Lei baterá em quilombola e não baterá em fazendeiro: a criminalização das práticas tradicionais e o PL 3339/2024
A emergência climática é indiscutível. O planeta passa por transformações no clima que já afetam toda a vida na Terra, inclusive a humana. Também não há dúvidas de que a ação humana é o fator preponderante, senão único, que desencadeia a alteração drástica do clima no planeta.
A emissão de bilhões de toneladas de monóxido de carbono na atmosfera, as guerras, o crescente desmatamento e degradação da vegetação nativa em todos os biomas, o crescimento das monoculturas extensivas de commodities agrícolas, a poluição e sobreutilização das águas dos rios, a mineração em grande escala e o uso desenfreado de agrotóxicos, entre outras, são ações humanas que degradam o meio ambiente e colocam em risco a nossa existência.
A forma mais eficaz de enfrentar esse problema é uma mudança profunda na maneira como a sociedade hegemônica reproduz seu modo de vida. Ou seja, é necessário repensar como os alimentos e produtos agrícolas são produzidos, alterar os modais de transporte individual e de massas, reduzir drasticamente a quantidade e alterar as formas de distribuição e de consumo de energia, entre outras tantas ações já mapeadas por estudos.
Ou seja, se a humanidade efetivamente quer continuar a viver, precisa superar o capitalismo. A crise climática é, em sua essência, uma crise do sistema capitalista. Mas essa tarefa não é nada simples
Populismo penal
Entre as ações que não são difíceis de adotar, justamente por não desafiarem o modo capitalista de viver, estão os crimes e as penas. O direito penal existe no capitalismo para ser utilizado de forma ostensiva, extensa e profunda para garantir a liberdade de alguns para trocar produtos, explorar a natureza e o trabalho.
Ora, prender, por longo tempo, quem degrada o meio ambiente sem autorização do Estado, cumpriria com as tarefas essenciais e não declaradas do direito penal no capitalismo, e ao mesmo tempo, geraria sensação de combate às causas da emergência climática.
Mas, infelizmente, a realidade, as Artes, as Ciências Biológicas e o Direito já demonstraram que o populismo penal do estabelecimento de novos tipos penais e do aumento de penas é absolutamente ineficaz para os fins declarados a que se destina.
De um lado, porque grande parte do problema da crise climática não está nas ações ilegais. Agrotóxicos, mineração, desmatamento, sobreutilização e poluição das águas, monocultivos em extensão e a mineração em grande escala, entre outras, são atividades que podem e são legalmente desenvolvidas.
Contudo, apesar dessas atividades serem desenvolvidas legalmente, com fundamento em procedimentos de licenciamento ambiental, o direito não é capaz de impedir ou limitar significativamente os impactos dessas atividades no meio ambiente. Todas essas atividades, entre outras tantas, são legais perante o direito e degradadoras para o planeta.
Mas é evidente que coibir ações ilegais que degradam o meio ambiente são necessárias, como apoio residual e pontual às ações estratégicas. Degradar ilegalmente o meio ambiente causa danos, assim como a degradação em massa promovida pela humanidade sob a benção do Direito.
Contudo, a questão que se coloca é avaliar quais os impactos negativos, e os eventuais positivos, do incremento de penas na lei de crimes ambientais para auxiliar a coibir os abusos que incrementam a emergência climática.
De saída, em especial sob a ótica da criminologia crítica, é possível dizer que a intenção do PL 3339/24 – que amplia a penas para quem comete crimes ambientais – é boa na superfície, porém, pouco eficaz no solo das delegacias e dos tribunais. Trará poucos e residuais impactos nas situações que atinjam os detentores do poder político e do capital. Mas serão significativamente impactantes para quilombolas e povos e comunidades tradicionais.
Peso desigual da lei
Aumentar as penas para os crimes ambientais pode parecer uma solução rápida, justa e efetiva. Mas é necessário questionar como essas medidas serão aplicadas. Os grandes degradadores ambientais, como fazendeiros, grileiros, mineradores e todas as corporações transnacionais, detêm meios e recursos para evitar punições severas.
Os responsáveis pelos crimes contra o meio ambiente, com o rompimento das barragens em Brumadinho e Mariana, não deixaram de ser responsabilizados penalmente pela ausência de tipos penais ou pela diminuta pena aplicada pelos delitos previstos em lei. O mesmo se deve dizer sobre o vazamento de petróleo na bacia de campo em 2011 e as queimadas ocorridas em massa no Brasil em 2024.
Tipos penais, como o de crime organizado, e fundamentos jurídicos para manter sob prisão preventiva aqueles que mandaram ou executaram ações criminosas de incêndio, com grande impacto no ano de 2024, estão à disposição da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário.
E sempre há possibilidade de incrementar mecanismos, especialmente de investigação, para obter provas robustas dos ilícitos cometidos e das pessoas e instituições envolvidas nas ações. Seria possível, e desejado, realizar ações de inteligência que previnam crimes e que viabilizem provas robustas para ações penais. Seria igualmente desejado que a imposição de embargo em áreas degradadas fosse efetivamente fiscalizada quando do seu não cumprimento.
Mas mesmo que se desconsidere a ineficácia da persecução penal, o legislador poderia fazer alterações mais eficazes, como estabelecer agravantes que estivessem relacionadas às ações que têm potencial danoso relevante por suas características, como nos casos de crimes cometidos por concurso material, com uso de explosivos ou agrotóxicos, mediante promessa de paga, por motivo fútil ou torpe ou pela extensão dos danos ambientais
Mas o simples incremento das penas, conforme previsão do PL 3339/24, acabará penalizando com severidade povos e comunidades tradicionais, ao passo em que aqueles responsáveis pelas grandes degradações ambientais continuarão a se servir da seletividade penal para continuar a degradar o meio ambiente sem serem punidos com mínima severidade. Os poucos casos em que um grande degradador ambiental vier a ser penalizado será apenas um exemplo dos limites e das contradições do direito penal.
Comunidades tradicionais, como quilombolas, que manejam a biodiversidade de forma sustentável, acabarão sendo criminalizadas por práticas que, embora beneficiem o meio ambiente, são estigmatizadas, mal compreendidas e criminalizadas. Práticas que as ciências e os conhecimentos tradicionais indicam serem importantes para a conservação ambiental são vistas pelo estado, em especial pelas forças policiais, como atividades degradadoras.
Ou seja, o aumento indiscriminado das penas pode levar à criminalização de populações vulneráveis que dependem de recursos naturais para sobreviver, como quilombolas e indígenas. Em vez de resolver o problema ambiental, essa medida pode aprofundar as injustiças socioambientais e ampliar o racismo ambiental.
A aplicação da lei deve considerar as diferenças entre grandes degradadores e atividades sustentáveis de comunidades tradicionais. Parece óbvio, mas não é o que ocorre nas delegacias e nos fóruns. Nesse espaço a lei que bate em quilombolas não costuma bater em fazendeiros.
Veremos, num futuro não muito distante, quilombolas sendo presos por construírem uma canoa de madeira, ou por realizarem uma pequena roça de coivara. Suas penas serão agravadas, pois muitas dessas comunidades têm seus territórios sobrepostos por Unidades de Conservação.
E os grandes poluidores? Esses continuarão a ganhar dinheiro, mas parte desses ganhos será transferida a excelentes escritórios de advocacia.
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