Home Meio-Ambiente O inferno continua – ((o))eco

O inferno continua – ((o))eco

3
0
O inferno continua - ((o))eco

25 de fevereiro, 2h40 da manhã. Dois PMs estão em uma das barreiras da MT-251, dentro do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães. Choveu na cidade durante a noite anterior. Mas naquela madrugada não havia uma gota d’água. Não tinha neblina nem registro de nenhum tipo de desmoronamento, ao menos não que os PMs soubessem. E eles me impediram de passar por “ordens da Sinfra”. Como sempre, disseram que não podiam fazer nada. E que as outras pessoas que também teriam sido surpreendidas, como eu, foram para Cuiabá pela estrada da Água Fria, que aumenta em 100 km o trajeto e tem mais de 30 km de atoleiro. Aí, o constrangimento pairou no ar quando eu disse: “Moço, como é que eu vou sozinha de madrugada passar por aquela estrada?”. Com olhar complacente, eles falaram que até concordavam comigo, mas não podiam fazer nada. Perdi o voo que partiria de Cuiabá e o compromisso de trabalho. Quem vai compensar isso?

Liberacao 1 Informacao Sinfra sobre liberacao 2502
Imagem da câmera da Sinfra informando que a estrada seria liberada às 01h00 do dia 25/02.

Mais uma vez, a interdição total ocorreu sem aviso prévio à população, violando o ofício 168/2024 da Diretoria de Licenciamento Ambiental do Ibama, que solicita a manutenção do fluxo de veículos (ainda que parcial, no sistema “pare e siga”) ou a adequação do tráfego durante a realização das obras, com fechamento total apenas em casos excepcionais e previamente agendados.

Desta vez foi comigo, mas no mês passado, no retrasado e desde um ano atrás tem sido com diversos outros moradores de Chapada dos Guimarães, impedidos de passar pela MT-251, ao interesse do governo de Mato Grosso.

Suad Elkhatib e o marido, que usa uma bolsa de colostomia e precisava chegar em casa para trocá-la, não conseguiram voltar de Cuiabá no dia 5 de dezembro de 2024 pela via habitual porque a estrada tinha sido completamente interditada sem nenhuma explicação ou aviso por mais de 24 horas. O casal estava aguardando a abertura da estrada desde as 13h e se dirigiu até a Salgadeira, outro ponto de interdição da PM, próximo das 16h. “No final da tarde, quando começaram circular nos grupos que a estrada não abriria mesmo, voltamos para Cuiabá e pegamos a outra estrada [por Campo Verde]. Chegamos às 22h20”. Segundo ela, o descaso com a população é patente. “Não é só questão de ter rotas alternativas ou não, mas de eles não estarem nem aí com quem está do outro lado. Meu custo de ter dado essa volta por Campo Verde foi de um tanque e meio de combustível. Nessa rota, a gente não conhece direito a estrada. O GPS jogou a gente várias vezes em porteira de fazenda a noite, com muito caminhão e falta de sinalização. É muito bonito fazer um vídeo explicando as rotas, mas na prática isso funciona diferente”, contou.

3 Interdicao dezembro 2025 fonte Movimento Moradores de Chapada dos Guimaraes
Após chuva, governo de MT interdita estrada para Chapada dos Guimarães por mais de 24h, deixando população sem informação ou apoio à população entre os dias 5 e 6 de dezembro de 2024. Foto: Movimento dos Moradores de Chapada dos Guimarães.

“A estrada ficou interditada de 10h da manhã até meio dia do dia seguinte por pura incompetência”, continua Giselle Carvalho, que mantinha uma pousada na cidade desde 2010. Para ela, nessa história é preciso lembrar que há cobiça por ouro e garimpo no entorno do parque nacional e a intenção obcecada do governo do estado de estadualizar a unidade de conservação. No caso dela, desde que a estrada começou a ser interditada parcial ou totalmente em 2024, os prejuízos econômicos se avolumaram ao ponto de inviabilizar seu negócio e de muitos outros comerciantes de Chapada dos Guimarães. “Eu amava muito esta cidade. Achava que viveria aqui pelo resto da vida. Como a estrada fechou, a cidade ficou parecendo cidade fantasma. As pessoas ficaram com medo de passar na estrada amedrontadas pela mídia com a ideia de que aquilo ia cair. O resultado é que nós, empresários e pequenos empreendedores de Chapada, estamos completamente falidos. Tive que vender meu carro para pagar algumas contas. No final do ano, havia esperança de que o movimento ia voltar, mas quando em dezembro a empresa mexeu no morro, o governador interditou a estrada, provocando novos cancelamentos”, explica Giselle. 

O movimento dos moradores de Chapada dos Guimarães passou o ano de 2024 inteiro reivindicando mais do que o direito de passagem, e sim alguma plausibilidade na medida drástica de derrubar o morro do Portão do Inferno, um patrimônio ambiental e cultural do parque nacional, porque supostamente havia risco de desmoronamento na estrada, jamais comprovado. 

