos a ponto de não perceberem isso.

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