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Pelo direito de se aventurar

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Pelo direito de se aventurar

A triste morte da niteroiense Juliana Marins no vulcão Rinjani, na Indonésia, causou comoção nacional, ensejando uma onda de empatia e uma sincera torcida por um final feliz que não veio. Mas propiciou também, como costuma acontecer nesses casos, uma enxurrada de informações desencontradas e comentários estapafúrdios nos meios de comunicação, proferidos por pessoas que não têm a mais vaga noção das motivações que levam pessoas a praticar atividades de aventura ao ar livre, da realidade dos ambientes naturais selvagens em que elas se dão, das condições de sua prática e, se algum problema ocorre, das complexidades envolvidas na sua solução – quando existe alguma.

Pratico caminhadas e escaladas há mais de meio século, e não economizo palavras para expressar o quanto isso transformou positivamente a minha vida a partir da adolescência, aquele período crítico que moldará, em boa parte, o adulto que nos tornaremos. Portanto, por coerência, não posso condenar quem também decida praticar essas e outras atividades correlatas. Pelo contrário, acho que seria muito bom que todas as pessoas vivessem experiências semelhantes, pois isso lhes permitiria desenvolver uma melhor compreensão do mundo natural e da necessidade de sua preservação, bem como uma série de habilidades e qualidades pessoais valiosas para lidar com o mundo atual, cada vez mais estranho e desafiador.

Mas, para esse efeito, é importante que o façam pelas razões certas e da forma adequada.

Nesse sentido, a primeira coisa a se levar em conta é que os ambientes naturais selvagens são perigosos, e nada mudará este fato. Pode-se, e deve-se, minimizar os perigos envolvidos, mas sempre existirá algum risco em tais atividades. Isso precisa ser compreendido e aceito por quem decidir praticá-las, compreensão que deve ser estendida a amigos e familiares, pois se algum problema grave acontecer – e eles, infelizmente, às vezes acontecem –, não se gere sofrimento adicional além da já imensa dor pela perda de um ente querido. O clamor pela identificação a qualquer preço de um culpado externo caso ocorra um acidente em uma montanha, rio ou oceano, não raro atiçado por palpiteiros alheios às pessoas, locais e circunstâncias envolvidos, não mudará o que já aconteceu e não contribuirá para uma avaliação sóbria daquele caso específico, com vistas à adoção de medidas que reduzam a possibilidade de uma ocorrência similar. Servirá apenas para levantar, nesses dias de lacração extremada nas redes sociais, um tsunami de ódio e incompreensão, que pode levar à possível adoção de decisões apressadas que não resolverão problema algum e, provavelmente, criarão novos.

O Ministério do Esporte, ao abordar essa problemática, publicou em 2007 uma Resolução que define os chamados “esportes de aventura”. A definição é muito boa, claramente redigida por quem entende do assunto: “Conjunto de práticas esportivas formais e não formais, vivenciadas em interação com a natureza, a partir de sensações e de emoções, sob condições de incerteza em relação ao meio e de risco calculado. Realizadas em ambientes naturais (ar, água, neve, gelo e terra), como exploração das possibilidades humanas, em resposta aos desafios desses ambientes, quer seja em manifestações educacionais, de lazer e de rendimento, sob controle das condições de uso dos equipamentos, da formação de recursos humanos e comprometidas com a sustentabilidade socioambiental”

Nem todos, contudo, se conformam com essa vida artificializada e limitada, e procuram no contato direto com a natureza a oportunidade de ver aflorar em si habilidades inatas que a vida moderna tende a suprimir.

Praticar qualquer esporte de aventura significa então reconhecer que sempre haverá alguma incerteza e risco envolvidos. Não havendo esses elementos, não há que se falar em aventura. A ideia de sua completa supressão só seria possível, por definição, mediante a própria eliminação dessas atividades. Dessa forma, as pessoas ficariam condenadas a só poder enfrentar emoções fortes em parques de diversão certificados, onde, ainda assim, acidentes graves ocorrem vez ou outra por falha na operação ou manutenção dos brinquedos. Essas pessoas seriam, assim, ainda mais apartadas do mundo natural de onde, queiram ou não, provêm, e empurradas para viver apenas nos ecossistemas artificiais que construíram para si em busca de cada vez mais conforto e segurança.

Nem todos, contudo, se conformam com essa vida artificializada e limitada, e procuram no contato direto com a natureza a oportunidade de ver aflorar em si habilidades inatas que a vida moderna tende a suprimir, para com elas enfrentar os grandes desafios naturais oferecidos por paredes rochosas, cachoeiras e corredeiras, o fundo do mar e o interior das grandes cavernas. A essas pessoas deve ser garantida a possibilidade de praticar esportes tão belos e enriquecedores como escalada, voo livre, mergulho, surfe e outros, e me aprofundei nesse tema em um artigo intitulado “O direito ao risco”, disponível em https://companhiadaescalada.com.br/wp-content/uploads/2019/09/O_Direito_ao_Risco_Versao_Integral.pdf.

