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Pesca ilegal já virou rotina na maior área marinha protegida da Amazônia

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Pesca ilegal já virou rotina na maior área marinha protegida da Amazônia

Imagine dezenas de empresas invadindo, durante cinco meses, uma área protegida da Amazônia, para desmatar ilegalmente, sendo, além disso, possível ver claramente quem são os transgressores, mas que, mesmo assim, os órgãos fiscalizadores não conseguissem responsabilizar os culpados. Pois é o que vem acontecendo nos últimos anos com a pesca em uma das maiores áreas marinhas protegidas do Brasil, o Parque Nacional do Cabo Orange (PNCO), no Amapá, Amazônia brasileira.

No interior da área marinha do Parque, somente quem tem autorização para realizar a atividade de pesca são as embarcações que fazem parte da Colônia de Pescadores de Oiapoque, desde que estejam na relação do rodízio e sejam de pesca artesanal e de pequena escala. Mas essa regra é frequentemente violada por embarcações da pesca industrial. Após observar os dados disponíveis na plataforma Global Fishing Watch (GFW), esta reportagem constatou que, de janeiro de 2016 até dezembro de 2024, o equivalente a mais de cinco meses (total de 3.780 horas) de possíveis atividades de pesca foram monitoradas no local, sendo a maioria provinda de barcos de outros estados.

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A reportagem de ((o))eco viajou até Oiapoque, no extremo norte do país, para conversar com os pescadores artesanais, que dizem que a pesca industrial tem prejudicado seu modo de viver. “Para nós, que estamos na fronteira, é um prejuízo muito grande. Hoje, os barcos industriais estão onde o pequeno era para estar e eles pescam sem limites. Ficamos preocupados de um dia o estoque acabar. Será que vão deixar isso acontecer primeiro para depois virem com alguma solução?”, questiona Júlio Teixeira Garcia, presidente da Colônia de Pescadores de Oiapoque. 

A pesca artesanal é praticada diretamente pelo pescador, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, em embarcações de pequeno porte, conforme dispõe a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca. A atividade, nesse caso, é apenas para o consumo próprio e para vendas locais e usa pouca ou nenhuma tecnologia. Já a industrial é feita em larga escala, com barcos maiores e mais bem equipados, muitas vezes vinculada a empresas que chegam a exportar o pescado e que contratam outros pescadores que normalmente não possuem embarcação própria. Os barcos da pesca industrial têm maior autonomia de pesca que os artesanais, sendo capazes de ficar mais tempo em alto mar e usando sonares que localizam peixes com muito mais facilidade.

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Júlio Teixeira Garcia, presidente da Colônia de Pescadores de Oiapoque, denuncia pesca ilegal no Parque Cabo Orange. Foto: Matheus Melo

Assim como Júlio Garcia, boa parte dos 300 pescadores artesanais da colônia em Oiapoque veio da vila do Taperebá, próximo à foz do rio Cassiporé, onde houve expropriação com a criação do Parque Cabo Orange, em 1980. Quando a unidade foi instituída, por ser de proteção integral, os moradores não puderam mais pescar. Eles migraram para o Oiapoque, mas ali também não conseguem manter essa atividade. Isso porque a cidade é fronteiriça e fica a poucos minutos da Guiana Francesa – o que se percebe facilmente ao andar pelas ruas e ver  que há muitas placas de estabelecimentos nos dois idiomas e que se aceitam pagamentos na moeda europeia. Porém, para os pescadores, a fronteira do país é uma limitação, pois não têm muito espaço para se pescar sem sair do território brasileiro. 

A alternativa seria, então, ir mais além, em alto-mar, ultrapassando os limites do Parque, mas ainda no território nacional, como fazem as embarcações de pesca industrial que vêm do Pará, por exemplo. Mas, por ser uma colônia de pesca artesanal, seus barcos não têm autonomia, ou seja, não possuem capacidade de percorrer longas distâncias sem precisar reabastecer.

