A refinaria de gás natural do Complexo de Energias Boaventura (ex-Comperj e ex-Gaslub) funciona em escala comercial desde 10 de novembro último sem ainda ter obtido a licença de operação (LO) da Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca) do estado do Rio de Janeiro. Conforme anunciou no dia 11 de novembro, a operação comercial do módulo 1 da nova refinaria possui capacidade para processar diariamente até 10,5 milhões de metros cúbicos de gás natural. Quando o módulo 2 iniciar funcionamento, a planta poderá processar até 21 milhões de metros cúbicos diários, respondendo por mais de 40% da produção brasileira de gás natural proveniente da camada pré-sal da bacia de Santos. A LO é um dos documentos necessários para uma usina de gás iniciar sua operação comercial.
A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) aprovou a Autorização de Operação (AO) nº 539 em 6 de setembro de 2024, permitindo à Petrobras iniciar o funcionamento da sua planta de gás situada no Complexo de Energias Boaventura (novo nome do Gaslub, ex-Comperj).
Segundo explicou a ANP por meio de sua assessoria de imprensa, a ANP condicionou a vigência da Autorização de Operação “à apresentação da LO definitiva do órgão ambiental (Inea) até o final do prazo da Notificação de Autorização de Pré-Operação (Napo) nº 63.01.01.58, que possui validade de 180 dias”. “Ou seja, enquanto a NAPO estiver vigente (180 dias), a empresa possui autorização da ANP para operar. Caso a LO não seja apresentada até o fim do prazo da NAPO, a continuidade das operações estará sujeita à publicação de uma nova autorização pela ANP após o cumprimento das exigências previstas”, informou a ANP à reportagem. A última Napo emitida pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea) possui validade de 180 dias a partir de 10 de outubro último e é prevista na licença de instalação (LI) da UPGN.
O artigo 6º da Resolução ANP nº 852, citada na AO nº 539/2024 como um dos fundamentos legais para a autorização, lista os documentos que a empresa precisa apresentar para obter a AO. Um deles, descrito no inciso V, é a “Licença de Operação ou outro documento que a substitua, emitido pelo órgão ambiental competente”. Questionada pela reportagem se considera a Napo emitida pelo Inea um documento substituto da LO, a assessoria de imprensa da agência sugeriu que o entendimento do órgão é de que ela substitui temporariamente a LO. “Ou seja, a Napo não substitui a LO definitivamente, que precisará ser apresentada antes do fim do prazo da Napo. Apenas provisoriamente, enquanto estiver vigente”, respondeu a agência.
O Inea por sua vez nega que a UPGN já esteja funcionando em escala comercial. Segundo o órgão informou por meio da assessoria de imprensa da Secretaria do Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Rio de Janeiro (Seas-RJ), “a informação sobre o início da produção comercial é incorreta, pois ainda não há um abastecimento contínuo de gás natural que viabilize a suposta operação da UPGN”. O órgão esclarece ainda que “o empreendimento conta com dois módulos de produção, sendo que apenas o Módulo 1 encontra-se em fase de pré-operação”.
Não é o que publicou a Petrobras no portal de sua agência de notícias no dia 11 de novembro: “Desde domingo (10/11), a Unidade de Processamento de Gás Natural (UPGN), localizada no Complexo de Energias Boaventura (Itaboraí, RJ), já está operando comercialmente com seu primeiro módulo, que tem capacidade de processar 10,5 milhões de m³/dia. Com a partida do segundo módulo, prevista para até o fim deste ano, a capacidade total de processamento será de 21 milhões de m³/dia.” Confirma o texto completo da notícia aqui. A informação foi reproduzida por dezenas de veículos de comunicação brasileiros e estrangeiros.
Segundo Talden Farias, advogado e professor de Direito Ambiental das Universidades Federais da Paraíba (UFPB) e Pernambuco (UFPE), a pré-operação é uma etapa para as empresas testarem e ajustarem equipamentos. “Autorizar a operação comercial regular e contínua de uma atividade efetiva ou potencialmente poluidora sem a emissão da LO é uma distorção da legislação ambiental brasileira e do próprio instituto da LO”. Farias é o autor de um dos livros de direito ambiental mais vendidos no Brasil – Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos (editora JusPodivm, 2024, 9ª edição).
A reportagem perguntou a Rogério Rocco, superintendente do Ibama no estado do Rio de Janeiro, se o órgão cogita tomar alguma medida punitiva contra o Inea, caso a Petrobras esteja de fato operando comercialmente a UPGN irregularmente. Afinal, a delegação do licenciamento ambiental dos projetos do Complexo Boaventura (ex-Comperj) do Ibama para o Inea requer da autarquia federal que supervisione e audite o cumprimento das obrigações do delegatário previstas no Acordo de Cooperação Técnica (ACT) 26/2019, assinado em agosto de 2019 entre ambos.
