A Lei Geral do Licenciamento Ambiental, PL 2159/2021, em vias de ser votada na Câmara Federal, ignora o pacto federativo e a relevância dos municípios. Desastres como o do Rio Grande do Sul são sofridos e remediados nas cidades, por quem já tem muito a fazer e poucos recursos para isso. Precisamos de um novo pacto federativo que não penalize ainda mais os municípios, mas que, com boa gestão nacional e regional de recursos naturais, apoie a gestão de quem cuida dos 87,4% de brasileiros e brasileiras que vivem nas cidades.
Contudo, o PL 2159/2021 transfere responsabilidades aos municípios sem os meios para exercê-las, e não organiza critérios mínimos de padronização ambiental a seguir. Ao invés de harmonizar os instrumentos de licenciamento, desconstrói a legislação ambiental e os fundamentos do federalismo e da justiça territorial, como apontado pela Comissão Tripartite Nacional.
Diversos órgãos têm se manifestado sobre o PL 2159/2021 ao Congresso Nacional: o IPHAN, alertando sobre os riscos ao patrimônio histórico; o Conselho de Arquitetura e Urbanismo, sobre a desorganização do ordenamento territorial; a Fiocruz, sobre os riscos à saúde pública e ao SUS; o Ministério Público Federal, sobre as inconstitucionalidades e o risco de judicialização. O que todos estes têm em comum? Essa conta será paga pelas cidades.
A exclusão da análise de impactos ambientais indiretos e sinérgicos, prevista nos artigos 13 e 25, atingirá as cidades de três formas: a primeira, pelo impacto ambiental somado de diversos empreendimentos médios, agravando a contaminação do ar, de rios, lagoas, estuários e lençóis freáticos por indústrias, matadouros, agroindústrias, e pela mineração. Alguns argumentam que os empregos e impostos beneficiarão as cidades, mas o custo para a saúde pública será das prefeituras, e o adoecimento das populações ameaça repetir o de cidades como Cubatão, nos anos 80 e 90.
É importante ilustrar o caso desta cidade, conhecida nos anos 80 e 90 como vale da morte. Cubatão, antes da criação do licenciamento ambiental, tinha mais que o dobro de mortes por câncer que o restante do país (189,5 por 100.000); os abortos involuntários e nascimentos de crianças anencéfalas eram 21 vezes maiores; e a contaminação de mercúrio no sangue de crianças, praticamente o dobro do índice máximo admitido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
O problema não é apenas o acúmulo da poluição, mas sua proximidade. Essa é a segunda forma com que as cidades serão atingidas, o artigo 16 do PL: a permissão para empreendimentos, independente de leis de uso e ocupação do solo e outorgas. Indústrias poluentes poderão se instalar vizinhas a casas, escolas, hospitais, áreas produtoras de alimentos e nascentes, desde que sejam consideradas de médio impacto. Mas não há um critério claro para esta definição, tampouco um limite de número para sua instalação. Indústrias com grande uso de água, como de refrigerantes, termelétricas e outras, poderão se instalar mesmo se isso reduzir a escassa oferta de água para a agricultura e o abastecimento até das cidades atingidas pelas estiagens cada vez mais severas.
A terceira forma, será que as cidades deixarão de contar com as compensações ambientais. Mesmo com o acúmulo de impactos e sua proximidade, estas não serão mais compensadas com benfeitorias pelos empreendimentos de grande porte por seus danos indiretos. Dois municípios atingidos por obras de grande porte ilustram bem o caso: Suape, em Pernambuco, e Altamira, no Pará. O primeiro recebeu investimentos de R$ 215 milhões, e o segundo, mais de R$ 6 bilhões em melhorias urbanas de saúde, transporte e educação, pelo aumento da população causado pelas grandes obras.
Somos um país que busca a integração e modernização de suas infraestruturas de transporte, de geração e transmissão de energia elétrica, e certamente é necessário tornar o investimento público e privado mais ágil. Mas por que são as cidades que vão assumir o custo disso, abrindo mão do já pouco que recebem? Essa conta é injusta.
O PL 2159/2021 também ameaça o patrimônio histórico e natural brasileiro, pois torna a manifestação do IPHAN não obrigatória nem vinculativa, mesmo em empreendimentos com alto potencial de impacto. Em diversos municípios, o patrimônio histórico, religioso e natural são os pilares do turismo e dos pequenos comércios e serviços locais. A destruição de sítios históricos e naturais comprometerá a identidade e o turismo de regiões como serras e litoral. Casos como os da Serra da Capivara (PI), de todas cidades históricas de Minas Gerais, de Blumenau (SC), e Gramado (RS) mostram que a proteção ao patrimônio cria desenvolvimento, trabalho e renda pela valorização da cultura local.
Vários municípios cuja economia depende do ecoturismo serão prejudicados pela má gestão ambiental, como foram, recentemente, Bonito (MS), cujas águas cristalinas ficaram barrentas pelo desmatamento, e as praias do Espírito Santo que receberam a lama de mineração contaminada de Mariana e Brumadinho. A economia do turismo é uma das que mais gera inclusão, trabalho e renda em todo o mundo, com maior potencial de crescimento no país. Por que desperdiçar isso?
Desta forma, os municípios perderão a governança sobre seus territórios e terão de lidar sozinhos com os impactos ambientais e sociais de todos os empreendimentos, sem receber contrapartidas adequadas por isso, a despeito de custearem os serviços públicos já tão sobrecarregados.
No Rio Grande do Sul, estado que mais sofreu com desastres climáticos, muito poderia ter sido feito para amenizá-los se políticas ambientais responsáveis houvessem sido implementadas a tempo. Isso não é política partidária, é sobre planejar os estados e as cidades com responsabilidade num mundo que está mudando. Isso só pode ser feito respeitando a força da natureza que todos nós vimos, com recursos adequados e com conhecimento e unidade.
Se aprovado, o PL 2159/2021 representará um grave retrocesso federativo e um prejuízo inaceitável aos municípios. A pretensa desburocratização que justifica o texto, esvazia as políticas de desenvolvimento territoriais dos municípios e sobrecarrega sua saúde pública ainda mais. A Câmara dos Deputados precisa adiar esta votação e dar mais tempo ao diálogo sobre o licenciamento ambiental, e não podem penalizar as cidades ainda mais. O licenciamento pode ser mais eficiente, mas isso não pode ser às custas da exclusão dos municípios, que não podem e não vão pagar essa conta.
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