Se você clicou para ler esse artigo e chegou aqui, saiba, não trago boas notícias, na verdade sou um portador de palavras desconfortantes, praticamente um réquiem para nossa memória nacional. E te aviso logo nas primeiras linhas pois, logo, serão só constatações de funerais que se avizinham e talvez, se você não progredir daqui em diante, jamais saiba o que está perdendo, pois, a sua memória, a nossa memória como nação será, em parte, apagada.
Esses últimos dias trazem uma mácula em nossos pensamentos (e me refiro momentaneamente aos três autores desse artigo que você inicia a leitura) e, não me leve a mal, mas espero que você possa compartilhar da mesma angústia. Mas para que não seja drenada totalmente sua esperança, vamos nos ater apenas a uma única marcha lúgubre, a visão sobre o patrimônio histórico e cultural brasileiro.
Você sabe, pelo menos por alto, o que um licenciamento ambiental deve levar em conta? Deve ser um trabalho avaliativo quanto aos futuros impactos e estratégias de mitigação e/ou compensação da instalação de empreendimentos, de acordo com a Resolução CONAMA 01/1986, considerando os estudos de:
- Meio Físico – que diz respeito as características físicas do ambiente como o solo, água, ar, clima, topografia e etc;
- Meio Biótico – que diz respeito ao ecossistema da área pretendida, sua fauna e flora, destacando-se os impactos sobre as espécies, identificação de espécies ameaçadas, áreas para preservação permanente e etc;
- Meio Socioeconômico – que diz respeito as formas de uso das populações sobre o meio, indicadores de qualidade, além dos bens culturais dessa população, inclusa as manifestações, seu patrimônio histórico e os sítios arqueológicos.
Impactos devem ser mensurados e, a partir dessa avaliação, escolhido o melhor caminho para evitar, mitigar ou compensar os impactos a curto, médio e longo prazo. O desenvolvimento nacional deve ser seguido, mas não de qualquer forma, ouvindo-se a ciência e a população.
Mas na madrugada do dia 17 de julho, o Congresso Nacional aprovou sem dó, apesar da luta de alguns parlamentares com argumentos técnicos, o Projeto de Lei nº 2159/2021, que tem o singelo apelido de PL da Devastação. Discutir cada ponto dela, nesse momento, iria além de um compêndio, nos faria, a partir de cada área técnica e de todo juridiquês relacionado, na criação de um tratado e não é esse nosso objetivo no momento, não seremos nós os dementadores de vossa esperança de futuro.
Mas no que nos propomos discutir, o patrimônio histórico e arqueológico, presente nos estudos ambientais, o que a PL da Devastação faz? Ignora e esnoba, deixando na sarjeta o Decreto-Lei no 25, de 30 de novembro de 1937, responsável pela definição do patrimônio histórico e artístico nacional, nossos bens móveis e imóveis, monumentos naturais, sítios arqueológicos e paisagens. Faz pouco caso de nossa brasilidade.

Cria uma cadeia amnésica, com a Constituição de 1988, que em seu artigo 216 define o patrimônio cultural brasileiro e estabelece a responsabilidade do poder público na sua promoção e proteção, que por sua vez já reiterava a Lei no 3.924 de 26 de julho de 1961, que coloca sob a guarda e proteção do Estado os bens arqueológicos.
E são leis, decretos, portarias e convenções que tem o dever de proteção e promoção da memória nacional ignoradas e achincalhadas que, a única alegoria e analogia que me resta pensar é na transformação do Estado brasileiro, legislado em nome da ignorância e homogeneidade contra um povo tão rico e diverso. Uma ideia desprezível já emanada anteriormente que, ao se referir a pesquisa arqueológica e histórica, uma figura política atual brasileira, bradou aos quatro ventos que quem gostava de ossos era cachorro (se referindo a uma página recente de nossa história)
A PL da Devastação propõe uma nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental, representando um enorme retrocesso na proteção do patrimônio arqueológico brasileiro. Embora seus defensores sustentem um discurso centrado exclusivamente na “simplificação” e “agilidade” dos processos, o projeto, na prática, favorece um modelo de desenvolvimento predatório e que, não houve um parlamentar sequer que, no avançar da madrugada do dia 17 de julho, trouxesse alguma argumentação técnica de defesa da enfadonha e sepulcral proposta.
No patrimônio cultural brasileiro, é lavrado o enfraquecimento dos mecanismos técnicos que, até agora, asseguraram a identificação, preservação e valorização de sítios arqueológicos em áreas impactadas por grandes obras de infraestrutura e frentes de expansão econômica.
