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Policial vende clonagem de cartões das novas câmeras corporais da PMSP

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Policial vende clonagem de cartões das novas câmeras corporais da PMSP

Um soldado do litoral sul de São Paulo  está oferecendo, em grupos de WhatsApp, o serviço de clonagem dos cartões usados para acessar as novas câmeras corporais da Polícia Militar, da Motorola Solutions. O PM cobra R$ 20 para copiar o chip da credencial e colocá-lo em uma tag eletrônica genérica, que daria acesso ao sistema. Ele diz ter vendido pelo menos 60 unidades.

“Aqui eu fiz para o batalhão inteiro, para o pessoal das companhias”, afirma o soldado à reportagem, que se passou por pessoa interessada em contratar o serviço. “Não tem o que dar ruim. É bem ‘rapidão’ de fazer, leva menos de um minuto. Eu só copio as informações do cartão e colo na tag, aquela de chaveirinho. Ele vai ler os dados certinho, vai selecionar a câmera. Padrão, como se fosse o cartão encostando”.

A ideia da clonagem, segundo o soldado, seria evitar que os policiais eventualmente perdessem os cartões originais, usados nos terminais instalados nas companhias para armazenar as câmeras.

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Especialistas em provas digitais ouvidos pela reportagem afirmam que a possibilidade de clonagem das credenciais indica que o sistema de câmeras corporais da Motorola Solutions, que começou a ser usado em junho deste ano, não possui assinatura digital. Isso colocaria em xeque a legitimidade das provas coletadas e o investimento de R$ 52 milhões por ano feito pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e pelo secretário da Segurança Pública (SSP), Guilherme Derrite.

Questionada pelo Metrópoles, a pasta disse que o cartão usado para liberar as câmeras “não armazena dados sensíveis” e que, mesmo assim, haveria criptografia de ponta a ponta.

“Se de fato esses cartões fossem criptografados, seria inviável tecnicamente a clonagem”, afirma a advogada criminalista Juliana Maia, especialista em cadeia de custódia e câmeras corporais.

“Quando a gente ouve a Secretaria da Segurança do estado de São Paulo dizer que é criptografado, mas não existe uma assinatura eletrônica, isso nos causa uma certa surpresa. Na verdade, sem a assinatura eletrônica, a gente não teria como preservar a integridade daquelas informações. Quando isso acontece, a gente tem uma falha grave, permitindo que seja manipulável as informações que estão ali dentro”, acrescenta.

Na semana passada, o Metrópoles revelou que o modelo de câmeras corporais da empresa Axon, usado pela PMSP desde 2021, apresenta diversas vulnerabilidades que permitem aos policiais fraudarem gravações. A reportagem revelou um caso em que a chefe do Setor de Evidências da corporação deletou a gravação de uma ocorrência que terminou com suspeito morto em março de 2024, na Operação Verão.

Clonagem de chip

Sem saber que conversava com um jornalista, o soldado do litoral do estado disse que entre 60 e 70 PMs teriam pagado por seu serviço de clonagem. Ele afirmou que até oficiais do batalhão em que trabalha teriam aderido. O PM disse que poderia viajar para outras cidades para realizar a clonagem em massa das credenciais de colegas de outras unidades.

O procedimento padrão estabelece que todos os dias, no início do turno, cada PM tem que passar sua credencial na máquina para desbloquear a câmera que vai utilizar. Ao final do serviço, eles passam a credencial mais uma vez para devolver o equipamento e subir as imagens no sistema.

“Eu tenho uma máquina, ela lê o sinal RFID, eu consigo copiar o sinal e colar na tag. É uma maquininha, um aparelho eletrônico. Você empresta seu cartão para mim, eu copio a informação, devolvo seu cartão”, diz o PM.

A cópia do chip RFID acontece porque o leitor localizado no terminal de extração das câmeras permite a leitura de qualquer chip com os mesmos dados do original. Em um sistema com criptografia, as informações estariam “embaralhadas” e seria necessário uma chave eletrônica interna para colocá-las na ordem correta para que pudessem ser lidas.

Para realizar a clonagem de um cartão utilizado em um sistema com criptografia, também seria preciso ter acesso à chave.

Sistema fraudável

De acordo com a advogada Juliana Maia, um sistema em que é possível clonar os cartões utilizados para acessar as câmeras corporais permite, por exemplo, que um policial use uma tag eletrônica com dados de outra pessoa para liberar a câmera que irá usar em uma ocorrência. Com isso, as gravações não ficariam registradas em seu nome e seria impossível encontrá-las.

“Quando eu consigo alterar a autoria do policial que efetivamente estava naquele momento e gravou aquelas imagens, eu corro risco seríssimo de não encontrar mais as imagens no sistema. Porque eu posso pegar um outro policial, de um outro batalhão, com um outro horário de serviço, e, quando eu vincular aquelas imagens a ele, eu posso perder essas imagens dentro do sistema”, afirma Juliana Maia.

“Se eu não tenho a possibilidade de garantir a integridade, a autenticidade das informações desde o início, eu tenho uma fragilidade e a quebra da cadeia de custódia. Eu não consigo ver a gente fazendo essa vinculação do policial e da câmera sem um método robusto que permita que haja uma assinatura digital, vinculada aos certificados ICP Brasil”, afirma a Juliana Maia.