Por isso, depois de anos de diálogo, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) reconheceu que a criação do Parque limitou a atividade pesqueira e assinou um Acordo de Pesca em 2017 com a Colônia de Oiapoque. O documento permite a pesca de pequeno porte nas águas do parque em um trecho específico, para 20 embarcações, por 10 dias, em sistema de rodízio.

Desde então, os próprios pescadores locais dividem a responsabilidade de identificar e denunciar quando barcos não autorizados entram no Parque (PNCO). Mas, apesar de relatarem as supostas infrações, a fiscalização não consegue ser eficaz. A região é isolada geograficamente e permanecer na área marinha do PNCO é muito custoso, o que torna difícil a missão dos órgãos responsáveis, que não têm embarcações nem recursos humanos suficientes para competir com o tamanho da indústria pesqueira. Resultado: a legislação, ao que tudo indica, é constantemente burlada.

Pará é responsável por 86% da pesca no Parque

As transgressões são publicamente visíveis. A plataforma Global Fishing Watch usa monitoramento por satélite para mostrar a atividade de embarcações por todo o planeta, em tempo real. Por meio de um acordo com o Governo do Brasil, disponibiliza os dados oficiais do Programa de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras (PREPS). Os algoritmos da plataforma detectam o que é considerado como atividade de pesca aparente, de acordo com as mudanças na velocidade e direção da embarcação. 

O levantamento feito por esta reportagem identificou a presença constante de embarcações no território do Parque entre 2016 e 2024. No total, 58 embarcações foram mapeadas no PNCO nesse período. Destas, 49 vêm do Pará, principalmente da região conhecida como “Salgado paraense”, com destaque para os municípios de Bragança e Vigia, onde há intensa atividade pesqueira industrial, que abastece inclusive o mercado internacional. Os barcos de Bragança sozinhos são responsáveis por aproximadamente 57% da  atividade de pesca aparente identificada pelo GFW no Parque Cabo Orange.

Em alguns momentos, o comportamento dos barcos indica que estão apenas de passagem ou que buscam um ponto de apoio na área terrestre mais próxima. “Se for caracterizada a atividade pesqueira, um barco da frota industrial que esteja dentro dos limites de uma unidade de conservação, sobretudo de proteção integral como o Parque, já configura por si só uma infração ambiental, e os dados relatados pela reportagem apontam fortemente pra isso”, diz Rodolfo Moraes , biólogo e zoólogo com ênfase na área de pesca (ictiologia), servidor e fiscal do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no Pará.

Os dados mostram ainda que nota-se a presença dos barcos independente da época do ano, ocorrendo inclusive quando se está no período do defeso de espécies importantes comercialmente, como o pargo (de 15 de dezembro a 30 de abril). No entanto, o pico da atividade pesqueira no parque foi, de longe, o ano de 2021, que somou 827 horas de atividade de pesca (23% do total dos nove anos). – Moraes recorda que 2021 foi ainda um ano em que o trabalho dos órgãos vinculados ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) foi bastante fragilizado. “Nesses anos do governo anterior nossa presença foi muito diminuída. Muitos dos já escassos servidores foram retirados da fiscalização de pesca para atuarem mormente em outras tarefas da instituição”, relata.  

Os dados do GFW revelam que uma das áreas onde aparecem barcos todos os anos é a foz do rio Cassiporé, da qual, ironicamente, muitos dos pescadores da colônia tiveram de sair com a criação do PNCO. Segundo Pires, essa movimentação no local pode se referir, em parte, a embarcações buscando ponto de apoio para se abrigar e descansar durante suas expedições. Em alguns casos, empresas ou pescadores podem solicitar ao ICMBio uma permissão extraordinária para transitar ali com esse propósito. Em outros casos, a atividade indicada na plataforma sugere que se trata muito provavelmente de pesca. Pela trajetória das embarcações, pesquisadores e fiscalizadores podem até identificar de que tipo de captura se trata.

