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Mercantilização e caos no licenciamento ambiental brasileiro

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Mercantilização e caos no licenciamento ambiental brasileiro

O licenciamento ambiental no Brasil está sendo entregue ao mercado e sem controle social.

O projeto de Lei intitulado de Lei Geral do Licenciamento Ambiental, aprovado nesta quarta-feira (21) no Senado (PL 2159/2021), possui características de desregramento ambiental. Cria subterfúgios e facilidades para licenciar, o que causará perda de visão na avaliação de impactos, aumentando a incidência de danos ambientais.

O desregramento interessa especialmente ao setor do agronegócio, diretamente beneficiado ao ganhar carta branca para empreender.

Para um país com enorme dificuldade de implementar leis de proteção ambiental (enforcement) e que convive com um mar de desconformidades sem solução, o PL abre definitivamente a porteira da insustentabilidade e só poderá ser refreado em função de sua evidente inconstitucionalidade.  

Para compreender os desvios que estão ocorrendo é preciso recorrer ao contexto ambiental do Brasil. Trata-se de país continental com vulnerabilidades ambientais perfeitamente mensuráveis em seis diferentes biomas já drasticamente alterados e com sinalizações de pontos de não-retorno, em contexto global de emergência climática.

A complexidade dessa teia de vida, de ricos ecossistemas duramente atingidos por séculos de espoliação predatória, demonstra necessidade de cuidados urgentes com a vulnerabilidade das populações e de seu entorno natural, de aspectos biofísicos e bioquímicos.

Há muito tempo a degradação tem levado o país a encarar a necessidade de imprescindíveis restaurações ambientais, como ocorre na Amazônia. Neste contexto impactado, onde condições ambientais remanescentes se revestem de mais valia, licenciamento ambiental não é algo passível de simplificação, mas sim de maior capacidade de aferição preventiva.

Na realidade natural impactada para além do limite das alterações aceitáveis, o correto dimensionamento dos impactos ambientais é o único caminho para prevenir danos e garantir sustentabilidade.

O extrapolamento de limites ambientais não é prerrogativa brasileira. As condições vitais dos ecossistemas planetários na atual realidade civilizatória, que apresenta potencial para provocar múltiplas alterações decorrentes do modo de produção e de vida da sociedade contemporânea, exigem abordagem estratégica, transição ecológica e permanente contenção de impactos ambientais. Esses desafios estão perfeitamente retratados nas convenções internacionais sobre biodiversidade, desertificação, clima, oceanos, contaminação química, entre outros.

Estudos atualizados do Centro de Resiliência de Estocolmo sobre fronteiras planetárias em rompimento, assim como a avaliação sistêmica dos pontos de não-retorno (tipping points), possibilitam visão sobre a gravidade do problema global e a urgência de medidas de correção e reparação. Planetary boundaries – Stockholm Resilience Centre

O Brasil possui deficiências graves em seu planejamento territorial, com histórico que ainda caminha à mercê de dinâmicas econômicas extrativistas e expansões urbanas desordenadas. Sob contínua e expansiva matriz econômica primária, a solução integral encontra resposta especialmente na avaliação e contenção da sinergia e cumulatividade dos impactos ambientais.  

Na ausência do planejamento, o licenciamento se reveste de contorno complementar, como avaliação estratégica para manter condições ecossistêmicas essenciais e suprir de forma pontual etapas que foram prescindidas. Entre essas, avaliações sobre capacidade de carga dos ecossistemas implicariam orientação apropriada para o licenciamento, o que inclui a escolha de alternativas locacionais e dimensionamento adequado de projetos.  

Já afirmei por diversas vezes que é cada vez mais comum verificar novos empreendimentos que se assemelham à tentativa de colocar jamantas em pequenas garagens, garagens que estão cada vez menores. É preciso avaliar não apenas os impactos pontuais, mas o seu conjunto. Esse é um aspecto presente no modelo da agricultura extensiva do Brasil, que o PL acaba de liberar do licenciamento.

Os instrumentos econômicos utilizados no Brasil deveriam ser corretivos, mas estimulam fortemente o setor primário, a produtividade e a exportação de commodities, sem atuar na correção de rumos, sem desestímulo, com restrições de financiamento, para processos impactantes que degradam ecossistemas. Assim, a economia voltada à agricultura e à pecuária promove crescimento sem qualidade. Com a nova proposta que liberou geral, será como usar vitaminas quando também se necessita de antibiótico.  

Neste cenário de crescimento predatório, lacunas de controle e perda de limites, serão turbinadas milhares de fontes de emissão que saturam a atmosfera com gases efeito estufa (GEE) a partir de desmatamento e extensiva produção agropecuária; da mesma forma, aumentará a poluição por agrotóxicos, esgotos, efluentes industriais e carga difusa, poluindo e inviabilizando as águas brasileiras.

De outro lado, a proposta possibilitará iniciativas de inserção de empreendimentos impactantes e de alto risco em ecossistemas frágeis, como já ocorre com a extração de petróleo na região da foz do rio Amazonas, na Margem Equatorial do Brasil. A experiência internacional demonstrou, no Golfo do México, no Alasca e mesmo nas praias do Nordeste brasileiro, o quão impactante podem ser vazamentos de petróleo em ambiente marinho. Sem esquecer o reconhecimento imperioso, já acordado na esfera da governança global, sobre o banimento dos combustíveis fósseis.