Exclusão de evidências

Além da vulnerabilidade quanto ao acesso às câmeras, o sistema da Motorola Solutions permite criar, editar e excluir usuários. Além disso, tem como funcionalidade mudar a autoria das gravações, trocando os nomes dos policiais envolvidos nas ocorrências. As informações constam no manual disponibilizado no site da própria empresa.

Segundo o texto “diferentes usuários têm diferentes níveis de controle sobre o sistema, dependendo de como foram configurados”. A Secretaria da Segurança Pública (SSP) não especificou quais permissões seriam concedidas a cada administrador e quem teria o poder de realizar as alterações.

Empresas derrotadas na licitação que garantiu o contrato à Motorola Solutions afirmam que, além dessas possibilidades, o sistema ainda teria um botão de “excluir”, que permite ao administrador deletar vídeos, contrariando o edital, que vedava especificamente esse ponto.

Mesmo que o botão não exista, seria possível excluir vídeos de forma indireta, mudando a autoria de uma gravação, atribuindo ela a um usuário oculto, e depois deletando o usuário.

Vídeos apagados

A mudança do nome do policial responsável pela filmagem teria sido uma das estratégias utilizadas pela major Adriana Leandro de Araújo para sumir com a gravação da ocorrência que resultou na morte de Joselito dos Santos Vieira, em 9 de março de 2024, em Santos.

Conforme revelado pelo Metrópoles na semana passada, informações extraídas do sistema Evidence, plataforma usada para processar as gravações das câmeras da Axon, indicam que a oficial, ligada à cúpula da Polícia Militar, fez várias alterações no arquivo captado pela câmera do soldado Thiago da Costa Rodrigues. Ela teria mudado a data e a hora e atribuído a gravação a um usuário anônimo, com o nome usuário de operações.

Joselito foi morto com 12 tiros no Morro do José Menino, em um suposto confronto com policiais militares. O então coordenador operacional da PM, coronel Gentil Epaminondas Carvalho, número três na hierarquia da corporação, estava presente na ocorrência. Ele era o chefe direto da major Adriana.

Novo sistema

Desde junho, os dois sistemas são utilizados simultaneamente. A ideia é que o modelo da Motorola Solutions substitua o da Axon nos próximos meses. Criticadas por não oferecerem a possibilidade de gravação ininterrupta, as novas câmeras custarão ao governo de São Paulo R$ 51,9 milhões por ano.

A adoção do novo modelo aconteceu após duras críticas de Tarcísio e Derrite aos equipamentos. Em março de 2024, durante a Operação Verão, que provocou 66 mortes na Baixada Santista, o secretário da Segurança Pública chegou a dizer que as câmeras “inibem” os policiais.

“A utilização das câmeras reduziu todos os números: prisões, apreensões de armas, abordagens. Reduziu uma série de coisas que nos leva a crer que inibiu a atividade policial”, afirmou.

No final do ano passado, após uma sequência de episódios de violência envolvendo PMs, que fez o governador reconhecer a existência de uma crise, Derrite disse que os aparelhos protegiam os bons policiais.

“Mudei o meu entendimento. A câmera é uma ferramenta que ajuda a punir quem tem desvio de conduta e, ao mesmo tempo, protege o bom policial. É uma aliada da corporação e da sociedade. E auxilia nas investigações sobre qualquer tipo de crime”.

Mesmos problemas

O pesquisador Rafael Rocha, coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, afirma que o atual sistema mantém os problemas do anterior, no que diz respeito às fragilidades da cadeia de custódia, e ao mesmo tempo apresenta novos problemas, como a ausência de gravação ininterrupta.

“Me parece que a gente está no pior dos mundos. A gente tinha um sistema que foi reconhecido como um avanço, mas tinha limitações. Hoje a gente não resolveu essas limitações e coloca novos obstáculos para o funcionamento dessas câmeras, que é o acionamento manual do próprio policial”, afirma Rafael Rocha.

Para o pesquisador, o sistema que processa as imagens não deveria ficar sob a tutela exclusiva da Polícia Militar.

“A gente tem um problema sobre a gestão dessas imagens, sobre quem tem acesso. Quando um policial fala que aquela imagem não existe, quem garante que a imagem não existe? Quem garante que não foi alterado? […] Deveria existir uma câmara técnica, um espaço de controle e auditoria que não seja só ocupado pela Polícia Militar e pela empresa que presta serviço para a corporação. O controle hoje é feito pela empresa que presta serviço para a PM”, diz.

Outro lado

Questionada pelo Metrópoles, a Secretaria da Segurança Pública disse que a versão do sistema da Motorola Solutions adotada em São Paulo seria diferente da versão global do produto. Segundo a pasta, o modelo “não permite a exclusão de arquivos tampouco edições que possam comprometer a integridade das imagens”.

Sobre a clonagem dos chips, a pasta disse que o cartão “não armazena dados sensíveis nem concede permissões operacionais”. “Sua função seria apenas identificar o policial no momento do acoplamento da câmera”.

A Motorola Solutions disse que o sistema é customizado de acordo com a necessidade de cada cliente. A empresa afirma que, no caso de São Paulo, não há a possibilidade de excluir nenhum vídeo.

Fonte: www.metropoles.com