A reportagem tentou contato com o Sindicato das Indústrias de Pesca, da Aquicultura e das Empresas Armadoras e Produtoras, Proprietárias de Embarcações de Pesca do Estado do Pará (Sinpesca), por telefone e e-mail, mas não teve retorno até o fechamento do texto.

Dados são apenas indicativos da realidade

Os números do GFW são apenas uma parcela da realidade. Isso porque nem todos os barcos são obrigados a ter rastreamento. No Brasil, apenas as embarcações pesqueiras maiores, com comprimento total igual ou superior a 15 metros, incluindo as embarcações de pesquisa pesqueira, são obrigadas a ter sistema de rastreamento em tempo real e se cadastrarem no PREPS.

Alguns movimentos podem, também, ser incorretamente identificados como atividade de pesca. “Os algoritmos não são calibrados para a frota local, o que pode gerar falsas detecções”, ressalva o analista de pesca para América Latina da GFW, Rodrigo Claudino. Por outro lado, os dados do Global Fishing Watch baseiam-se no rastreamento de embarcações através de dois sistemas – o AIS e o VMS – cuja cobertura no norte do Brasil é baixa. 

O Sistema de Identificação Automática (AIS, na sigla em inglês) opera por meio de rádio e possibilita o compartilhamento de informações entre embarcações e estações em terra mais próximas, sobretudo para evitar colisões e outras funções de segurança marítima. Já o sistema de monitoramento de embarcações (VMS) rastreia embarcações com base em sinais retransmitidos por satélites, permitindo que reguladores governamentais ou outras autoridades controlem, em tempo real, a atividade pesqueira. Algumas embarcações transmitem tanto AIS quanto VMS, de modo que as informações de ambos os sistemas podem ser combinadas.

Ainda que haja a possibilidade de erros, a estimativa que se tem na plataforma é vista como útil para a tomada de políticas públicas e na própria fiscalização, porque fornecem uma indicação dos padrões de pesca em áreas ecológicas sensíveis. “Isso permite um melhor planejamento para a conservação, destacando as regiões onde o comportamento da pesca pode interferir nas metas de biodiversidade”, destaca Monica Espinoza Miralles, liderança dos programas globais da América Latina do GFW.

Área prioritária, mas nem tanto assim

No caso do PNCO, essa ferramenta sugere que a fiscalização não está conseguindo ser tão eficaz quanto deveria. Os desafios logísticos de uma atuação presencial são enormes. O Amapá é o único estado do Brasil que ainda não está interligado oficialmente à malha rodoviária nacional. Indo de avião a partir de outro estado, o caminho mais acessível para chegar a Oiapoque, no extremo Norte, é viajando até a capital, Macapá, e dali percorrer uma estrada de quase 600 km, o equivalente a pelo menos 8h de viagem, devido às condições viárias.

Com uma área marinha de 200 mil hectares, o parque foi designado em 2013 como sítio RAMSAR – um reconhecimento internacional da importância da zona úmida do parque para a biodiversidade e o meio ambiente. Por isso, deveria ser alvo prioritário de políticas públicas de conservação. No entanto, a complexidade dos desafios que o parque enfrenta supera os recursos humanos disponíveis, de acordo com Ricardo Motta Pires, analista ambiental do ICMBio e chefe do Parque Nacional do Cabo Orange.

Somente em relação à pesca, a fiscalização ambiental precisa garantir o cumprimento dos defesos, dos acordos e do não uso de petrechos proibidos, dentre outras tarefas. Fora isso, o órgão precisa lidar com outras questões, como desmatamento e manejo do fogo. O PNCO é ainda uma área fronteiriça e com territórios indígenas e quilombolas.