O suposto risco foi motivo de dois decretos de emergência impostos pelo governador Mauro Mendes, um em dezembro de 2023 e outro em junho de 2024, que foram editados oportuna e convenientemente para, com eles, convencerem o Ibama a optar pela modalidade simplificada de licenciamento ambiental para a obra. Tanto é assim que ambos os decretos já não estão mais válidos. Eles também serviram de pretexto para uma intervenção que beneficiou a empresa Lotufo Engenharia numa contratação sem licitação feita três meses antes de o Ibama emitir a licença de instalação. Por causa dessa pretensa emergência, não houve licença prévia nem diálogo com a população. 

Foi goela abaixo e ao arrepio da Ciência, pois a necessidade da obra que não deixa alternativas à população não é respaldada pelos maiores especialistas naquele tipo de terreno (arenito) em Chapada dos Guimarães. O Ministério Público Estadual e o Federal ingressaram com Ação Civil Pública contra o licenciamento ambiental. O juiz de primeira instância Diogo Negrisoli Oliveira preferiu acreditar na versão do estado. Os moradores de Chapada dos Guimarães e organizações da sociedade civil também entraram na Justiça em outra ação, e nem mesmo o pedido liminar para que fosse feita uma perícia que comprovasse a necessidade da intervenção com tamanho transtorno para a cidade foi acatada por ele na primeira instância. 

Desgraçadamente, o juiz justificou sua decisão dizendo que “existe risco de que a população não consiga retornar para casa, em Chapada dos Guimarães, Campo Verde, Cuiabá e região, sobretudo nos períodos de chuva”, como se esta não fosse a situação vivida por causa dessa intervenção. Mais intrigante ainda é ver que o juiz considera que é válido prosseguir com a obra porque, afinal de contas, “como já se iniciou o trabalho, haverá perda de dinheiro público, considerando o alto custo financeiro para refazer a cobertura vegetal já retirada, bem como efetuar o pagamento dos serviços já realizados pela empresa contratada para a obra”.

Enquanto isso, a Secretaria de Estado de Infraestrutura de Mato Grosso (Sinfra) instalou o que chamou de barreiras dinâmicas que, por si só, já infringiram um aspecto crucial do parque nacional: a beleza cênica do lugar. Retirou também a vegetação da encosta do morro, deixando o solo exposto, e, agora sim, susceptível a erosões, como alertaram os geólogos da UFMT não ouvidos nem pela administração pública nem pela Justiça.

Nesse meio tempo, a notícia de que o governo estadual iniciou levantamentos visando a desapropriação das margens da MT-251 só reforça a certeza de que a pressa em realizar intervenções supostamente emergenciais, que dispensaram estudos mínimos sobre os impactos sociais e ambientais no interior de uma unidade de conservação de proteção integral, tem escandalosamente ligações com a antiga intenção de duplicação da estrada. Paralelamente, no dia 6 de fevereiro de 2025, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA) reiterou interesse que o Ibama delegue a competência para licenciamento da MT-251, que corta o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, alegando “urgência em sanar diversos problemas ao longo da via”.  

4 barreiras dinamicas
Barreiras dinâmicas mudam a paisagem do Portão do Inferno. Foto: Andreia Fanzeres

Sob uma boa dose de distopia, a Sinfra submeteu ao Ibama o 4º relatório de monitoramento e acompanhamento ambiental das obras de retaludamento em que afirma, sob justificativa de cumprimento de condicionantes, que seu Programa de Comunicação Social e Educação Ambiental “promove uma comunicação eficaz e direta entre o empreendedor e a comunidade local, minimizando impactos sociais, econômicos e ambientais das obras”. Segundo o relatório, este programa tem como objetivo geral “garantir a transparência, a segurança e a conscientização ambiental no contexto das Obras de Retaludamento das encostas do Portão do Inferno” e, entre os objetivos específicos que preveem instalação de folderes e placas ao longo do caminho, pretende “Manter a comunidade informada sobre as medidas adotadas para minimizar os transtornos” e, “por fim, o programa busca assegurar que a comunidade local esteja informada e engajada, contribuindo para a continuidade e eficiência das obras, promovendo um ambiente de cooperação e apoio mútuo entre o empreendedor e a população”. 

Ainda neste relatório para o Ibama, a Sinfra garante que “todas as informações publicadas nas redes sociais, foram divulgadas dentro de uma semana a 15 dias antes do dia das ocorrências e interferências da Obra do Portão do Inferno, possibilitando que os usuários da via ficassem cientes das atividades relacionadas a Obra do Retaludamento do Portão do Inferno”. No mundo real, a Sinfra havia divulgado a informação sobre esquema de pare e siga de 24 a 26 de fevereiro, sem previsão de interdição total.

Desde o início dessa história, as vozes e as perspectivas da população de Chapada dos Guimarães, mesmo de especialistas em geologia, não têm tido valor algum por parte do empreendedor, o estado de Mato Grosso, tampouco por parte do órgão licenciador, o Ibama. O Ministério Público Federal informou que deixou o caso, entregando a sua competência ao Ministério Público Estadual. 

Às 6h05 da manhã, a PM já havia liberado o trânsito no esquema “pare e siga” e no local da obra não havia nada de diferente com relação à noite anterior. A interdição melindrosa de Chapada dos Guimarães vai mais uma vez colocar um nariz de palhaço na população.   

*Andreia Fanzeres é membro do Observatório Socioambiental de Mato Grosso (Observa-MT) e do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad)

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.