O Brasil não é neófito na experiência com danos ambientais. A trágica situação passada de Cubatão; os desastres anunciados em função de riscos previsíveis como ocorreram em Mariana e Brumadinho; os casos comprovados de contaminação química e por agrotóxicos; a atmosfera saturada por poluentes atmosféricos de metrópoles como São Paulo; tudo isso são exemplos de impactos que serão agravados sem as devidas avaliações ambientais, que poderão afetar a vida e a qualidade de vida de nossas comunidades.      

Para prevenir esses danos, os princípios da sustentabilidade e da avaliação prévia de impactos ambientais estão bem clarificados no Art.4º, I, da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6938/81), que aponta “a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico”.

Note-se que o objetivo principal se encontra no final da frase. A proteção do meio ambiente e o equilíbrio ecológico são condições basilares para o desenvolvimento, de forma que este não se torne mero crescimento. O direito ao meio ambiente equilibrado e a saudável qualidade de vida precedem interesses econômicos.

As determinações constitucionais apontam a essencialidade da proteção da vida, que exige e não pode prescindir da participação do povo. Por isso que o licenciamento brasileiro ganhou contornos imprescindíveis de participação social.  

A implementação desses princípios constitucionais esbarra nas lacunas de planejamento e na aplicação de boas diretrizes para a gestão territorial. Nesse cenário, a pretensão de empreendimentos mal dimensionados é apresentada à sociedade sem maturidade político-ambiental e fica entravada nos órgãos ambientais. Estes, por sua vez, se apresentam cada vez mais sucateados por falta de especialistas e condições operacionais.

Assim, o Brasil deve caminhar fortemente na capacitação científica e em meios de percepção social em seus sistemas de avaliação ambiental, mas não o faz. Diante dos entraves de condicionantes ambientais e sucateamento constante nas estruturas dos órgãos de avaliação, o escapismo foi evidente: o PL do Licenciamento prescinde da avaliação implementando diretrizes de autolicenciamento e banindo participação social, em evidente retrocesso normativo. Para um país com constituição ecológica e cidadã isso é, definitivamente, inconstitucional.

O fato é fácil de compreender quando se avalia o Congresso Nacional em sua composição repleta de conflitos de interesses público-privados, que frequentemente geram os conhecidos “jabutis”, oportunismo casual dentro de projetos de lei, caracterizando sistema legislativo vulnerável à ambição predatória e carente de características éticas e de controle social.

A técnica de inserir “jabutis” é fato conhecido no Brasil. No presente caso inseriram todo o bando.

O PL recebeu várias emendas de última hora que criaram preciosidades dignas do desenvolvimentismo do século XX. Por exemplo, a modalidade da “Licença Ambiental Especial”, poder concedido ao órgão licenciador para priorizar a avaliação de atividade ou empreendimento considerado “estratégico”, ou seja, grandes obras de infraestrutura que são as que representam maior impacto e em regiões de alta vulnerabilidade ambiental como, por exemplo, na Região Amazônica.

A proposta da Lei Geral do Licenciamento Ambiental transborda inconstitucionalidade. Mina o princípio da gestão participativa, ao excluir do rito a obrigatoriedade do licenciamento participativo para empreendimentos impactantes que afetarão comunidades e o meio ambiente. 

De outro lado, a simplificação do rito de licenciamento irá desconsiderar aspectos sinérgicos e cumulativos de empreendimentos colocalizados, sem percepção prévia sobre os impactos que serão gerados.

Além disso, a figura do autolicenciamento se assemelha à fábula de colocar a raposa para tomar conta do galinheiro. Seria como se, sob a alegação de demora na emissão das carteiras de motorista, se adotasse nova regra para dirigir ônibus e jamantas: o cidadão apenas precisa declarar que está apto a fazê-lo.

O que era para ser uma lei geral acabou se transformando em um Frankenstein de facilidades, gerando enorme insegurança jurídica. Ao admitir genericamente a tese de “médio e baixo impacto”, joga-se no lixo a avaliação integrada de múltiplos impactos. Mas até mesmo o “médio” entra na seara de pesados impactos, como por exemplo a barragem que rompeu em Brumadinho. Para licenciar rápido e fácil, basta fatiar projetos impactantes. Para atrair empreendimentos poluidores, bastará permitir que se diminuam as exigências, com regramento que passará a ser prerrogativa do órgão licenciador, excluindo a estrutura funcional do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e o caráter normativo democrático com participação social por meio de conselhos ambientais.  

A perspectiva inicial de aprimoramento e eficiência do licenciamento, que era o espírito inicial do projeto, transformou-se em festival de facilitações, perda de qualidade e inconstitucionalidades, abandonando a perspectiva de correção de rumos.

Assim, o PL é simples de entender: trata-se da pior resolução para alegados gargalos do licenciamento, decorrente das lacunas do planejamento, da falta de pessoal e de estrutura dos órgãos ambientais. Chegamos ao banimento das regras, simplificação e autolicenciamento. Ficamos muito próximos da definição filosófica de “caos”: desordem, confusão e imprecisão, o oposto da ordem.  

A criança está sendo jogada fora com a água do banho. Cumpre à sociedade brasileira, preocupada com sua vida e futuro, tomar as providências cabíveis, já que o Congresso Nacional lançou a gestão do meio ambiente do Brasil no pântano da insegurança jurídica.

Atingir esse grau de paroxismo não é evento pontual, mas sim a demonstração e concretização de um risco político sistêmico. O Brasil tem que agir para rever e coibir tais desvios ambiental-democráticos.