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Pesca artesanal em Oiapoque usa redes de emalhe à deriva, que não são fixadas ao fundo do mar. Foto: Matheus Melo

Por ser uma unidade de conservação, o ICMBio é a principal autoridade no Parque, mas seu escritório não possui uma equipe específica apenas para essa fiscalização da pesca. Na verdade, são apenas seis servidores atualmente para atender a toda a extensão do PNCO, sendo que a rotatividade é grande e o número ainda foi reduzido em diversos períodos, chegando algumas vezes a somente dois servidores no local. De acordo com Pires, a falta de atrativos salariais e planos de carreira contribuem com esse cenário. “Ninguém quer ficar aqui em Oiapoque. Os servidores do ICMBio e do Ibama não recebem adicional de fronteira, como recebem em outros órgãos”, menciona, referindo-se à indenização que se concede a outros servidores por atuarem em localidades estratégicas, vinculadas à prevenção, controle, fiscalização e repressão de delitos transfronteiriços.

Fiscalização ficou mais fragilizada nos últimos seis anos

Pires lembra que o cenário ficou melhor entre 2006 e 2018, quando a unidade do PNCO tinha um barco próprio para fiscalização, o “Peixe-Boi”. Apenas em uma das ações na embarcação, em 2013, foram apreendidos 1,6 mil quilos de peixe e aplicadas multas que totalizaram R$ 133 mil. No entanto, desde que precisou ir para manutenção, em 2018, o “Peixe-boi” não conseguiu mais retornar, por falta de recursos para sua reforma.

Só agora, sete anos depois, é que a reforma da embarcação está sendo concluída, com previsão de retornar à atividade ainda no primeiro trimestre de 2025. De acordo com Pires, sem o barco o máximo que conseguem fazer quando flagram uma infração é multar. “Mas a multa em si não pesa tanto. Tem que ter a apreensão, eles só sentem no bolso mesmo quando perde a viagem, perde o peixe que já foi pescado, a rede…”, declara.

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Barco “Peixe-Boi”, do ICMBio, está parado em reforma desde 2018. Foto: Matheus Melo

As multas podem ser aplicadas à distância, no caso dos barcos maiores monitorados pelo PREPS. No entanto, pelo baixo quantitativo de servidores em comparação ao universo de embarcações e locais monitorados, nem isso consegue ser amplamente contemplado, de acordo com os servidores entrevistados. As violações podem passar despercebidas, pois não há contingente para monitorar simultaneamente todos os barcos em toda a costa 24h por dia.

Além disso, as embarcações conseguem burlar o sistema, eventualmente desligando o dispositivo de rastreamento ou bloqueando a recepção de seu sinal. “Eles sabem que estão dentro do Parque, sabem muito bem onde estão navegando, então quando vão entrar em uma área assim eles podem interferir logo no envio de sinal, de seu efetivo posicionamento naquele dado momento “, esclarece Rodolfo Moraes, do Ibama.

Outra maneira de contornar o PREPS é usar barcos menores, como suporte para a mesma indústria, conforme constatou a oceanógrafa Érica Jimenez, co-autora de um estudo sobre conflitos e injustiças socioambientais no PNCO. “O que percebíamos durante nossa pesquisa era que as embarcações maiores, que são rastreadas, ficavam nas margens do Parque, então pelo satélite não constava como pesca efetivamente dentro do Parque, mas junto desses barcos vinham outros menores que, sim, entravam nessa área, chamados de ‘piolhos’”, explica Jimenez.

Para Ricardo Pires, esses barcos menores também deveriam entrar no PREPS. “Eu acho que, se já tem o sistema, era uma questão de melhorar, de investir. O sistema tinha de comportar o cadastro de embarcações menores de 15 metros também, talvez acima dos 10 metros”, afirma. Rodolfo Moraes defende também uma atuação institucional mais expressiva dentro da cadeia do pescado. De acordo com ele, uma solução menos onerosa que a de apenas operar uma frota de barcos para se fiscalizar em alto mar seria ter um contingente dedicado de servidores do Ibama auditando sistemas e verificando nas empresas de pescado de forma rotineira, investigando a legalidade de procedência do pescado de trás para a frente. “Se ele apresentar mapa de bordo ou rastreamento compatível que venha comprovar que a pesca foi feita nos períodos e locais permitidos, sendo estes alguns dos principais pré-requisitos de regularidade a serem verificados”, explica. É o que acontece com a fiscalização de gado, nos matadouros e frigoríficos.