Se você ainda não entendeu o papel dos estudos de patrimônio cultural no licenciamento ambiental (e até se entendeu), vamos reforçar nosso discurso. A Constituição Federal de 1988 reconhece o patrimônio cultural brasileiro como um bem de interesse público, e sua preservação é responsabilidade tanto do Estado quanto da sociedade (art. 216, §1º). A partir desse entendimento, o licenciamento ambiental passou a considerar a dimensão cultural como uma parte essencial na avaliação de impactos, permitindo que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) atuasse como órgão técnico na participação do processo de licenciamento, especialmente na análise dos riscos e na proteção de bens arqueológicos. Compreendido ou precisamos explicar mais uma vez? Caso precise reforçar essa explicação, basta voltar ao início do parágrafo, ainda que essa seja uma função muito complexa no caso de estarmos diante de um parlamentar negacionista, ou de um negacionista sem o discurso de ser “representante do povo” sem de fato sê-lo (afinal de contas como pacificar a representação da delapidação do próprio).
Não contente com a proteção existente na Constituição Federal, foi criada a Instrução Normativa IPHAN nº 001/2015, para compatibilizar os estudos arqueológicos com as etapas do licenciamento, determinando procedimentos e etapas importantes, como a elaboração de diagnósticos, prospecções e, sempre que necessário, ações de mitigação. Essas medidas têm sido responsáveis, até o momento, por descobertas e resgates de sítios arqueológicos no Brasil nos últimos anos — contribuindo não só para o avanço da ciência, mas também para fortalecer nossa memória social e promover a justiça territorial. E pasmem, a Instrução Normativa também tem sido alvo de apagamento, com pedidos de sustação já protocolados como Projeto de Decreto Legislativo. A devastação não é ao acaso, é um projeto com profundas camadas.
Caro leitor, tome fôlego, pois nós ainda não chegamos ao fim. Foi preciso até dar uma parada por aqui, o embrulhamento de nossos sistemas digestórios e o som dos parlamentares comemorando a tratorada no nosso futuro, ecoa de forma ensurdecedora. A monossilábica e gutural ode a ignorância. Voltemos a fatídica narrativa de nossa decadência.
A PL da Devastação compromete diretamente o princípio da precaução, consagrado na legislação ambiental e fundamental para a tutela do patrimônio arqueológico. Esse princípio determina que, diante de incertezas, o poder público deve agir com prudência, mesmo que não haja prova absoluta de risco. Mas como pedir prudência àqueles que negam nosso direito de futuro?
No caso da arqueologia, esse princípio é essencial: não é possível identificar vestígios arqueológicos sem acesso prévio aos locais de instalação dos empreendimentos. Ou seja, se não houver diagnóstico antes do início das obras, qualquer vestígio será destruído antes mesmo de ser identificado. A terra movimentada, o solo escavado, o traçado asfaltado — tudo isso apaga a possibilidade de conhecimento, as memórias ancestrais.
Nem todo o patrimônio é visível num primeiro olhar, diferentemente de edificações ou bens arquitetônicos (desde uma Igreja Barroca a estátua de Aleijadinho), os sítios arqueológicos, em muitos casos, não podem ser “vistos” aos olhos leigos, ou mesmo sem escavação, e seu valor interpretativo depende diretamente do contexto em que está inserido. A ausência de estudos prévios equivale à negação da própria existência do patrimônio.
Outro aspecto gravíssimo que essa PL nos traz é a imposição de prazo máximo de 30 dias para que o IPHAN e demais órgãos se manifestem nos processos de licenciamento. Caso não o façam dentro desse período – mesmo que por sobrecarga ou falta de condições técnicas – a vida segue normalmente. E meus amigos, podemos afirmar com toda certeza que décadas nos deram, não estamos nem perto do ideal de técnicos presentes nos órgãos ambientais. Apesar do esforço hercúleo, tem momentos que cremos haver um projeto de desmonte (e nossas palavras aqui estão besuntadas de ironia).


E não, não deixamos de reconhecer que a discricionariedade técnica pode, em certos casos, gerar imprevisibilidade nos prazos e até contribuir para a morosidade dos processos. Mas aí voltamos a nossa ironia descrita acima, trata-se, contudo, de um problema de gestão e estrutura institucional, que deve ser enfrentado com investimento, planejamento e fortalecimento da capacidade dos órgãos, e não com sua exclusão do processo decisório. Ao invés de se pensar e estancar os motivos que geraram as dívidas, a irresponsabilidade resolveu espancar o carteiro.
A solução proposta é tão equivocada quanto afirmar que, diante da ausência de fiscalização, uma infração deixa de existir. Se eu não lembro, eu não fiz, essa é a máxima. Ignorar o parecer de um órgão técnico não elimina o impacto cultural de um empreendimento – apenas negligencia o impacto e, muitas vezes, o torna irreversível.
No campo da arqueologia, isso é ainda mais crítico: muitas vezes o conhecimento técnico é o único recurso capaz de revelar a existência de um sítio ou vestígio de valor histórico. Ignorar é institucionalizar a omissão.
Em vez de qualificar a atuação do IPHAN, o PL opta por sufocá-lo com prazos impraticáveis, desconsiderando a complexidade das análises e impondo uma falsa dicotomia entre agilidade e proteção. O resultado é o esvaziamento técnico do órgão responsável por zelar pela memória coletiva do país.