Entretanto, esse importante direito deve vir sempre acompanhado de uma obrigação inescapável, que é a de assumir integralmente a responsabilidade no caso da ocorrência de algum acidente, isentando órgãos públicos, proprietários privados e organizações esportivas (sem fins lucrativos) de transtornos ou penalizações indevidas em virtude da vontade livre e consciente de quem se aventura na natureza. 

A argumentação acima é válida para os esportes de aventura, isto é, para a prática amadora de tais atividades, e é óbvio que quando há uma intermediação comercial responsabilidades adicionais precisam ser consideradas. Afinal, se uma pessoa física ou jurídica oferece um produto para venda, esse produto precisa ser entregue, sendo a parte prioritária da entrega a integridade física do cliente, e apenas depois dela o atingimento do objetivo proposto, seja o cume de uma montanha, o pé de uma cachoeira, o final de uma travessia, a visita a um naufrágio, o pouso no local predeterminado após um voo duplo. Caso o operador/instrutor/guia perceba que as condições estão muito arriscadas, deve tomar a corajosa decisão de recuar, a despeito da frustração resultante e das inevitáveis pressões para prosseguir mesmo assim.

Sempre que há um acidente de grande repercussão envolvendo esportes ou turismo de aventura, logo surgem propostas de novas leis e normatizações que muito mais atrapalham do que ajudam. Algumas delas representam, na verdade, o próprio fim da atividade que pretendem regular. Evidentemente, é possível que em certos casos, sobretudo em excursões de natureza comercial, tenha havido mesmo negligência ou má-fé indesculpáveis, mas para lidar com isso não são necessárias novas leis: no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor conta com dispositivos bem severos para lidar com situações assim, e, no limite, com desdobramentos que levem a apurações na esfera penal.

É importante que quem pretenda contratar uma trilha longa e perigosa, um voo duplo de asa-delta ou uma expedição de mergulho se certifique do histórico daquele guia ou operador, da sua qualificação formal ou, ao menos, em certos casos, do seu credenciamento junto às unidades de conservação onde a atividade será realizada.

Porém mesmo em grupos comerciais adequadamente dimensionados e dirigidos, acidentes e outros problemas graves podem ocorrer, e isso precisa ser levado em consideração não apenas por guias e operadores, mas também pelos próprios clientes. Com a sua própria vida em jogo, ninguém deve confiar cegamente no pacote que lhe parece mais atraente ou, pior, mais barato. É importante que quem pretenda contratar uma trilha longa e perigosa, um voo duplo de asa-delta ou uma expedição de mergulho se certifique do histórico daquele guia ou operador, da sua qualificação formal ou, ao menos, em certos casos, do seu credenciamento junto às unidades de conservação onde a atividade será realizada. Da mesma forma, as pessoas precisam desenvolver consciência dos seus próprios limites físicos e mentais para enfrentar o desafio proposto, e não esperar que tudo seja solucionado integralmente por quem vier a contratar, pois em certas situações isso simplesmente não será possível.

O compreensível desejo de, por exemplo, subir uma grande montanha, e o menos compreensível desejo de ser arrastado para cima dela de qualquer maneira apenas para produzir belas imagens para encher de admiração e inveja seus seguidores no Instagram não pode servir de pretexto para afrouxar padrões de segurança em ambientes notoriamente perigosos. E, muito menos, para que sejam instalados mais e mais facilitadores para leigos – escadas, corrimões, guarda-corpos etc. – porque, por um lado, isso leva à descaracterização desses mesmos ambientes, que deveriam permanecer tão intocados quanto possível, e, por outro, porque essas instalações, não raro, aumentam o número de ocorrências graves e mesmo fatais devido à ilusória sensação de segurança que transmitem. A verdadeira segurança, e assim mesmo relativa, dada à imprevisibilidade típica da natureza selvagem, provém de preparação progressiva, treinamento prévio e experiência acumulada. 

No caso de um passeio contratado em outro país esse cuidado precisa ser redobrado, pois temos aí outra cultura, outra língua, outro regramento legal, outras condições de assistência (ou não) em caso de acidente e outros elementos físicos, biológicos e climáticos que não estão presentes no Brasil.

As palavras acima não devem ser entendidas como um desencorajamento, muito pelo contrário, pois as recompensas pelo sucesso de tais empreitadas são de fato muito grandes. Mas servem para chamar a atenção para a imperiosa necessidade de se cercar dos devidos cuidados antes de embarcar em uma aventura sobre a qual não é necessário ser um expert para identificar que é perigosa. E aceitar com serenidade a  crua realidade de que atividades arriscadas podem, eventualmente, levar a desfechos indesejados e dolorosos.

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