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Resex pode agir como a reforma agrária do mar na região, acredita pesquisadora

Tanto os órgãos fiscalizadores quanto pescadores artesanais defendem a criação de uma Reserva Extrativista (Resex) Marinha para poder ordenar a pesca no PNCO. As Resex são espaços protegidos que permitem o uso sustentável dos recursos naturais da área, diferente dos Parques Nacionais, que são de proteção integral, onde apenas são permitidas as atividades de pesquisa, educação ou recreação. 

Essa ideia vem sendo discutida desde antes do Acordo de Pesca com a Colônia de Oiapoque. Mas estabelecer uma nova unidade de proteção é um processo demorado e, por isso, o termo assinado ainda em 2018 tinha a intenção de ser uma solução provisória, por três anos, enquanto a Resex não fosse criada. Contudo, como a reserva até hoje não foi instituída, o acordo vem sendo renovado com caráter temporário a cada três anos, desde então.

Para Érica Jimenez, o modelo seria o ideal não apenas para salvaguardar a biodiversidade local, mas também para mitigar os conflitos sociais desse território. “A Reserva Extrativista Marinha é como uma reforma agrária dos povos da maré. Ajuda tanto a ordenar o uso do espaço quanto assegura a gestão participativa”, explica.

A Resex criaria “uma área de amortecimento”, como Ricardo Pires descreve, de mais 10 km para além da fronteira atual do PNCO e  mais alguns trechos do litoral do Amapá. Os trabalhos do ICMBio para criação da reserva estão avançando, mas ainda não foram definidos seus limites, a depender de reuniões previstas com os futuros beneficiários (pescadores artesanais locais). “Assim, se teria o melhor dos cenários. O criadouro, o berçário, a área de reprodução no Parque, ficariam protegido integralmente, sem poder pescar, e teria uma área de uso por fora exclusiva aos pescadores locais. Você protege o mangue integralmente e vai pescar lá fora com o peixe já crescido”, descreve.

Mapas das propostas criacao da RESEX no litoral do Estado do Amapa com limites das areas apresentadas em 2006 a esquerda e 2015 a direita.Fonte Acervo ICMBIO Pinheiro et al. 2017

Da gó à grude, pressão da atividade preocupa pescadores e ambientalistas

Júlio Garcia, presidente da Colônia de Pescadores de Oiapoque, está preocupado que o ritmo e a pressão da pesca industrial possa impactar o estoque pesqueiro, em especial em relação a algumas espécies, como a gó (Macrodon ancylodon), considerada a “comidinha dos outros peixes”, que os pescadores artesanais evitam de capturar, mesmo que seja permitido. Mas é um cuidado que nem sempre acontece na pesca industrial. Para pescar a gó, é usada uma malha muito fina, que acaba pegando filhotes de outros peixes também. Por isso, a Colônia busca uma legislação específica para combater essa pesca. “Nós queremos que essa pescada da gó não venha como pesca-alvo. Ela até pode vir como fauna acompanhante”, explica. 

Já pesquisadores e ambientalistas têm como um dos principais pontos de atenção a venda da grude, a bexiga natatória, principalmente da pescada amarela (Cynoscion acoupa). É exportada principalmente para o mercado chinês como iguaria culinária, por um preço muito mais alto que o peixe em si. Por exemplo, se a carne é vendida por um valor entre R$ 20 e R$ 35 o quilo, a bexiga pode chegar a R$ 2.000, dependendo do tamanho. Apesar de não ser uma venda ilegal, é um mercado sem regulamentação específica em relação ao controle populacional da espécie.

Faltam estatísticas pesqueiras mais específicas sobre os tamanhos populacionais da pescada amarela e mais detalhes sobre as rotas e empresas comercializadoras da grude e sobre o número de pescadores e embarcações envolvidos nesse comércio. Na ausência de dados da coleta, informações comerciais dão uma estimativa do tamanho do mercado. Um estudo desenvolvido por um grupo de pesquisadoras brasileiras mostrou que em 2020 o Brasil exportou 637 toneladas de bexiga natatória. Mas um fator que dificulta ter números precisos é que, no momento da exportação, a grude também acaba sendo registrada com outros produtos do mar (como tubarões e pepinos do mar).