“Vamos analisar a situação”, disse Rogério Rocco, superintendente do Ibama no estado do Rio de Janeiro, sem entrar em detalhes sobre o caso. O ACT nº 26/2019 também prevê rescisão do acordo, “mediante decisão técnica fundamentada, caso constatada a ocorrência de irregularidades e/ou omissões graves na condução do processo delegado”.
Posicionamento da Petrobras
A Petrobras não respondeu até o fechamento desta reportagem sobre as dúvidas e dissonâncias de informações entre a empresa, o Inea e a ANP quanto à etapa atual do projeto da UPGN – se pré-operação ou operação comercial – e a falta de LO para operar comercialmente. Ninguém respondeu às várias chamadas para os três números de telefone informados na página da gerência de imprensa no portal da Petrobras na internet – uma linha fixa e duas de telefones celulares.
No dia 14 de novembro, a gerência de imprensa enviou respostas a questões remetidas pela reportagem duas semanas antes sobre sua ausência na negociação e assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que define uma espécie de mapa do caminho para viabilizar a implantação do Parque Natural Municipal Águas de Guapimirim. Firmado entre o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), a Seas-RJ, o Inea e a prefeitura de Guapimirim, o TAC foi homologado no final de agosto passado pela Justiça Estadual fluminense. ((o))eco investiga há quase um ano uma série de procedimentos duvidosos e descumprimento de condicionantes no licenciamento ambiental dos projetos relacionados ao antigo Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj). No último dia 13 de novembro, foi publicada a reportagem “Ceca-RJ ignora ICMBio e aprova licença para termelétricas da Petrobras”.
Uma das condicionantes ainda não atendidas da licença prévia (LP) concedida em 2008 ao Comperj, o parque servirá como uma das principais ações de mitigação dos impactos ambientais adversos do Complexo Boaventura sobre duas unidades de conservação (UCs) federais, localizadas na área de influência do megaempreendimento e administradas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) – a áreas de proteção ambiental (APA) Guapí-Mirim e a Estação Ecológica (Esec) Guanabara, que abrigam quase metade dos manguezais remanescentes no estado do Rio de Janeiro.
A proteção dos manguezais é vital para a sobrevivência de pescadores e caranguejeiros e a proteção da faixa costeira da Baía de Guanabara à medida que os eventos climáticos extremos tornam-se mais frequentes e intensos como efeito da crise climática, acarretada pelo aumento exorbitante nas emissões de gases de efeito estufa por atividades humanas, sobretudo a partir dos primórdios da Revolução Industrial, em meados do século 18. A UPGN do Complexo Boaventura, por exemplo, deverá liberar na atmosfera anualmente ao menos cerca de 14 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) quando operar em sua capacidade total, de 21 milhões de metros cúbicos de gás natural ao dia, praticamente equivalente às emissões de CO2 equivalente de São Paulo capital em 2021, segundo a prefeitura da cidade. A estimativa considera as etapas de extração, processamento e geração de energia elétrica pelas duas termelétricas previstas para o antigo Comperj, sem incluir, portanto, emissões das indústrias que utilizarão o combustível e de eventual aproveitamento por outras usinas de energia.
As condicionantes 30.1 e 30.2 foram incluídas na LP do Comperj (LP FE013990/2008) para mitigar impactos ambientais adversos durante as obras de implantação do Comperj e em sua etapa de operação comercial. Na prática, a Petrobras iniciou a operação comercial da UPGN do Complexo de Energias Boaventura mediante cumprimento irrisório da condicionante 30.1, que obriga a companhia a reflorestar cerca de 2.000 hectares de matas ciliares nas sub-bacias dos rios Macacu e Caceribu, que margeiam o antigo Comperj.
Apenas 314 hectares de espécies nativas foram plantados no âmbito do programa Florestas do Amanhã (FDA), representando menos de 1% dos 5.005 hectares previstos no TAC 1 do Comperj, assinado em agosto de 2019 entre MPRJ, Petrobras, Seas-RJ e Inea. O TAC monetizou as obrigações de restauração florestal indicadas em licenças e autorizações de supressão florestal descumpridas pela petroleira. Dessa maneira, o TAC 1 determinou à empresa o depósito de R$ 398 milhões no Fundo da Mata Atlântica (FMA), destinados à restauração florestal na bacia hidrográfica onde se localiza o ex-Comperj por meio do FDA, gerido pelo Inea.
Monetização das obrigações
A Petrobras prossegue afirmando que cumpriu rigorosamente as condicionantes 30.1 e 30.2 da LP do Comperj. Além dos recursos depositados no FMA para a restauração florestal, a empresa informa que desenvolve ações de reflorestamento e conservação na área interna de seu empreendimento (intramuros). A atividade mitigadora intramuros também foi uma obrigação assumida pela companhia no TAC 1 do Comperj.