Precisamos de mais uma pausa, para partirmos para o final de nossas argumentações. Tem hora que só a poesia e a música para expressar melhor a dor. E agora estamos aqui, escutando a música “José” na voz de Paulo Diniz, que musicou o belo poema de Carlos Drummond de Andrade, “E agora José?” (Você não os conhece? Se não conhece, busque a música, escute antes de seguir e jamais deixe de ler a beleza da poesia de Drummond). Nos atemos nos versos:
E agora, José?
A festa acabou
A luz apagou
O povo sumiu
A noite esfriou…
O dia não veio
O bonde não veio
O riso não veio
Não veio a utopia
E tudo acabou
E tudo fugiu
E tudo mofou
E agora, José?
Sua doce palavra
Seu instante de febre
Sua gula e jejum
Sua biblioteca
Sua lavra de ouro
Seu terno de vidro
Sua incoerência
Seu ódio, e agora?
Fôlego tomado, sigamos. A PL traz ainda efeitos concretos e devastadores à cadeia produtiva do patrimônio cultural brasileiro e da arqueologia. A profissionalização do setor, que movimenta recursos, emprega a maior parte dos profissionais formados em nossas universidades e fomenta uma rede técnica e científica composta por empresas, consultorias, institutos e laboratórios especializados está à beira do desmoronamento.
É a extinção de uma cadeia produtiva inteira sob o pretexto de agilidade, e frisemos, não se trata de um setor inchado ou ineficiente. Trata-se de um setor que se adaptou à realidade do licenciamento, atuando com planejamento técnico e que, por força de lei, buscou viabilizar empreendimentos com responsabilidade e respeito ao nosso patrimônio. A aprovação da PL representa o desemprego de milhares de profissionais qualificados, o fechamento de pequenas e médias empresas e a ruptura de compromissos científicos e sociais construídos ao longo de décadas.
Isso afeta diretamente profissionais como arqueólogos, historiadores, arquitetos, antropólogos, pedagogos, técnicos de campo e tantos outros que integram direta ou indiretamente esse ecossistema, que fere de morte a geração de conhecimento, rompendo o elo entre os empreendimentos e as comunidades locais, que devem ser ouvidas e serem alvos dos processos de mitigação ou compensação de impactos. A Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho, que trata dos direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais (quilombolas, caiçaras e etc) e que estabelece a proteção dos modos de vida, cultura e valores e a participação nas decisões de desenvolvimento que os afete, é apagada, rasgada, achincalhada.
Sob a falsa justificativa de promoção do “desenvolvimento”, fragiliza a proteção ambiental e cultural. Para o patrimônio cultural e arqueologia, legaliza o apagamento silencioso de nossas ancestralidades, muitas vezes associados a povos originários, quilombolas e outras comunidades tradicionais.
Ao suprimir a atuação preventiva do Estado, o projeto destrói o princípio da precaução, desvaloriza a ciência, reduz a capacidade de fiscalização e entrega o destino do patrimônio cultural à lógica privada do empreendimento.

E é isso. Chegamos ao fim, a marcha fúnebre se encontra em seus últimos passos, sequer temos direito a um túmulo, mas seremos, se não houver revés, enterrados como indigentes. Mas minha memória, relutante ao fim, se transporta para um passado não tão distante assim, lá entre rios e corredeiras da Amazônia. Eram dias menos sombrios, mais cheios de risos, de beleza, quando éramos mais fortes que nossos medos. E lá, num ir e vir a montante e a jusante de corredeiras escolhidas para se tornarem uma hidrelétrica, travei um diálogo que até hoje me deixa sem voz. Vou identificar o barqueiro que me acompanhava como José, o Seu Zé (deixo sua verdadeira identidade e alcunha para o meu silêncio). Seu Zé, ao entender que tentávamos mensurar os impactos que poderiam ocorrer com os sítios arqueológicos, comunidades e todos os saberes tradicionais, me perguntou:
Seu Zé: – É verdade que tudo vai ficar debaixo d’água?
Eu: Se construírem, vai sim Seu Zé. Mas eles vão construir outra vila para vocês. Os sítios deverão ser pesquisados e levados para um museu.
Seu Zé: – E as nossas memórias? E o cemitério?
Eu: – Eles devem tirar todas pessoas que estão ali e levar para um novo.
Seu Zé: – Mas tem muitos que nem tem mais a cruz, tem gente que nem sei onde tá certinho. Meu pai é um deles. Eu era meninote quando ele morreu, mas sempre que quero rezar e conversar com ele, eu entro lá e rezo. Quando tudo se acabar, onde ainda eu vou conversar e lembrar do meu pai.
Eu: …
Até hoje eu não sei o que responder ao Seu Zé, a sua memória, a nossa memória.
Dessa forma, é urgente que a sociedade brasileira se mobilize para rejeitar esse projeto. O patrimônio cultural e arqueológico não pode ser reconstruído, nossas memórias não podem ser reinventadas. Cada sítio destruído sem estudo é uma memória calada, um elo perdido com a história coletiva e um direito violado. Nosso enterro sequer tem lágrimas, sequer somos acompanhados de seu gurufim. Em resumo, um ato inconstitucional por essência.
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