A Sea Shepherd Brasil, organização sem fins lucrativos focada na conservação de seres marinhos, fez uma análise no início de 2024, constando a pressão desse mercado na pesca do Pará e Maranhão e, com base nisso, submeteu um ofício aos órgãos solicitando que se tomassem medidas de controle, para evitar sobrepesca dessa espécie. “É como aconteceu no passado com os tubarões, que quase sumiram na região por causa da venda da barbatana. É bem assustador. A pesca desses animais está ficando muito predatória”, diz Nathalie Gil, presidente e CEO da ONG. Com base nesse cenário, a Sea Shepherd Brasil fez uma série de recomendações, como regulamentar o comércio de pescada amarela no Brasil, considerando até mesmo a proibição da exportação da grude.

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A bexiga natatória da pescada amarela, conhecida como grude, pode ser vendida seca, por quilo, no mercado local. Foto: Matheus Melo

A pescada amarela já está classificada como vulnerável na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN).  E a venda da grude, além de intensificar a pressão sobre essa espécie, impacta em outros animais que são capturados por acidente (bycatch) e, em seguida, descartados por não terem um valor comercial competitivo, como a gurijuba (Sciades parkeri), também vulnerável.

Mas a questão da grude não está relacionada apenas à pesca industrial. Caso fosse proibida essa venda, a mudança também impactaria significativamente a remuneração dos pescadores artesanais, que contam com esse mercado para ter uma renda mais robusta. “Mesmo que você pegue pouco peixe, mas quando você junta tudo [e vende a grude] dá uma boa quantia, que dá até para pagar as contas, dá para sobreviver, porque o pescador artesanal sobrevive do dia a dia da pescaria, não tem um salário fixo”, conta Júlio Teixeira.

Sucesso nos restaurantes dos Estados Unidos, o pargo é preocupação no Brasil

O pargo (Lutjanus purpureus) também é uma espécie cuja vulnerabilidade aflige ambientalistas e pesquisadores. Alex Klautau, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Marinha do Norte (CEPNOR), braço do ICMBio, explica que esse peixe também é capturado acidentalmente, já que a área de pesca tem sobreposição com a do camarão, ao norte. 

Assim como a oceanógrafa Érica Jimenez, ele participa de um projeto científico chamado REPENSAPESCA, composto por diversas instituições do país, que fez uma avaliação ecossistêmica dos recursos pesqueiros do Norte e Nordeste. O trabalho foi submetido ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em dezembro de 2022.

Na época, os pesquisadores recomendaram que as capturas da espécie no Brasil não ultrapassassem 2.750 toneladas por ano, para que o estoque pudesse se recuperar dentro dos limites sustentáveis, por pelo menos 12 anos. 

Segundo Rodolfo Moraes, do Ibama, uma questão agravante é a preferência por espécimes de dimensões menores por parte do mercado norte-americano. Os Estados Unidos compram a maioria do pargo exportado pelo Brasil e preferem os espécimes menores. “É um pargo pequeno, que fica esteticamente bonito no prato do restaurante, mas que certamente não chegou à idade reprodutiva, impossibilitando assim a adequada reposição dos estoques de pargo em seu meio ambiente natural”, diz.

Esta reportagem foi produzida com o apoio da Earth Journalism Network (EJN)

Ficha técnica
Reportagem: Alice Martins Morais
Imagens: Matheus Melo
Produção e apoio nos dados: Lucas Duarte
Apoio local: Júlio Teixeira, Jamile Garcia, Mauricio Abdon e Sirley Silva
Revisão ortográfica: Eliani Martins
Mentoria EJN: Ricardo Garcia e Mike Shanahan
Edição ((o))eco: Daniele Bragança e Marcio Isensee