Há quatro atividades realizadas intramuros: monitoramento dos 400 hectares reflorestados na margem do rio Macacu, sendo 170 hectares em áreas de preservação permanente (APP); ações de condução da regeneração natural em até 100 hectares; monitoramento de 60 hectares plantados em áreas estratégicas para a formação de corredores ecológicos na bacia Guapi-Macacu; e manutenção de 100 hectares, já plantados por meio do projeto de responsabilidade Social Guapiaçu Grande Vida.
A Petrobras informa, ainda, que “realizou o pagamento da compensação ambiental integralmente, dentro do prazo estipulado pelo órgão ambiental, e conforme preceitua a Lei Federal nº 9.985/2000, conhecida como “Lei do Snuc”, sendo equivalente a mais de R$ 130 milhões em valor presente, salientando que a referida lei preceitua o uso destes recursos para implantação e/ou regularização fundiária de UCs. Portanto, a Petrobras considera que há recurso suficiente para a implantação do parque [Parque Natural Municipal Águas de Guapimirim, que foi criado em 2013 para atender à condicionante 30.2 da LP do Comperj]”.
A reportagem questionou a empresa sobre a legitimidade de iniciar operações comerciais no antigo Comperj sem o cumprimento das condicionantes 30.1 e 30.2, mesmo sob o risco de que elas provoquem graves danos ecológicos de curto, médio e longo prazo ao Sistema Imunana-Laranjal e aos manguezais da APA Guapi-Mirim e da Esec Guanabara. O Sistema Imunana-Laranjal abastece cerca de 2 milhões de pessoas com água potável no leste fluminense.
“Não há qualquer dano associado à entrada em operação da UPGN Rota 3 por conta das condicionantes 30.1 e 30.2 da licença. Pelo contrário, a postergação da entrada em operação da unidade apenas postergaria os benefícios esperados do empreendimento para o estado e a sociedade, ou seja, seus impactos positivos”, respondeu a companhia. “Vale destacar ainda que a relação entre os empreendimentos do Complexo de Energias Boaventura e o ambiente em seu entorno foram extensamente estudados, avaliados e são monitorados durante todas as etapas do licenciamento ambiental.”
Sem complemento
Entre 2014 e 2015, a Petrobras depositou um total de R$ 4 milhões no FMA atendendo ao previsto num termo de compromisso (TC) firmado em dezembro de 2013 com a então Secretaria de Estado do Ambiente (SEA) e o Inea. O TC visava aos investimentos necessários à implantação e manutenção de uma unidade de conservação (UC) de proteção integral da categoria parque e respectiva zona de amortecimento para servir como zona tampão entre o Comperj e as duas UCs federais próximas ao Comperj.
A reportagem perguntou à companhia se poderia complementar o valor depositado em 2015 e que tipo de apoio técnico poderia prestar ao parque, conforme previsto nas condicionantes 30.2 da LP de 2008 e 35 da licença de instalação (LI) IN001540. Segundo a empresa, o valor depositado em 2015 visou apoiar tecnicamente a implementação do parque. “Esse valor equivale a mais de R$ 8 milhões atualmente.” Também continuam desconhecidos os critérios utilizados pela Seas-RJ e pelo Inea para definir valor tão modesto para a implantação do Parque Águas de Guapimirim.
O novo TAC do Comperj assinado em agosto passado menciona que as partes que o negociaram concordaram com a aplicação na regularização fundiária do parque dos cerca de R$ 8 milhões da conta do FMA que recebeu o depósito da Petrobras referente ao TC de 2013. Contudo, o TC de 2013 prevê a aplicação do recurso somente em demarcação, sinalização, plano de manejo, restauração e manutenção da futura unidade de conservação. Apenas a regularização fundiária, que não figura entre as ações previstas nesse TC, é estimada entre R$ 15 milhões e R$ 30 milhões, segundo estimativas respectivas do Inea e do Ibama. Técnicos do ICMBio avaliam que as desapropriações das seis fazendas existentes na área do parque consumirão mais de R$ 30 milhões.
Na LP FE03990/2008, a condicionante 30.2 obriga a Petrobras a comprar, restaurar e promover a manutenção de uma zona tampão de 2.525 hectares entre o Comperj e as duas UCs federais. Em 2012, porém, a obrigação foi afrouxada para um genérico apoio técnico e financeiro ao poder público na implantação e manutenção do parque na inclusão da condicionante 35 na licença de instalação (LI) IN01540.
Quanto à sua ausência na negociação e assinatura do novo TAC, a Petrobras informa que não foi convidada a participar das discussões sobre o acordo “porque não há qualquer pendência em relação às suas obrigações”. A petroleira também não se dispõe a participar de uma negociação a respeito do cumprimento das condicionantes do licenciamento do Comperj no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc – Ambiental) do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) para resolver as pendências relativas à condicionante 30.2 da LP e 35 da LI IN001540/2008, conforme propôs o Ibama na Nota Técnica 1/2024. “A Petrobras cumpriu integralmente as condicionantes da LP do Complexo de Energias Boaventura, não havendo mais pendências a serem resolvidas”, declarou a empresa.